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Essaouira: A fortaleza do Marrocos

Conhecida pela diversidade cultural e religiosa, cidade foi cenário para 'Otello', de Orson Welles, e, nos anos 1960, entrou no roteiro turístico de estrelas do rock

TEXTO LUÍS PATRIANI
FOTOS FERNANDO MARTINHO

01 de Maio de 2014

Foto Fernando Martinho

Dominada por diferentes povos e fonte de inspiração de muitos artistas, a antiga Mogador se revela o epicentro criativo no norte da África. Na costa atlântica do Marrocos, uma ensolarada cidade tombada como Patrimônio Histórico da Humanidade, chamada Essaouira, parece lançar algo de diferente no ar. O aroma, tal qual o cheiro exalado por qualquer outra comunidade do planeta que sobreviva da pesca, é de peixe fresco, de maresia.

A atmosfera desse distinto recanto marroquino, no entanto, por onde já passaram fenícios, romanos, portugueses, berberes e árabes, está carregada de elementos multiétnicos e culturais a inspirar quem entra em contato com seu espírito criativo. Particularmente, os artistas.

Assim como a força dos ventos alísios do Atlântico Norte, que atraem kitesurfistas, ou a abundância dos cardumes de atum retirados do mar, Essaouira – cujo porto de Timbuktu, no século 19, aglutinava povos como epicentro da rota comercial entre a África subsaariana, o Marrocos e a Europa – transborda história e arte.

Orson Welles foi um dos célebres impregnados pelo ambiente instigante e irradiante da cidade, que se chamava Mogador (nome português derivado do vocábulo fenício migdol, que significa pequena fortificação), no fim do período em que era dominada pelo reino de Portugal.

O autor de Cidadão Kane filmou grande parte de Othello, o mouro de Veneza, na fortaleza lusitana do século 16 que, em meados do século 18 – já dominada pela Dinastia Alauíta – foi reconstruída pelo engenheiro francês Théodore Cornut sob os princípios da arquitetura militar europeia. Detalhe: tudo projetado em harmonia com os padrões estéticos e urbanísticos árabes-muçulmanos, a exemplo da pequena medina (cidade murada) erguida junto ao porto e ao forte.


Nesses mercados, os souks, berberes e árabes comercializam artesanato

O orçamento baixo, os improvisos e a falência, durante as filmagens, do patrocinador do projeto encaminhavam a obra de Welles, baseada na peça teatral de William Shakespeare, ao fracasso. A vocação cinematográfica de Essaouira, contudo, ajudou o diretor a explorar todos os seus ângulos e a extrair uma intensa profusão de contrastes de luz e sombra. Basta lembrar a cena de abertura do filme (na peça, é seu epílogo), em que o cortejo fúnebre do general veneziano e sua esposa (ele a matara por ciúme e, em seguida, suicida-se, ao saber da sua inocência) acontece sobre a muralha defensiva em frente ao oceano.

O vigor da relação dos atores com o cenário revela o poder expressionista de Orson Welles, marcado pelas cenas dramáticas de ciúme, inveja, racismo e traição da obra shakespeariana. Mesmo com todos os contratempos, Otello conseguiu ganhar a Palma de Ouro do Festival de Cannes, em 1952.

Na década seguinte, no auge da contracultura dos anos 1960 e início dos 1970, foi a vez dos hippies elegerem Essaouira como sua meca no norte da África. Mick Jagger, Paul Simon, Frank Zappa, a banda Jefferson Airplane, Cat Stevens, que, por coincidência ou não, depois de usufruir muitos verões na cidade, adotou o nome Yusuf Islam e se converteu ao islã, são alguns exemplos.

Julian Beck e Judith Malina, fundadores do grupo nova-iorquino de teatro experimental Living Theatre, que misturavam palco com arte visual, também se renderam à ebulição da antiga Mogador, alugaram uma casa, onde passavam longas temporadas, e deixaram para trás quadros psicodélicos pendurados nas paredes que inspiraram artistas locais.

A presença de Jimi Hendrix, por sua vez, rende até hoje muitas lendas. A mais notória diz que o músico teria composto a clássica Castles made of sand, do álbum Axis: bold as love, depois de conhecer a ruína de um forte próximo a uma praia em Essaouira. Apesar de falsa, já que a canção foi gravada em 1967 e ele esteve na região em 1969, a história faz parte dos contos do universo onírico e inebriante da cidade.

VIELAS
Venerações hippies à parte, o encanto de andar pelas vielas da pequena e preservada medina é tão real quanto a constatação de que a herança multiétnica está por toda parte. Descendentes de escravos da chamada África Negra, cujos antepassados vieram para cá na época em que o porto escoava produtos da rota transaariana, vendem roupas coloridas, máscaras e colares usados no passado em ritos e festas tribais de países como Mali, Senegal e Burkina Faso.


Arte de rua expressa o destaque que a música encontra na cidade

Junto a eles, nos chamados souks (mercados), povos berberes e árabes comercializam seus tradicionais tapetes, cada um com técnica própria, textura, forma e cor. Alguns feitos com lã de camelo e mais de nove mil nós chegam a custar 600 euros e levam 10 meses para ficarem prontos.

Em meio a barracas de especiarias e oficinas de madeira (Essaouira é famosa pela marchetaria de tuia, uma árvore típica da região), pintores e escultores de arte naïf (caracterizada pelo autodidatismo, traços ousados e uso de cores vivas e primárias) expõem suas obras nas ruas.

Nas galerias de arte, a exemplo da Damgaard, o espaço é para artistas mais famosos, como Mostafa Assadeddine e seu simbolismo africano, que já expôs em Paris e ganhou prêmios de arte primitiva na Suíça, e Mohamed Erraad, com seus personagens animalescos e fantasmagóricos.

A diversidade religiosa, por sua vez, evidencia-se no Mellah, o bairro judeu, cuja comunidade, que chegou a representar 40% da população no século 18, desempenhou um importante papel, quando o sultão Mohamed Ben Abdallah fez uso dela para estabelecer relações com judeus na Europa e organizar as atividades comerciais com o velho continente.

Apesar da maioria da comunidade judaica ter ido embora para Israel, França e Canadá, ao fim da Segunda Guerra Mundial, é possível ver sinagogas, em especial a de Simon Attias, do século 19, lado a lado com igrejas católicas portuguesas e mesquitas muçulmanas.

O convívio pacífico, assim como a estabilidade social, política e econômica do Marrocos, é uma das marcas dessa monarquia constitucional islâmica, reestabelecida em 1957, após conseguir a independência da França.


Povos que habitam a cidade vivem em diferentes estratos culturais e atemporais

MÚSICA DE TRANSE
De volta à cena multicultural da cidade, a partir do final do século 20, o auge da efervescência artística em Essaouira acontece no mês de junho, quando é realizado o festival internacional de música gnawa, chamada de música de transe, que atrai milhares de pessoas do mundo todo no evento que é considerado um dos maiores do Marrocos.

Durante os quatro dias do festival, as vielas da cidade fortificada servem de palco para diversos shows e jam sessions de gnawa music, originária da combinação de elementos da tradição de descendentes das irmandades negras de escravos (que foram tomadas a partir de Mali, Guiné e Gana para ser transportados no porto de Essaouira) com o folclore islâmico.

Os rituais noturnos de transe geralmente duram toda a noite e são marcados pela dança, cantos e outras cerimônias para incentivar os espíritos que habitam um corpo humano a se conectar e curar a alma. Marcada pelo caráter religioso e por uma frase musical repetida inúmeras vezes (pode durar horas, sem interrupções), a música gnawa é tocada por instrumentos peculiares. O hajhuj, um baixo de três cordas, e o hajhouj, uma guitarra feita de couro de camelo e cordas de raízes de árvores secas, são acompanhados por tambores chamados de ganga e grandes castanholas de ferro.

O tempo, no entanto, trouxe um aspecto profano para a espiritual tradição e hoje apresenta fusões que misturam jazz, rap, blues, música eletrônica e reggae.

Os shows são divididos em programações diferentes, mas complementares. Na primeira parte, a partir das 23h, os Maalem Gnaoua e suas bandas tocam entre seis e nove horas a versão pura e tradicional de gnawa music. No meio da madrugada, começam as apresentações de grupos, muitos deles de países da Europa e dos Estados Unidos, de jazz e outros gêneros.

Uma curiosidade em torno da música gnawa e um artista do Brasil: durante o Festival de Música Gnawa de 2012, o ministro da Cultura de Essaouira, Mohamed Amine Sbihi, e o ministro da Habitação, Nabil Benabdellah, assinaram um acordo para a criação de um centro cultural na cidade e convidaram o arquiteto Oscar Niemeyer para desenvolver a proposta. Esse foi o último projeto dele. Inspirado na figura de uma gaivota voando sobre a orla de Essaouira, Niemeyer fez uso das formas curvilíneas e arredondadas que caracterizam seu estilo, para desenhar o prédio que será composto por uma biblioteca de literatura e um anfiteatro para 300 pessoas. Após a morte de Niemeyer, que já havia finalizado a planta, o arquiteto marroquino Rachid Andaloussi irá gerenciar o andamento da construção. 

LUÍS PATRIANI, jornalista, especialista em viagem, cultura e meio ambiente.
FERNANDO MARTINHO, fotógrafo.

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