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Futebol: O bate-bola na estante

Lançamentos, relançamentos e publicações só encontradas em sebos delineiam o encontro entre o esporte e a literatura

TEXTO Rodrigo Casarin

01 de Junho de 2014

Imagens Janio Santos sobre reprodução

Jairzinho rouba a bola, toca para Tostão e dispara pela lateral, levando consigo o marcador. Tostão, completamente livre, dá quatro toques na redonda, em direção ao gol, sempre com sua perna esquerda. Vê um vulto amarelo e negro passando à sua direita e enfia o balão entre os dois oponentes que se aproximam. A pelota parece estar no ponto certo para ser esmagada, trucidada por uma dividida – Pelé e Ladislao Mazurkiewicz estão em grande velocidade. Entretanto, na hora de dar o toque que causaria a inevitável colisão, Pelé tira o pé, passa à direita de Mazurkiewicz e precisa mudar drasticamente sua trajetória para recuperar a gorducha, que passou à esquerda do goleiro (que, por sua vez, foi parar próximo ao limite da meia-lua). Pelé, ainda com velocidade surpreendente, alcança a grande amiga. Está um pouco desequilibrado, mas está só, com o gol à sua frente. Mazurkiewicz, longe, tenta retornar desesperadamente à meta. Pelé chuta cruzado, um zagueiro passa correndo e cai de cara no chão, já fora de campo. A bola quica em direção ao gol, ao pé da trave, à linha de fundo...

Se a bola de Pelé no jogo contra o Uruguai, na Copa de 1970, tivesse entrado, a jogada teria dramaticidade suficiente para virar literatura? Sim, na opinião de Sérgio Rodrigues, contudo, “o não gol contribui para que aquele lance fique nos assombrando para sempre. Como é possível que uma jogada tão bela tenha resultado num gol perdido, isto é, num fracasso? É incongruente, parece injusto, porque dissocia radicalmente a ética da estética. Enquanto aquela bola não entrar, não sossegaremos. É por isso que nunca nos cansamos de rever o lance: pela esperança insana de que uma hora aquela bola entre. Ou seja, estamos fritos”.

Sérgio Rodrigues é o autor de O drible, romance que parte justamente do lance narrado acima para contar a história de Murilo Filho, ex-cronista esportivo de sucesso que está em seus últimos dias de vida, e Neto, seu filho, que durante muitos anos se manteve distante do pai. A retomada de alguma relação entre os dois só se torna possível por conta do futebol, que assume um papel fundamental na obra.

Nos últimos meses, O drible, lançado no final de 2013, vem ganhando muitas companhias nas prateleiras. É normal que em ano de mundial as produções sobre futebol aumentem consideravelmente. Há de tudo: almanaques, guias, enciclopédias, biografias de craques atuais e do passado, ensaios... “Algumas editoras e autores vêm tentando aproveitar os anos de Copa para pegar uma carona no evento. Mas não acredito que isso seja uma boa estratégia; percebo que, para essas efemérides, vêm sendo importados muitos livros com acabamento requintado e divertido, mas sem compromisso com a qualidade que eu gostaria que permeasse a produção editorial futebolística. O que mais acontece, nesses momentos, é a produção de livros que visam o comprador e o leitor incautos”, diz Cesar Oliveira, proprietário da livraria virtual Livros de Futebol, no ar desde 2004 e com mais de 400 títulos no catálogo.

O momento é oportuno para colocar uma antiga discussão de volta às rodas literárias: de que forma o encontro entre futebol e literatura acontece? Os exemplos de sucesso dessa mistura realmente são raros ou não há atenção suficiente para o que podemos encontrar nas bibliotecas e livrarias?

O próprio O drible, muito bem-recebido pela crítica especializada, nos dá a pista para uma resposta possível. Seguindo enredo próximo, uma história na qual pai e filho se apoiam no futebol para arquitetar a delicada relação, há um clássico da mistura entre o esporte e a arte: Febre de bola, do inglês Nick Hornby, lançado em 1992. Na obra, o autor assume o papel do protagonista para remontar um momento conturbado de sua família. Sem saber ao certo o que seria do futuro após a separação de seus pais, Nick, então com 11 anos, encontra nos jogos do Arsenal o momento ideal para conviver, sofrer e se alegrar com a figura paterna, o que dá origem ao seu fanatismo pelo time inglês.

Entretanto, há a queixa de que não são muitos os títulos de ficção que apresentam o futebol com grande destaque. “Não acho que apenas assuntos de prestígio cultural rendam ficção. É possível escrever um grande romance com um tema trivial. O fato é que o futebol é uma das mais importantes, mais populares e mais universais manifestações da cultura brasileira, tanto que, desde garoto, vejo os críticos literários reclamando de sua escassa presença em nossa ficção”, defende Rodrigues.

Pesquisando o mercado nacional, podemos encontrar diversas outras obras de ficção que tratam do tema, como Cartão vermelho, de Dimmi Amora, O batedor de faltas e Em campo aberto, ambos de Cláudio Lovato, Escravos do jogo, de Marlos Bittencourt, e O diário secreto das copas, de Jeosafá Fernandez. José Roberto Torero é um exemplo de renomado escritor com diversas obras com grande presença do esporte. São dele títulos como Os cabeças de bagre também merecem o paraíso, Zé Cabala e outros filósofos do futebol, Futebol é bom pra cachorro, Copa do mundo – figurinhas e figurões e Nove contra o 9, os três últimos escritos com Marcus Aurelius Pimenta.

No cenário internacional, um grande escritor que costuma criar histórias que se relacionam ou surgem do esporte é o uruguaio Eduardo Galeano. É dele o livro Futebol ao sol e à sombra, obra que faz uma viagem pelo passado futebolístico por meio de pequenos textos em que informação, memória e ficção se fundem – uma marca do autor, aliás. Galeano, que recorrentemente usa o futebol em suas entrevistas – na sua recente passagem pelo Brasil, em abril, falou sobre Sócrates e a democracia corintiana –, também leva o mundo da bola para outros de seus livros, como Espelhos e Os filhos dos dias.


Imagem: Reprodução

E é exatamente nos gêneros de textos mais breves que o futebol melhor se apresenta no Brasil, com grandes nomes da literatura nacional entrando em campo. Nas crônicas, temos obras como Quando é dia de futebol, de Carlos Drummond de Andrade, A eterna privação do zagueiro absoluto, de Luís Fernando Veríssimo, e o clássico À sombra das chuteiras imortais, de Nelson Rodrigues, provavelmente o nome mais famoso no país, quando levamos em conta a relação entre as letras e o esporte. Temos ainda Passe de letra, de Flávio Carneiro, que mistura memórias com reflexões, e o recente Entre quatro linhas, uma coletânea de contos organizada por Luiz Ruffato.

São grandes nomes transformando o futebol em literatura. Apesar disso, uma outra questão vem à tona: não é simples definirmos o que é exatamente um livro sobre futebol. Falando de seu O drible, por exemplo, Rodrigues considera enquadrá-lo nessa categoria algo que o diminui. “Chamá-lo de livro de futebol me parece um equívoco ou pelo menos uma simplificação excessiva. Trata-se de um romance, um drama de família, e tem tanto a ver com o futebol quanto com a história política brasileira recente e a cultura pop dos anos 1970 e 1980. Um romance nunca conta uma história só. Pelo que entendo dessa expressão, ela se refere a livros de não ficção que documentam algum aspecto da história futebolística”. Vamos à não ficção, então.

A BOLA, O LIVRO E O REAL
Provavelmente, o maior clássico da literatura esportiva no Brasil, O negro no futebol brasileiro é uma obra de não ficção. Escrito pelo jornalista Mario Filho – que dá nome ao Maracanã e era irmão de Nelson Rodrigues – e publicado originalmente em 1947, traz as primeiras décadas do futebol no país, quando negros mal eram aceitos nos clubes.

“Trata-se de nosso mais importante título sobre o tema e, mais do que isso, um clássico sobre a formação da sociedade brasileira que – ainda que menos declaradamente ambicioso e muito menos conhecido – comunga do espírito de obras como Raízes do Brasil (de Sérgio Buarque de Holanda) e Casa-grande & senzala (de Gilberto Freyre). Não se trata de um romance, mas de uma longa reportagem, com tintas ensaísticas, sobre os anos de formação do grande esporte nacional (...). A ambição jornalística do livro é impressionante: contar com minúcias, sempre pelo viés da progressiva ocupação de espaços por jogadores negros e mulatos, a história do futebol carioca desde o tempo em que os melhores em campo eram todos ingleses, no início do século 20. Dar conta desse recado já seria muito, mas Mario o faz com um talento de escritor que raros jornalistas esportivos têm ou tiveram em qualquer época. É forte a tentação de dizer que ele escreve como se falasse, mas vale lembrar que nem o orador mais experiente conseguiria – não de improviso – se expressar com tanta clareza”, escreveu Rodrigues no texto Não deixe de ler o negro no futebol brasileiro, publicado no Todoprosa, seu blog, em dezembro de 2013. O livro está recebendo uma versão em inglês que será distribuída entre jornalistas estrangeiros durante a Copa do Mundo, numa campanha do governo federal contra o racismo nos estádios.

Quem prefere obras nessa linha histórica – que buscam, de alguma forma, retratar a realidade – é José Renato Santiago Júnior, um dos maiores colecionadores de livros de futebol do país; quando entrevistado, tinha exatamente 2.874 exemplares em suas estantes. “Prefiro as histórias reais de futebol. Entre a prosa apaixonada de um Luís Fernando Veríssimo ou do José Roberto Torero e a precisão de um historiador, fico com o segundo.” Seguindo sua preferência, indica um escritor clássico do jornalismo esportivo: Thomás Mazzoni. “Ele é o fundador da Gazeta Esportiva e o autor da primeira grande obra sobre o esporte no país, A história do futebol no Brasil. Ele era uma figura presente, que relatava os fatos. Se alguém quer saber a história do futebol, qualquer livro dele relata exatamente o que aconteceu.”

Ao ser questionado sobre outras duas obras que seguem a linha de sua preferência, o colecionador tem visões distintas. Considera Veneno remédio, um ensaio de José Miguel Wisnik que busca associar o futebol brasileiro e seu entorno a grandes pensadores, “um livro chato, feito para acadêmico”, enquanto aponta Futebol – o Brasil em campo, no qual o jornalista inglês Alex Bellos traça um panorama do esporte no país, um bom exemplar de como o futebol pode ser tratado em um livro. Nessa linha, temos ainda A dança dos deuses, do historiador Hilário Franco Júnior, que associa o esporte à história das civilizações.

Entretanto, é um livro de autor estrangeiro que Santiago Júnior aponta como preferido: Futebol e guerra, de Andy Dougan, centrado numa partida disputada em 1942, na Ucrânia, entre uma equipe formada principalmente por membros do Dínamo, de Kiev, e a Luftwaffe, da Alemanha, durante o nazismo. O jogo se transforma numa metáfora de resistência ao poder. “Até os nazistas, que, a princípio, são vistos como pessoas desprovidas de moral, reconhecem que precisam se aproximar da população que dizimaram e utilizam o futebol para isso”.

Do cenário internacional, temos outras grandes obras que tratam do esporte: Como o futebol explica o mundo, de Franklin Foer, que se utiliza de situações do universo da bola para falar sobre a globalização, e Entre os vândalos, livro-reportagem de Bill Buford, jornalista que passou mais de um ano em meio a hooligans para relatar sua experiência com os violentos torcedores ingleses. São obras que compõem a gama de livros que há sobre o esporte, que pode não ser vasta como gostariam alguns, mas está longe de ser insignificante ou inexistente, como supõem outros. 

RODRIGO CASARIN, jornalista.

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