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Senhoras da dança

Bailarinas veteranas, Maria Paula Costa Rêgo, Cecília Brennand e Mônica Lira superam tempo e dificuldades, permanecendo no palco

TEXTO Christiane Galdino

01 de Maio de 2014

Criadora do Grupo Grial, Maria Paula afirma os méritos da maturidade em cena

Criadora do Grupo Grial, Maria Paula afirma os méritos da maturidade em cena

Foto Yêda B. de Mello/Divulgação

Parece que foi ontem, mas já se passaram décadas desde que elas deram os primeiros passos e começaram a imprimir suas marcas na história da dança do Recife. Cecília, Mônica e Maria Paula, como tantas outras meninas, aprenderam ainda na infância ou adolescência as lições iniciais da arte do movimento e, aos poucos, foram se tornando bailarinas profissionais. O caminho natural iria levá-las aos bastidores, após alguns anos de ribalta, mas, por diversas razões, essas artistas decidiram continuar em cena, vivendo a plenitude da sua maturidade nos palcos.

“No começo da minha carreira, eu não podia imaginar que ainda estaria dançando aos 50 anos de idade. Até fiz algumas pausas, nas fases de mudança de elenco da companhia, mas senti uma necessidade irresistível de voltar à cena, que eu não sei explicar direito”, afirma Mônica Lira, que tem cerca de 30 anos de carreira e há 20 está na direção do Grupo Experimental, do qual também é fundadora. Com forte atuação no âmbito político, como ativista do Movimento Dança Recife, ela já ocupou quase todos os lugares da cadeia produtiva da dança e, na maioria das vezes, simultaneamente. É também professora, coreógrafa e diz que todas essas funções “sempre me preencheram, me deixaram feliz. Nunca me senti frustrada por estar fora dos palcos”.

Natural de Fernando de Noronha, Mônica percebeu que não poderia se manter nos bastidores na atual empreitada, já que a pesquisa coreográfica iria tratar das memórias da sua infância vivida na ilha e do sentimento particular que diferencia os ilhéus dos continentais. Assim surgiu Ilhados – encontrando as pontes, primeiro resultado cênico de pesquisa do Grupo Experimental, no qual Mônica dança ao lado de sua filha Rafaella Trindade. É com esse trabalho que a dupla está circulando por cidades do interior de Minas Gerais, São Paulo, Paraná e Arquipélago de Fernando de Noronha – como parte das comemorações pelos 20 anos do Grupo Experimental, importante companhia de dança contemporânea do Nordeste.

TERRA
Maria Paula foi muito longe com sua dança, inclusive no sentido geográfico, seja pelas tantas viagens que fez como integrante do Balé Popular do Recife, na década de 1980, seja quando morou na França, ou nas recentes apresentações do Grupo Grial mundo a fora. Quem a vê em cena, com movimentação original e vigorosa, surpreende-se ao saber de sua idade. “Me acostumei a trabalhar a partir das minhas possibilidades, sempre foi assim. Por isso, não tive que mudar minha rotina. O músculo flácido tem outras qualidades, outros caminhos de criação”, diz ela, aos 50 anos.

A Associação Paulista de Críticos de Arte – APCA acaba de reconhecer o seu talento, concedendo a Maria Paula Costa Rêgo o prêmio de melhor intérprete-criadora em dança do ano de 2013, pelo solo Terra, no qual ela coassina a direção, junto com Eric Valença. A mais recente montagem do Grial também conquistou cinco prêmios de dança no 20º Janeiro de Grandes Espetáculos, incluindo o de melhor espetáculo e melhor bailarina. Terceira parte de uma trilogia baseada em “contações de histórias”, Terra é um mergulho profundo na linguagem armorial de dança, que surgiu da parceria entre ela e o escritor Ariano Suassuna.

Proprietária do Ária Espaço de Dança e Arte, Cecília Brennand diz que sente a mesma emoção de estar em cena, ontem e hoje. Foto: Fernando Azevedo/Divulgação

Maria Paula explica que, no início, seria um espetáculo para o grupo, com a intenção de falar sobre o genocídio dos índios brasileiros, mas que, durante o processo, decidiu inaugurar uma “fase solo”. Com trilha original de Naná Vasconcelos, figurino de Gustavo Silvestre e luz de Luciana Raposo, Terra, que estreou em São Paulo no ano passado, volta a ser apresentado nos dois primeiros finais de semana de maio, agora ao ar livre, no Sítio da Trindade, no Recife.

Estar sozinha em cena deu à Maria Paula a possibilidade de investir na composição de uma personagem, concentrar-se integralmente na atuação, ao contrário das montagens anteriores, em que era consumida a maior parte do tempo pela preocupação em criar para o corpo do outro, no caso, para o elenco de bailarinos e/ou brincantes do Grial que ela ajudou a formar.

Outro ganho da experiência solo foi o fato de poder deixar algo do espetáculo reservado à improvisação. “Isso faz parte do meu saber, é parcela essencial na minha formação como bailarina. A idade ajuda, porque hoje tenho plena consciência desses saberes, sei mais do meu corpo e da minha dança. Não há espaço para o medo, me sinto mestra em improvisação. Existem dois tipos de dança: o que é baseado na técnica clássica e outro, com ênfase na expressividade. Esse é mais amplo na relação com o envelhecimento. Quanto mais maduro, mais o corpo fala. O corpo inteiro é muito expressivo, quando estamos nesta fase da vida.”

SOPRO DE ZÉFIRO
Também foi nas veredas da dança expressiva, na qual a emoção fala mais alto, que Cecília Brennand construiu sua trajetória, guiada por bailarinos como Mônica Japiassú e Zdeneck Hempl. Hoje, 37 anos depois, ela está nos palcos mais uma vez, orientada pelo olhar da primeira coreógrafa com quem trabalhou naquele já distante ano de 1977. Ao som do Trenzinho caipira, Cecília Brennand dá vida à “guardiã da natureza”, em um solo especialmente criado por Mônica Japiassú. “A emoção é a mesma, não sinto diferença pela idade que tenho, mas sinto que a falta de tempo para me dedicar à função de bailarina, depois que criei o Ária e me tornei empresária, interfere, sim, na minha experiência cênica”, esclarece Cecília, 54.

Ela acaba de reativar a Cia. Sopro de Zéfiro – Cecília Brennand para intensificar a presença da dança em sua vida. “Recomendações médicas”, avisa. “Não posso parar de me movimentar. Estava com princípio de artrose e, quando pensei que os especialistas iam me pedir para diminuir ou parar de dançar, recebi a receita contrária”, complementa.

O Villa – um musical Villa-Lobos, que acaba de estrear, marca também o reencontro de Cecília com outra personagem dos primórdios da sua carreira, Beth Gaudêncio, responsável pela concepção e direção de arte do espetáculo. Vida e obra do compositor Villa-Lobos servem de enredo para a montagem, que tem direção musical e regência de Rosemary Oliveira. Ana Emília Freire e Carla Machado estão no comando da coreografia e direção de cena. A iluminação é de Saulo Uchôa e há ainda a participação de mais uma coreógrafa convidada, Maria Inêz Lima. Cecília assina também a direção-geral.


Diretora do Grupo Experimental, Mônica Lira afirma que “liberdade”
é a melhor palavra para definir sua relação com a dança e o palco.
Foto: Camila Sérgio/Divulgação

Ainda insatisfeita com o pouco tempo que tem para a dança, ela diz que precisa se disciplinar para imprimir a rotina de exercícios que deseja e de que necessita. “Mas, pelo menos, já estou frequentando algumas aulas de Mônica Lira. E isso me faz um bem enorme. Não pretendo parar de dançar nunca.”

Mônica, Maria Paula, Cecília. Percursos diferentes e a mesma vontade de continuar “na dança”. Disposição e talento não faltam a essas bailarinas. Ouvindo o discurso das suas vozes e dos seus corpos, fica claro que o principal desafio não tem a ver com técnicas ou criações coreográficas, mas com a luta pela sobrevivência como artista, que as obrigou a assumirem outras funções tão imprescindíveis como estar em cena.

Diz Cecília: “Ficar sem dançar é como estar anêmica. Eu me realizo muito vendo os bailarinos do Ária em cena, mas é como se me faltasse algo, como se estivesse sem sangue”. Maria Paula também não consegue se imaginar fora do ambiente dos palcos. “O bom de estar vivendo a experiência de ser bailarina na maturidade é que agora sinto que sou integralmente o que estava tentando ser em toda minha vida profissional. Qual o lado ruim disso? Não tem.”

Liberdade: é essa a palavra que Mônica escolheu para definir seu momento atual na dança. “O palco é meu lugar de liberdade, nele me sinto em total intimidade comigo mesma. Liberdade plena, de corpo e alma, que me deixa completamente feliz. Por isso, continuo dançando e querendo fazer com que os outros também dancem. Gostaria que, um dia, todos pudessem experimentar a dança e a leveza que ela traz.”

No palco, a experiência artística acumulada em muitos anos de dedicação transcende a realidade difícil, e a dança de excelência dessas “senhoras” se impõe soberana, como exemplo de perseverança. Da plateia, não temos tempo ou espaço para observar “a idade” daqueles corpos, pois o movimento intenso, a força e a verdade daquela maturidade cênica nos capturam e comovem. 

CHRISTIANE GALDINO, jornalista, professora e mestre em Comunicação Rural.

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