E é exatamente nos gêneros de textos mais breves que o futebol melhor se apresenta no Brasil, com grandes nomes da literatura nacional entrando em campo. Nas crônicas, temos obras como Quando é dia de futebol, de Carlos Drummond de Andrade, A eterna privação do zagueiro absoluto, de Luís Fernando Veríssimo, e o clássico À sombra das chuteiras imortais, de Nelson Rodrigues, provavelmente o nome mais famoso no país, quando levamos em conta a relação entre as letras e o esporte. Temos ainda Passe de letra, de Flávio Carneiro, que mistura memórias com reflexões, e o recente Entre quatro linhas, uma coletânea de contos organizada por Luiz Ruffato.
São grandes nomes transformando o futebol em literatura. Apesar disso, uma outra questão vem à tona: não é simples definirmos o que é exatamente um livro sobre futebol. Falando de seu O drible, por exemplo, Rodrigues considera enquadrá-lo nessa categoria algo que o diminui. “Chamá-lo de livro de futebol me parece um equívoco ou pelo menos uma simplificação excessiva. Trata-se de um romance, um drama de família, e tem tanto a ver com o futebol quanto com a história política brasileira recente e a cultura pop dos anos 1970 e 1980. Um romance nunca conta uma história só. Pelo que entendo dessa expressão, ela se refere a livros de não ficção que documentam algum aspecto da história futebolística”. Vamos à não ficção, então.
A BOLA, O LIVRO E O REAL
Provavelmente, o maior clássico da literatura esportiva no Brasil, O negro no futebol brasileiro é uma obra de não ficção. Escrito pelo jornalista Mario Filho – que dá nome ao Maracanã e era irmão de Nelson Rodrigues – e publicado originalmente em 1947, traz as primeiras décadas do futebol no país, quando negros mal eram aceitos nos clubes.
“Trata-se de nosso mais importante título sobre o tema e, mais do que isso, um clássico sobre a formação da sociedade brasileira que – ainda que menos declaradamente ambicioso e muito menos conhecido – comunga do espírito de obras como Raízes do Brasil (de Sérgio Buarque de Holanda) e Casa-grande & senzala (de Gilberto Freyre). Não se trata de um romance, mas de uma longa reportagem, com tintas ensaísticas, sobre os anos de formação do grande esporte nacional (...). A ambição jornalística do livro é impressionante: contar com minúcias, sempre pelo viés da progressiva ocupação de espaços por jogadores negros e mulatos, a história do futebol carioca desde o tempo em que os melhores em campo eram todos ingleses, no início do século 20. Dar conta desse recado já seria muito, mas Mario o faz com um talento de escritor que raros jornalistas esportivos têm ou tiveram em qualquer época. É forte a tentação de dizer que ele escreve como se falasse, mas vale lembrar que nem o orador mais experiente conseguiria – não de improviso – se expressar com tanta clareza”, escreveu Rodrigues no texto Não deixe de ler o negro no futebol brasileiro, publicado no Todoprosa, seu blog, em dezembro de 2013. O livro está recebendo uma versão em inglês que será distribuída entre jornalistas estrangeiros durante a Copa do Mundo, numa campanha do governo federal contra o racismo nos estádios.
Quem prefere obras nessa linha histórica – que buscam, de alguma forma, retratar a realidade – é José Renato Santiago Júnior, um dos maiores colecionadores de livros de futebol do país; quando entrevistado, tinha exatamente 2.874 exemplares em suas estantes. “Prefiro as histórias reais de futebol. Entre a prosa apaixonada de um Luís Fernando Veríssimo ou do José Roberto Torero e a precisão de um historiador, fico com o segundo.” Seguindo sua preferência, indica um escritor clássico do jornalismo esportivo: Thomás Mazzoni. “Ele é o fundador da Gazeta Esportiva e o autor da primeira grande obra sobre o esporte no país, A história do futebol no Brasil. Ele era uma figura presente, que relatava os fatos. Se alguém quer saber a história do futebol, qualquer livro dele relata exatamente o que aconteceu.”
Ao ser questionado sobre outras duas obras que seguem a linha de sua preferência, o colecionador tem visões distintas. Considera Veneno remédio, um ensaio de José Miguel Wisnik que busca associar o futebol brasileiro e seu entorno a grandes pensadores, “um livro chato, feito para acadêmico”, enquanto aponta Futebol – o Brasil em campo, no qual o jornalista inglês Alex Bellos traça um panorama do esporte no país, um bom exemplar de como o futebol pode ser tratado em um livro. Nessa linha, temos ainda A dança dos deuses, do historiador Hilário Franco Júnior, que associa o esporte à história das civilizações.
Entretanto, é um livro de autor estrangeiro que Santiago Júnior aponta como preferido: Futebol e guerra, de Andy Dougan, centrado numa partida disputada em 1942, na Ucrânia, entre uma equipe formada principalmente por membros do Dínamo, de Kiev, e a Luftwaffe, da Alemanha, durante o nazismo. O jogo se transforma numa metáfora de resistência ao poder. “Até os nazistas, que, a princípio, são vistos como pessoas desprovidas de moral, reconhecem que precisam se aproximar da população que dizimaram e utilizam o futebol para isso”.
Do cenário internacional, temos outras grandes obras que tratam do esporte: Como o futebol explica o mundo, de Franklin Foer, que se utiliza de situações do universo da bola para falar sobre a globalização, e Entre os vândalos, livro-reportagem de Bill Buford, jornalista que passou mais de um ano em meio a hooligans para relatar sua experiência com os violentos torcedores ingleses. São obras que compõem a gama de livros que há sobre o esporte, que pode não ser vasta como gostariam alguns, mas está longe de ser insignificante ou inexistente, como supõem outros.
RODRIGO CASARIN, jornalista.