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“Acho que a arte tem de conter uma utopia”

O escritor angolano Valter Hugo Mãe comenta seu novo livro, 'A desumanização', ambientado na Islândia e narrado por uma garota, e a reincidência da temática da família nos seus romances

TEXTO Luciana Veras

01 de Abril de 2014

Valter Hugo Mãe

Valter Hugo Mãe

Foto Nelson Aires/Divulgação

"Éramos gêmeas. Crianças-espelho. Tudo em meu redor se dividiu por metade com a morte.” A dor da perda, enunciada pela irmã sobrevivente Halla, dá o tom na primeira página de A desumanização, novo romance do português Valter Hugo Mãe, lançado no Brasil (Cosac Naify) neste mês. Sexto livro do angolano, nascido em 1971 e radicado em Portugal, é o primeiro a se afastar de solo pátrio rumo a um novo horizonte narrativo – e mais um capítulo da trajetória iniciada em 2004, com O nosso reino, e seguida por O remorso de Baltazar Serapião (2006), O apocalipse dos trabalhadores (2008), A máquina de fazer espanhóis (2010) e pelo sucesso de O filho de mil homens (2011).

Por telefone, em uma recente madrugada europeia, o poeta, cantor, compositor, escritor também de livros infantis Valter Hugo Mãe falou à Continente sobre A desumanização. Narrada por uma garota de 11 anos entre fiordes, rompantes de violência, saudades e descobertas na longínqua Islândia, a obra evidencia a delicadeza do estilo linguístico que o caracteriza, aprofunda temas já apresentados, porém, talvez pela paisagem extraordinária (descrita com precisão e melancolia), vislumbra um outro caminho para esse autor que fala de pessoas que amam, erram, perdem, choram e sempre perseguem qualquer coisa que se possa sentir.

Sentimento não lhe falta. Surge na conversa o assunto da paternidade, de que tratou em entrevistas na sua última vinda ao Brasil (em novembro/2013). VHM não refuga: “Todo mundo foi deixado ou já deixou alguém, toda gente falhou em alguma coisa. Não preciso ter vergonha de não ter filhos, mas sinto uma frustração de não ter. A gente deve ter vergonha de outras coisas, de roubar, de matar. As pessoas vivem muito assustadas consigo mesmas. Elas são os seus próprios predadores”. Pais e filhos, amantes, viúvos, crianças e adultos, predadores ou não, pertencem a seu universo literário e estão sempre a acompanhá-lo.

CONTINENTE A desumanização é seu sexto romance e o primeiro em que você sai de Portugal, levando a história a um cenário diferente e inóspito. O que gerou essa mudança?
VALTER HUGO MÃE Eu sempre tive essa coisa de fugir dos livros que já escrevi, de não deixar que algo vire uma receita. Para mim, sempre foi muito importante partir de outros pressupostos, de outras referências, de outras personagens, muito embora as minhas nunca tenham sido exatamente coincidentes comigo enquanto pessoa. Ao fim de cinco romances escritos dentro de uma mundividência mais ou menos portuguesa, achei que precisava aumentar o desafio. Então, precisei sair, a escrever como se estivesse a começar tudo, como se verdadeiramente começasse outra vez, a aprender outra vez como fazer um romance. A Islândia era um país que me fascinava há muito. Sempre quis lá ir, conhecer melhor sua cultura e achei que era a oportunidade perfeita: começar um livro em que as minhas referências portuguesas não estivessem em causa e talvez não servissem para nada. Aquilo que diz respeito especificamente a Portugal não interessa nada a A desumanização. Correr esse risco foi a minha intenção.

CONTINENTE Na narrativa, existe a opressão da natureza, que é tão forte no que Halla está contando, e ainda a vastidão da paisagem, os fiordes, o frio e também a solidão. Aquelas pessoas estão isoladas numa vila que parece tão pequena como a dos Sargas em O remorso de Baltazar Serapião. A sensação de isolamento fica amplificada pelo fato de ser na Islândia.
VALTER HUGO MÃE Exatamente. Essa história poderia ser mais ou menos contada acerca de outro país, mas nunca resultaria no mesmo livro. Ao mesmo tempo, há uma sensação da própria Islândia ser gente, do próprio lugar ser gente. E isso leva a uma construção que me interessou muito porque conduz a uma ideia complexa da solidão. Para nós, que talvez estejamos habituados a outros tipos de lugares ou outros tipos de paisagens, quando estamos no fim de uma montanha, podemos sentir que estamos absolutamente sós. Mas, efetivamente, aprendi que os islandeses dificilmente se sentem sós, porque espiritualizam a natureza. Sendo espiritual, a natureza é sempre uma companhia. Ouvi muito isso na Islândia, pressenti muito essa questão espiritual da natureza, como se ela tivesse uma forma de inteligência e tomasse decisões.

CONTINENTE Ao mesmo tempo em que aponta para a diferença de estar ambientado fora de Portugal, A desumanização traz temáticas que são recorrentes nos seus livros. Uma delas é a família, presente na sua obra, mas nunca de maneira convencional. No romance, volta a existir um tensionamento entre figuras-chave da família, como a narradora e sua mãe. Como se dá esse conflito em A desumanização?
VALTER HUGO MÃE Sou muito crítico em relação ao espartilho criado para o que deve ser uma família. Porque as famílias são tudo e não há famílias normais. As famílias são feitas de todas as formas. Creio que, em A desumanização, como em O filho de mil homens e em todos os meus livros, faço uma crítica à visão fechada da família. Isso porque eu fiquei solteiro, odeio ter ficado solteiro, não tive filhos, odeio não ter filhos... Preciso acreditar numa família diferente, preciso acreditar que outras pessoas podem me ser familiares. Então, os meus livros passam muito por essa construção ou desconstrução do mito da família tradicional. Conto muito e quero muito contar com amigos como gente de casa, como família. Em O filho de mil homens, o que eu faço? Invento um mundo de gente que não tem nada a ver uns com os outros, uma gente improvável que termina pertencendo-se. Em A desumanização, faço o contrário: começo com gente que se pertence e, que, depois, de uma forma improvável, se afasta. Os dois livros ironizam esse papel tradicional da família.

CONTINENTE Como convive com os personagens enquanto está pensando em um novo livro? É uma ideia, uma voz que surge, um desejo de mudar, de falar de um outro jeito? E depois, como se despede deles para buscar novos caminhos?
VALTER HUGO MÃE Sou muito obstinado. Fico muito obcecado com as personagens, fico procurando-as e mantendo-as muito próximas. Quando começo a criação de um livro, quando eu decido sobre o que quero escrever, de uma forma um pouco estranha, porque é uma decisão quase compulsiva quando me surge a primeira personagem, começo colecionando características. Todas as palavras, aquilo que vou escutando nas ruas, as minhas conversas com os amigos, tudo é uma espécie de casting. Costumo dizer que tem uma fase em que faço o casting das personagens. Às vezes, não só para encontrar a personagem, mas para encontrar como ela é, o que diria, que tipo de linguagem poderia ter. E o mundo, nessa altura, é mais interessante se me corresponder e é menos interessante se não me corresponder. Se eu estiver escrevendo sobre a Islândia, nesse momento, ela é quase o único lugar do mundo onde eu quero estar, único lugar capaz de ser bonito. É claro que é uma loucura, mas é um enfoque, uma forma de degustar. Sempre tenho isso. Quando escrevi O filho de mil homens, por exemplo, há umas passagens em que falo de orégano. Durante a escrita, eu andava obcecado com orégano. Houve uma garota que ofereceu para mim um ramo de orégano e eu coloquei na sala. Toda gente entrava no meu apartamento e achava que eu tinha mandado vir pizza. Porque tem esse cheiro e todo mundo achava que eu tinha acabado de receber a pizza e ia comer. É uma fixação que leva a que eu mantenha de perto as coisas que me remetem ao livro.


Foto: Reprodução

CONTINENTE Como essa fixação, a coleta das referências e a feitura do casting se transmutam em linguagem? Você tem uma escrita peculiar, descrita por José Saramago como um “tsunami linguístico”. Como é o trabalho da escrita, de forjar as frases? É o tipo de escritor que tem disciplina, que reserva horários para escrever?
VALTER HUGO MÃE O livro começa com apontamentos, impressões, pequenas palavras, frases que vou tomando nota num caderno. Só mais tarde, quando o caderno está, eu diria, meio ou às vezes cheio, é que começo efetivamente a escrever. Só depois de ter uma ideia mais ou menos clara de quem é o sujeito sobre o qual vou escrever é que começo. Mas nunca escrevo de manhã. Acho obsceno acordar cedo, procuro acordar sempre tarde. Sou muito indisciplinado. Na maneira como escrevo, sou muito intuitivo. Normalmente, as frases e o modo às vezes estranho da expressão surgem como por uma oferta do inconsciente, uma coisa que está lá e que vem de uma qualquer natureza. O que me acontece é que, normalmente, começo mesmo a escrever. Há qualquer coisa que me ajuda, que não sei bem explicar, mas que ajuda a encontrar diferenças, a encontrar caminhos menos óbvios. Sempre termino grato.

CONTINENTE E como segue em frente?
VALTER HUGO MÃE O livro, quando acaba, fico desolado, derrotado. É porque aquilo é estranho, é quase uma forma de pensar; não tem como sair dali e voltar ao normal, ao que era antes. A gente muda com os livros. Os livros são modos de ver aquilo que não tínhamos visto até então, mas, depois de ver, não dá pra ignorar que vimos. Não dá para voltar a ser criança. O que acontece é que, ao mesmo tempo em que fico muito deprimido quando termino o livro, procuro aprender a perdê-lo e depois a ganhar algum outro livro qualquer, a ganhar outra gente qualquer. É sempre essa relação de acabar e recomeçar. No fundo, é quase como voltar sempre atrás, voltar sempre ao lugar de início, voltar a aprender tudo, tudo quanto seja possível. Mas tenho sorte: a natureza do livro vai decidindo muita coisa. Por vezes, tenho a sensação de que não sou nem eu a decidir coisas minhas.

CONTINENTE Nos seus livros, as personagens estão sempre em movimento. Depois que Sigridur morre, Halla empreende a sua jornada em A desumanização; Crisóstomo sai de um lugar para achar Isaura em O filho de mil homens; já em O apocalipse dos trabalhadores, Andriy é um imigrante da Ucrânia completamente desenraizado. O tema do deslocamento, de identidade e migrações é uma constante na sua obra. De onde vem isso?
VALTER HUGO MÃE Esse movimento é uma mistura, uma mescla, e essa é a forma de colocar em crivo tudo aquilo em que nós acreditamos. Quando nós nos deslocamos, saímos do nosso lugar, repensamos as coisas, recomeçamos. E afinal percebemos que o mundo pode ser completamente de outra maneira e que aquilo que nós tomamos como certo pode ser absolutamente errado. Por isso é um combate a uma identidade empedernida. A viagem tem isso, não é? A viagem é construção de uma identidade dinâmica. Viajar, sair, mover: nós não deixamos de construir uma identidade, mas passamos a ter a noção de uma certa dinâmica das coisas, que nos leva a perceber que tudo podia ser de outra forma. Que aquilo que nos foi dito quando pequenos só é válido na medida em que nós quisermos que isso seja válido. Porque o mundo pode ser completamente da outra maneira.

CONTINENTE Que autores você lia no início da construção do seu eu literário? E quais escritores o fascinam hoje?
VALTER HUGO MÃE Eu lia sobretudo poesia. É claro que foi muito importante para mim a prosa de Kafka, mas, sinceramente, os autores com os quais me fascinei e aprendi a escrever foram: um português chamado Herberto Helder, um poeta que eu adoro, Ruy Belo, Fernando Pessoa, João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, que foi alguém que li muito... Também Manoel de Barros, Walt Whitman, um poeta português chamado Alberto de Oliveira, Luís Miguel Nava, Adília Lopes, todos poetas. Atualmente, gosto muito de um espanhol chamado Ricardo Menéndez Salmón. Ele escreveu uma trilogia do mal, que começa com um livro chamado A ofensa, e eu o adoro. Das últimas coisas que tenho lido de novas gerações, é o que tenho lido com mais gozo. No Brasil, gosto muito de Marcelino Freire. Acho excelente. Gosto de Evandro Affonso Ferreira, que finalmente ganhou o Jabuti que estava para ganhar há muitos anos, e, dessa vez, ganhou e fiquei contente. Na poesia, há uma senhora americana que leio muito, que se chama Sharon Olds. É muito forte, muito poderosa.

CONTINENTE O processo de tradução dos seus livros é algo que o interessa como autor?
VALTER HUGO MÃE Interessa-me e angustia-me muito, mas não consigo acompanhar de perto. Isso rouba muito tempo e implica que eu esteja sempre a viver no passado. Os livros são traduzidos com muita lentidão. Por vezes, eu estou nesse momento, acabando de editar A desumanização, mas as traduções são de A máquina de fazer espanhóis, O apocalipse dos trabalhadores ou O filho de mil homens. Ou seja, é sempre assim uma espécie de passado que fica assombrando. Tento me distanciar e criar alguma liberdade, mas eu quero muito que os livros fiquem bem-traduzidos. Fico muito contente quando percebo que a pessoa que está a traduzir está entusiasmada. Quando as críticas que saem em França, por exemplo, elogiam muito o trabalho da tradutora francesa, e a ela própria, isso me deixa satisfeitíssimo.

CONTINENTE Em O apocalipse dos trabalhadores, seu Ferreira ouve o réquiem de Mozart, aprecia muito a arte e tenta incutir essa fruição em Maria das Graças, naquela relação cheia de particularidades, e a doméstica entende que aquilo, até então desconhecido, tem um quê de sublime. Para você, qual o papel da arte num mundo cada vez mais efêmero?
VALTER HUGO MÃE Acho que a arte tem de conter uma utopia. Nem todos os artistas hão de ser assim. Muitos são só gente desencantada, que parece querer magoar o mundo porque foi magoado. Vejo a arte como uma esperança, uma utopia de salvar e redimir tudo, e me interessa muito que aquilo que eu faço possa ter um valor para alguém. Sei que não vou salvar o mundo, mas há qualquer coisa que pode vir de uma contribuição de cada um de nós, e, por isso, sim, acho e quero muito que a arte salve o mundo. 

LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.

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