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Brinquedo: Um livro para montar

Por conta da engenharia do papel, técnica já esboçada no século 13, essa peça de leitura torna-se também atraente objeto de manuseio, sobretudo para crianças

TEXTO Priscilla Campos

01 de Maio de 2014

Versão de Sam Ita para 'Mob Dick' propõe ao leitor aventuras e surpresas no manuseio

Versão de Sam Ita para 'Mob Dick' propõe ao leitor aventuras e surpresas no manuseio

Foto Breno Laprovitera

Cascas de árvores, fibras de caules de trigo, extremidades de cânhamo e farrapos de algodão. Tritura tudo, mistura e coloca em cima de um tecido trançado, de preferência, uma rede de pesca. Qual não foi a felicidade do cortesão chinês Cai Lun, no ano 105 d.C., ao finalizar essa receita no seu belo jardim oriental e se deparar com uma superfície lisa, fina, maleável e pronta para ser manuseada por mãos e pincéis. Ali, nascia uma forma mais refinada e definitiva do papel, item primordial para o desenvolvimento da arte e da cultura em diversos países ao longo dos séculos.

Da China para a Alemanha do século 15. O papel se encontra com as letras e a prensa móvel de Gutenberg, formando um trio imbatível para a impressão em massa. Tipografia, projeto gráfico, texto, imagens e, aos poucos, os livros ocupam o posto de importante plataforma bidimensional para disseminação do conhecimento. Porém existem algumas técnicas e informações que parecem ter sido constantemente esquecidas nessa linha histórica do saber.


O nova-iorquino Sam Ita especializou-se em engenharia do papel, técnica que intuitivamente desenvolveu desde criança. Foto: Sheena Kin/Divulgação

De acordo com o designer britânico Mark Hiner, foi no século 13 que os primeiros livros com elementos interativos começaram a surgir. Escritos à mão, eles possuíam discos com mecanismos rotativos, utilizados para revelar símbolos e palavras ao longo da narração. Essa ideia lúdica, de provocar certa “mágica” bem na frente do leitor, configura o primeiro registro da engenharia do papel, método tridimensional ainda pouco explorado no Brasil e bem-assimilado pela literatura infantil.

“Os livros pop-ups, como nós conhecemos hoje, com o papel ‘pulando’ para fora da página, surgiram no final do século 18, na Inglaterra. Esses tipos de livros eram, geralmente, utilizados como manual de instruções, para que os estudantes de arte aprendessem perspectiva. As publicações pop-ups infantis, assim como a expressão pop-up book são datadas da década de 1920. A primeira aparição desse tipo de produto nos Estados Unidos foi a da série Bookano books, de S. Louis Giraud”, explica o designer e engenheiro do papel Robert Sabuda, um dos nomes atuais mais famosos e conceituados da área.

O norte-americano, responsável por construir belos cenários dobráveis para clássicos como A pequena sereia, A bela e a fera, entre outros livros infantis, conta que ficou apaixonado ainda criança pela mecânica do papel. “Quando eu era menino, adorava os pop-ups e, sozinho, dei um jeito de aprender alguns exemplos simples de como fazê-los. Até hoje, não perdi o amor pelo manuseio do papel”, lembra Robert. De acordo com o designer, a arte tridimensional necessária para realizar a técnica está presente desde o início do processo de criação. “Eu nunca desenho o que pretendo fazer em pop-up na segunda dimensão, porque não existe garantia de que aquilo vai funcionar na terceira! Começo a cortar e dobrar o papel para ver quais ideias podem sair interessantes dali. Claro que, na minha cabeça, tenho uma ideia básica de como eu queria que ficasse, mas não posso ter certeza da funcionalidade do projeto, até que ele esteja, de fato, na terceira dimensão”, esclarece.


O clássico Vinte mil léguas submarinas em sua versão livro-brinquedo.
Foto: Breno Laprovitera

Existem diversas maneiras de aplicar a ilusão tridimensional em livros, desde mecanismos mais elaborados e elegantes até as práticas que envolvem o trabalho com planos e falsos volumes. Porém é na montagem final das publicações que residem o mistério e a alquimia da engenharia do papel.

A maioria dos livros pop-ups criados por designers norte-americanos e europeus tem sua execução na China (eles, de novo!), por uma mão de obra especializada. Esse sistema de mercado parece funcionar para os profissionais gráficos das terras além-mar, que, apesar de não possuírem preocupações financeiras, ainda encontram algumas barreiras entre os pop-ups e o público, como explica o designer e engenheiro do papel nova-iorquino, Sam Ita.

“O pessoal aqui, nos Estados Unidos, adora os livros interativos. Mas, em minha opinião, existe um problema recorrente para os pop-ups: muita gente passa desatenta por eles nas livrarias (pois a capa é normal, em segunda dimensão) e perde a chance de abri-los e ver o outro universo tão vivo lá dentro”, observa Sam.

No Brasil, esse tipo de trabalho é conhecido por custar muito caro e poucos são os que se aventuram ou possuem expertise para realizá-lo. Porém, há nove anos, um pernambucano decidiu iniciar um caminho de investimento e dedicação à engenharia do papel.


O livro A pequena sereia é repleto de instigantes cenários e cores.
Foto: Breno Laprovitera

POP-UP NORDESTINO
Assim como Robert Sabuda, o designer gráfico Erick Vasconcelos viu-se envolvido pela mágica oriental durante a infância. “Desde o tempo em que eu nem sonhava em ser designer, já gostava de brincar com o papel. Quando criança, criava personagens a partir do material e acabava usando-os como brinquedos. Na universidade, conheci e me aprofundei na técnica de engenharia do papel, e acabei decidindo por abordá-la no meu trabalho de conclusão de curso”, conta.

A partir de sua pesquisa acadêmica, Erick iniciou a coleção intitulada A cultura pernambucana em 3 dimensões, série de livros que associam a cultura popular do estado com a técnica do pop-up. “Essa ideia de ligar o conteúdo regional à engenharia do papel surgiu na própria universidade. Nós estávamos estudando e experimentando as diversas técnicas de ilusão tridimensional aplicadas a livros, e o objetivo final da disciplina era desenvolvermos um livro interativo, cujo tema deveria ser algum elemento da nossa cultura local. Foi aí que, sem grandes pretensões, nasceu o esboço de Os gigantes de Olinda. Após reconstruí-lo e desenvolvê-lo como projeto de conclusão da graduação, consegui publicá-lo, através de incentivo. O resultado foi tão positivo, que resolvi amadurecer e expandir o projeto, criando a coleção que resultou em mais dois livros: O pipoco dos bacamarteiros (lançado no ano passado) e o É frevo no pé (ainda em processo)”, explica.


Os livros desenvolvidos por Erick Vasconcelos trazem temática da cultura popular.
Foto: Divulgação

Para construir o fio narrativo do projeto mais recente, O pipoco dos bacamarteiros, Erick convidou a redatora e roteirista Flavinha Marques, que realizou uma vigorosa investigação itinerante até chegar ao texto que conta a história de Zé Pipoco e Maria Fumaça. “Não existe muito registro histórico impresso sobre os bacamarteiros. Na época, Erick estava na África, então iniciei sozinha uma pesquisa de campo pelo Agreste, para entender com mais precisão aquele cotidiano, os detalhes das roupas, as minúcias das apresentações”, explica Flavinha. Moradias e paisagens do interior, como a Igreja de São João e a Feira de Caruaru, serviram de inspiração para os cenários dos personagens.

Paralelamente à concepção da narrativa, Erick já havia definido o método de engenharia do papel a ser utilizado nos livros. “Eu optei pelo mecanismo de ‘cenário’. Escolhi essa técnica por achar que o resultado final ficaria mais interessante. No ‘cenário’, através de facas complexas de cortes (máquina motorizada decisiva para os bons resultados da engenharia do papel), o livro apresenta diversas camadas, uma sobreposta a outra, originando a ilusão de tridimensionalidade, tal qual o cenário de uma peça de teatro”, explica o designer.


Para a criação dos desenhos de O pipoco dos bacamarteiros, a roteirista Flavinha Marques realizou pesquisa de campo. Foto: Divulgação

O resultado final é um formato que possibilita ao livro a transformação, quando completamente aberto, em um móbile supercolorido. “Acreditei também que, por não ter alavancas ou abas escondidas, seria mais fácil de viabilizar a sua produção e reduzir os custos da sua execução. Hoje, já na preparação para o terceiro livro, peguei um pouco o jeito de como deveria construir as ilustrações, de modo que elas funcionassem bem na montagem. Levo em consideração o tamanho, a posição, a visibilidade de cada elemento e a interação entre eles”, conclui.

Quando chegou o momento mais delicado do processo, a produção manual da tiragem, Erick esbarrou em algumas dificuldades. De acordo com o designer, o primeiro volume (fabricado em 2006/2007), por se tratar de um material novo tanto para ele quanto para as gráficas pernambucanas, que, na época, ainda não estavam acostumadas a trabalhar com facas complexas de cortes em um material que exigisse tanto manuseio, foi o mais complicado. No segundo, fabricado em 2012, Erick encontrou uma gráfica que dominava os conhecimentos de impressões especiais e possuía ferramentas importantes para o desenvolvimento das técnicas. “A experiência adquirida anteriormente também foi determinante para a evolução da qualidade do trabalho”, afirma.

Foto: Divulgação

Diante de uma arte que requer tanto empenho, tato e atenção pessoal, é inevitável não escutar o eco midiático e acadêmico tão insistente nos últimos anos: o papel vai acabar. Para os mais pragmáticos, então, todos esses mecanismos aperfeiçoados pelos engenheiros de papel, ao longo de séculos, não passaria de uma engrenagem obsoleta na máquina do entretenimento. Nesse ponto, o designer pernambucano tem um pensamento bem próximo da ousadia e imaginação daquele milenar cortesão chinês.

“Eu acho que, com essa recente obsessão pelo digital, o inusitado do objeto feito de papel salta aos olhos e torna-se cada vez mais fascinante e inesperado. Na verdade, acredito no seguinte: futuramente, essas duas coisas (papel + plataformas eletrônicas) poderão se combinar de alguma forma. Imagine, por exemplo, um livro pop-up feito com algum tipo de papel digital, que seja sensível ao toque. É digital, mas, ainda assim, manuseável como papel. Parece viagem, eu sei, mas se hoje já é possível encontrarmos livros com dispositivos que emitem sons e luzes, amanhã poderemos ter livros capazes de armazenar e exibir conteúdos que possam ser atualizados. Acho tudo isso uma possibilidade.” 

PRISCILLA CAMPOS, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.

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