Pelas terras tupiniquins, a técnica só chegou com os portugueses, que, rapidamente, a implantaram na Colônia, como registrou o poeta viajante Pyrard de Laval, na Bahia, em 1610, no artigo Na Bahia colonial: “É impossível terem-se carnes mais gordas, mais tenras e de melhor sabor. Salgam as carnes, cortam-na em pedaços bastante largos, mas pouco espessos. Quando estão bem salgadas, tiram-nas sem lavar, pondo-as a secar ao sol; quando bem secas, podem conservar-se por muito tempo”.
Desse tempo, e falando especificamente da Região Nordeste, herdamos a carne de sol. “Na verdade, deveria se chamar de carne de vento, uma vez que o controle de sua transformação é muito mais feito pela combinação do ar e do sal do que propriamente pelo sol”, sugere o pesquisador e sociólogo em alimentação Raul Lody. Bisneto de um produtor de carne de sol do interior da Paraíba, que passou a tradição para a família, o cozinheiro Wanderson Medeiros carrega 122 anos de expertise na produção do insumo e explica com legítimo empirismo: “Leva o sobrenome ‘de sol’, porque era retirada da cura, feita nos próprios quintais das casas, nos primeiros raios da manhã”. Como era uma fórmula executada no interior de estados do Nordeste, durante a noite e na madrugada, horários nos quais a carne ficava curando, a temperatura era bastante fria, o que potencializava a técnica.
Na produção da charque, para evitar que a carne fique seca, são sempre
escolhidos cortes com gordura. Foto: André Nery/Divulgação
Com o advento da geladeira, e até mesmo do condicionador de ar, a técnica continua a mesma, mas muda o artefato tecnológico – o que não deixa de alimentar uma identidade comestível. Wanderson conta que produz mensalmente cerca de uma tonelada de carne de sol no próprio restaurante de selo regional, o Picuí, na capital alagoana. “Utilizamos os cortes do contrafilé e filé mignon, e, para cada quilo deles, usamos 40g de sal fino para curar a carne, que deve estar com cortes, para que o sal penetre com mais facilidade”, explica.
Em seguida, a carne é deixada durante quatro horas em uma câmara fria, tal qual uma geladeira. Após esse tempo, verifica-se se existe algum ponto vermelho na peça, já que o sal escurece a proteína. Se houver alguma área não curada, identificada pelo tom rubro, põe-se mais sal na região e leva-se a carne para o congelador por cinco dias. “Depois desse tempo, a carne de sol já está pronta. Para o consumo, é necessário lavar a carne, e deixá-la repousando em uma tigela com água por 30 minutos. Faça isso três vezes, e finalize da forma que quiser: na brasa, no forno, frita na manteiga de garrafa”, sugere o chef.
Pode-se dizer que a propriedade conservante do sal foi um fator que influiu decisivamente na ocupação do território brasileiro. “O charque, outro resultado dessa técnica, junto à farinha de mandioca, foi a base da alimentação dos boiadeiros nordestinos que avançaram pelo interior em direção ao sul do país, prospectando terras, bem como dos bandeirantes paulistas que seguiram pelo noroeste em busca de novas riquezas”, lembra Lody.
Ao contrário da carne de sol, o charque não necessita de refrigeração para sua desidratação. O montante produtivo também se destaca, é feito em larga escala e transportado por longas distâncias. No preparo, a carne bovina é desossada, cortada em largos e delgados pedaços, conhecidos como mantas, salgada com bastante sal (cerca de 2 cm por cima das peças), empilhada e posta em galpões arejados. Sempre se escolhem cortes ricos em gordura para evitar que a carne fique seca. Para facilitar o processo, é constantemente mudada de posição. Após essa etapa, é rapidamente lavada para retirada do excesso do sal, seguindo para exposição solar.
Após ser pescada, a manjuba é salgada e depois vendida nas feiras do interior.
Foto: André Nery/Divulgação
DO MOQUÉM AO PIRAÉN
Mas nem sempre é necessária a combinação sal e sol para desidratar. Quando escreveu História de uma viagem à terra do Brasil, o intelectual francês Jean de Léry tornou mundialmente pública a técnica indígena do moquém. “Colocam a carne cortada em pedaços, acendendo um fogo lento por baixo, voltando a carne e revirando de quarto em quarto de hora até que esteja bem-assada. Como não salgam suas viandas para guardá-las, como nós fazemos, esse é o único meio de conservá-las”, escreveu. O viajante, que veio registrar os hábitos e as particularidades da terra recém-descoberta, inclusive (e sobretudo) os de mesa, fazia menção ao moquém, esboço de churrasqueira composto por grelhas de varas utilizado pelos índios para “moquear” (assar) os peixes na brasa.
Três séculos depois, o aventureiro italiano Conde de Stradelli, que passou 43 anos morando na região amazônica, detectou em suas pesquisas a técnica do piraén, que nada mais é do que o peixe salgado e seco ao sol. Ou seja, nesse hiato de três séculos, ficou claro que a influência portuguesa se disseminou nas aldeias, agregando um novo tipo de preparo culinário voltado à conservação.
No caso dos pescados, existem três métodos de salga: a seca, na qual o peixe é coberto de sal; a úmida, imerso em uma salmoura; e a mista, quando o processo começa seco e termina úmido. Em ambos, o sal consegue penetrar nas fibras, expelindo a água. Bom exemplo do tipo seco são as piabas e manjubas, que, após serem pescadas, são imediatamente salgadas (cerca de 30% de sal para o peso do peixe) e postas para secar ao sol.
Dali em diante, resistem dias a fio, sem apodrecerem, e chegam às feiras públicas e mercados do interior dos estados. Depois de serem fritas, viram proteínas de subsistência para o homem sertanejo. “Normalmente se come com farinha. E, como é salgada, dá logo sede. A água faz volume no estômago com a farinha e o cidadão fica satisfeito”, conta o pescador e ambulante Carlos do Camarão, que vende o peixe salgado, e o crustáceo que lhe rende a alcunha nos arredores do Mercado de São José, no Recife.
Os indígenas brasileiros moqúem assavam a carne como um método de desidratação e conservação. Foto: Reprodução
Já as sardinhas salgadas (também chamadas de sardinha de cambiteiro), bastantes recorrentes nos mercados públicos, são frutos do método misto. São, primeiramente, desidratadas a seco em tanques, e depois completam a “cura” na salmoura que se forma naturalmente. “Ainda assim, se você quiser um maior tempo de conservação, é bom colocá-la no sol para secar depois, para perder um pouco da água que fica”, recomenda o pescador.
BACALHAUS
Do mar também vem o bacalhau. E aqui é bom dar razão ao ditado português que diz: “Bacalhau não é peixe nem é carne. Bacalhau é bacalhau”. Bacalhau nada mais é que a técnica milenar de salgar e secar os peixes da família dos gadídeos, conhecidos por não terem muita gordura. O mais famoso (e mais nobre) é o Gadus morrhua, do Atlântico Norte, seguido do Gadus macrocephalus, do Pacífico, do zarbos, do ling e do saithe.
O Brasil também tem sua versão de “bacalhau”, o pirarucu, das águas doces da Amazônia, conhecido como “bacalhau amazônico”, que, por conta do baixo teor de gordura na carne, passa pelo mesmo processo de maturação. Todos eles são curados pelo método seco, já que são peixes magros. Segundo o autor Harrold McGee, na obra Comida e cozinha, é preferível salgar peixes magros a seco e os gordos em barris, por conta do ranço causado pela gordura.
“Por meio do contato com a luz e o oxigênio, a tendência da gordura é oxidar. Com a oxidação, naturalmente, virá o ranço. Por isso o motivo de preferência em salgar peixes gordos com métodos que os protejam desses fatores, como os barris”, esclarece o escritor.
Com os pés nas raízes nortistas, mas também de olho nos novos aparatos tecnológicos, o chef Thiago Castanho, à frente do Remanso do Peixe e Remanso do Bosque, em Belém do Pará, resolveu esse entrave, curando o pirarucu a vácuo. “Sem ar, o peixe fica protegido do ranço, mas tem o sabor alterado pelo processo de desidratação que ocorre em baixa pressão. No final das contas, a salga acontece de forma mista, já que a salmoura também atua dentro do vácuo”, explica o cozinheiro.
EDUARDO SENA, jornalista.