Além de festivais independentes, como o Abril Pro Rock – a exemplo do que ocorre em grande parte do mundo –, passaram a dar maior atenção às bandas de metal. Produções desse tipo têm acontecido com frequência, a ponto de colocar o Recife na rota internacional de turnês de artistas relevantes. O resultado é que a maior abertura da mídia e das produções têm sido importantes para a maturação do underground local.
Aos poucos, o “patinho feio” da indústria cultural local, não muito silenciosamente, ganha evidência, por mais que isso ainda pareça estranho a muitos. Mas quem são essas pessoas? O que querem? O que fazem? Como pensam? Essas e outras perguntas justificam a pertinência e receptividade do livro Pesado – origens e consolidação do metal em Pernambuco (Funcultura) que, depois de um mês do lançamento, já tem praticamente esgotada a primeira edição.
A concepção e planejamento da obra possuem natureza acadêmica, resultado de pesquisas desenvolvidas por um grupo formado pelos sociólogos e professores Daniela Maria Ferreira e Amílcar Bezerra, ambos da Universidade Federal de Pernambuco, e pelo etnomusicólogo Jorge de la Barre (Sorbonne/UFF), que já desenvolviam estudos sobre o metal como estética e comportamento. De eventual consultor, o jornalista e autor do livro Wilfred Gadêlha passou a participar das reuniões periódicas do grupo, até ser convidado para apresentar o resultado das investigações em publicação.
Show da banda americana Morbid Angel no Clube Português, em 2009. Foto: Reprodução
O livro fundamenta-se em relatórios de uma pesquisa anterior – A cena metal no Recife pós-mangue – iniciada em 2009, com apoio da Fundarpe, e pesquisas qualitativas posteriores, voltadas para as percepções do gênero musical nas cidades do interior do estado. Contar com Wilfred Gadêlha como o mediador do projeto foi oportuno, já que, ao longo de 25 anos, participou ativamente do processo de desenvolvimento da cena, atuando como músico – atualmente é vocalista das bandas Cruor e Câmbio Negro HC – e editor de fanzines. Mais: na condição de testemunha e cúmplice dos marcos e acontecimentos descritos, acrescentou à narrativa um tom memorialístico que proporcionou ao texto equilíbrio entre o pragmatismo acadêmico e o discurso afetivo, que tornou a leitura acessível.
ARTESANIA
Da inocência das origens à ambição do “protagonismo outsider” dos tempos atuais, o livro, numa estrutura que contempla três partes distintas e complementares – O som, O espaço e A imagem –, explicita uma genealogia composta por ações de jovens e condições de produção bem diferentes das atuais para desenvolver música.
O livro descreve uma época em que não havia internet e assessores de imprensa e contava-se com fanzines, feitos em ofícios datilografados e ilustrados por colagens e artes em caneta esferográfica, que eram fotocopiados e comercializados a preços módicos para divulgarem releases, reviews e entrevistas. Relata um tempo em que não havia streamings e redes sociais e reproduziam-se vinis em fitas cassetes, que se multiplicavam entre os amigos.
Cartaz de um dos projetos musicais promovidos no estado.
Imagem: Reprodução
Nesse contexto, era muito comum entre os headbangers não haver recursos nem acesso a lojas para comprar camisetas de suas bandas preferidas. Por isso, pintavam à mão logotipos e ilustrações das bandas dos amigos, que orgulhosamente eram exibidas em dias de trabalho e lazer. A artesania era uma marca valorizada que sempre acompanhou os metallers, na intenção de viabilizar projetos, quando nada parecia mais importante do que ouvir e tocar música.
Os espaços e as condições para desenvolver música não existiam. Tocava-se em pequenos bares de subúrbio e cada instrumento servia muitas vezes para vários músicos ensaiarem e se apresentarem. A história das origens e consolidação do metal em Pernambuco confunde-se com a história de um romantismo que se caracterizava pela inocência e improviso, em que a amizade e a partilha eram fundamentos importantes, não apenas porque eram convenientes, mas sobretudo porque havia a crença de que o sentido da liberdade e rebeldia deveria ser compartilhado e mantido.
O livro Pesado – origens e consolidação do metal em Pernambuco chega em boa hora, para contar a história de quem parecia não ter nem saber contar a sua própria história. As memórias contidas na edição luxuosa deixam um legado importante, ao recordar que, na construção do labor artístico, o protagonismo também pode ser coletivo e que ainda não podem ser considerados piegas valores como a amizade entre pessoas, cuja música é medida de distância que as une e distancia de mundos que as cercam.
ROGÉRIO MENDES COELHO, professor de Literatura e Cultura Hispano-americana da UFRN.