O teatro, com mais de dois mil anos, e o cinema, 118, seguem por caminhos diferentes, mas frequentemente se encontram. No início do século 20, para atrair a elite familiarizada com os dramas teatrais, o cinema mudo pegava tudo emprestado do teatro: atores, espaços e repertórios. Os genuínos filmes cantantes do Brasil já explicitavam, em 1908, o cruzamento entre sets e palcos. Canções e falas eram dubladas ao vivo sobre filmes silenciosos. Para projetar as vozes sobre a plateia, os atores usavam utensílios rudimentares, como canudinhos e funis de papelão. O interesse era menos estético ou ideológico, e mais relacionado a entreter e cativar um público desacostumado a novas tecnologias.
Autora da pesquisa Teatro e cinema: uma perspectiva histórica, Gabriela Lirio diz que o cinema surge do teatro, ao se apropriar de elementos cênicos. “A partir daí, investiga uma linguagem inovadora. Explorando mais a técnica, os efeitos e a imagem do que diálogos entre personagens, proporcionados pelo som.”
AFETOS E DESAFETOS
A chegada do cinema falado, em 1920, incomodou alguns cineastas. Quem diria que Alfred Hitchcock estaria entre eles? Acreditavam que, com o som, o desenvolvimento da linguagem cinematográfica se apoiaria no teatro e na literatura, minimizando sua marca mais pura: a imagem. Os primeiros filmes abusavam de diálogos e eram superestáticos. Mas o próprio Hitchcock soube como usar esses “defeitos”. Em 1948, filmou Festim diabólico, adaptação da peça Rope, no qual tenta dar a impressão de uma apresentação sem interrupções em longos planos-sequência.
Na mesma época, o expoente do teatro épico, Erwin Piscator, projetava vídeos nos palcos de suas apresentações para intensificar o relacionamento entre público e ator. Nas peças políticas, como Bandeiras (1924), exibia três tipos de filmes: didático, que ajudava a contextualizar o espectador na ação da narrativa; dramático, que interferia na ação, substituindo algumas representações cênicas; e de comentário, que chamava a atenção do espectador, provocando uma contracena única entre cenas gravadas e ao vivo.
Em filmes como Terra em transe, o cineasta Glauber Rocha utilizou conceitos teatrais de Brecht e Artaud. Foto: Divulgação
A fim de quebrar o conservadorismo da ilusão cinematográfica, o diretor do Cinema Novo Glauber Rocha utilizou conceitos dos dramaturgos Antonin Artaud, com o transe do teatro da crueldade, e Bertold Brecht, munido do distanciamento político do teatro épico.
Adeilton Lima, autor da dissertação A estética teatral no cinema de Glauber Rocha, conta que o baiano fez um “cinema da crueldade, ideia inspirada em Artaud, que propõe elaborar o acontecimento artístico como experiência da qual o espectador não sairá ileso existencialmente da sala de exibição. São alguns elementos técnicos, o ritmo acelerado, a construção de metáforas, longos planos-sequência e a profundidade de campo, ao invés da montagem tradicional. E, como fazia Brecht, ele aborda questões políticas, desconstruindo a fantasia do enredo do filme, provocando o espectador a pensar como sujeito da própria realidade”. Nos filmes Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e Terra em transe (1967), por exemplo, essas ideias estão claras.
Na década de 1970, o poeta Jomard Muniz de Britto gravou em super-8 peças do grupo performático Vivencial Diversiones – entre elas Toques e Vivencial I. Ao ver limitações no espaço do palco, levou cenas de teatralidade extrema para o meio da cidade. “Vi ali algo transgressor e quis transformá-lo em filme na rua do Recife, onde era fácil improvisar.” Comparando épocas, Jomard reflete: “Eu não filmaria isso hoje em dia. A caretice aumentou. Imagine pessoas se despindo na frente da igreja, como seria a reação?”.
JOGO DE CENA
A capacidade que o teatro tem de nos fazer vivenciar o imaginário como real é seu trunfo. Esse atributo, em jargão dramatúrgico, é construído pelas “convenções”. “Às vezes, nem existe cenário. É tudo à base da imaginação. Não tem o diretor que diz ‘você falou errado’. O ‘ao vivo’ está nas mãos do ator”, diferencia Erivaldo Oliveira. “No teatro, se eu quiser que minha mão seja o sol, ela será. No filme tradicional, ninguém crerá nisso.”
A utilização do cenário de palco para narrar a história, a bela direção de arte e de fotografia são destaques no filme Anna Karenina. Foto: Divulgação
Ao longo dos anos, vem sendo experimentada a teatralidade explícita em obras cinematográficas. Dogville (2003), de Lars Von Trier, César deve morrer (2012), dos irmãos Taviani, Jogos de cena (2007), de Eduardo Coutinho, e Anna Karenina (2013), de Joe Wright, são alguns exemplos. “Dogville construiu um espaço que foge do realismo de cinema. O diretor opta por locação única, um galpão. Os espaços são divididos por linhas marcadas no chão. Não há portas, janelas, tudo é construído na imaginação do espectador, que aceita a convenção como se estivesse no teatro. Ao mesmo tempo, estamos diante de técnicas de cinema na escolha dos planos-sequência, do comportamento dos atores voltados à câmera e do tempo de duração”, afirma a pesquisadora Gabriela Lirio, sobre a estética da narração escolhida pelo diretor dinamarquês para contar a história de uma cidade americana, durante a depressão econômica de 1929.
Na adaptação brasileira do texto de Senhorita Julia, de August Strindberg, através de câmeras e um storyboard de apoio, a diretora Christiane Jatahy faz cinema ao vivo, no palco. “Na adaptação, enquanto a peça é encenada no palco, um filme é criado a partir dela e projetado em telão ao fundo. Uma maneira de renovar a comunicação com o público.” O jogo de tensão e expansão das linguagens estimula o espectador a decidir o que quer ver. “Ele resolverá se quer assistir ao filme projetado, à cena teatral – em que o filme se faz – ou ‘entre’ caminhar na linha tênue dos dois.” Em Julia, a câmera age como o olho que induz o público a focar, em ângulos e closes, o que o diretor deseja destacar na história. Já o teatro transforma o espectador em mediador entre real e virtual, mostrando que, independentemente da forma na qual a cena é composta, trata-se de algo construído, artificial, quebrando a ilusão e exaltando o diálogo entre os envolvidos no espetáculo: elenco e plateia.
FICÇÃO E REALIDADE
Quem também se aventura no teatro é o cineasta Leo Falcão. Em 2009, dirigiu a peça Carícias, roteiro de Sergi Belbel. “A sétima arte é uma extensão dos sentidos e tende a amplificar qualquer registro, a partir dos recursos de linguagem da montagem, closes e cortes de efeito. No teatro, é preciso se projetar a uma plateia, por isso a performance ‘exagerada’. O ator deve conseguir chegar até a última fila. Mas nada impede que o estilo de atuação no palco seja naturalista ou a encenação à câmera não possa ser um pouco mais carregada. Tudo depende da proposta da peça ou do filme.”
Christiane Jatahy dirigiu a peça Senhorita Julia a partir de storyboard e uso de câmeras. Foto: Divulgação
No cinema, quando se diz “corta”, tudo aquilo que não depende do ator, ou seja, luz ou som têm permissão para parar, mas o intérprete humano deve preservar a verve cênica, permanecendo na mesma energia antes e depois do corte. No filme Tatuagem, Erivaldo observou o exemplo do colega Irandhir Santos. “Ele foi Clécio, o protagonista, atrás ou diante da câmera durante meses, sempre atento para o que o personagem fazia. No cinema, você precisa assumir um estado, porque senão tudo para, e você e o personagem não voltam mais. No teatro tem isso, mas por cerca de uma hora.”
Radicalizando o diálogo entre teatro e cinema, a diretora Christiane Jatahy instala câmeras, telão e TVs no palco das peças. Além da citada Julia, outra obra sua é a trilogia Uma cadeira para solidão, duas para o diálogo e três para a sociedade, formada pelas peças Conjugado, A falta que nos move e Corte seco. Na última, as sequências das cenas são mudadas a cada apresentação. São feitos direcionamentos ao vivo, como numa gravação de filme. “Esse transitar de fronteiras que faço nas minhas obras se dá na relação do teatro com o cinema, e na relação do real e do ficcional, entre o ator e o personagem, quando não fica claro se quem está ali é um ou o outro.” E completa: “Isso gera um resultado de várias camadas, abrindo espaços para o espectador colaborar com o que vê e transformar o teatro em algo realmente ao vivo, pela criação de um terceiro território, no qual o enquadramento da câmera dá o ponto de vista, mas o teatro revela o todo”.
Para a pesquisadora Gabriela Lirio, esse território é uma zona de sombra, não pode ser delineado e torna cinema e teatro férteis como objetos artísticos. Entre as duas expressões artísticas, ela discorda de que haja atualmente a desvalorização do teatro. Apesar de menos popularizado que o cinema, que alcança público numeroso em exibições pública e por downloads, o teatro também se renova em sua linguagem, defende. “O tablado contemporâneo dialoga com dispositivos audiovisuais, com as artes plásticas, a dança. Há espaço para todas as experiências. Não aceitar a transversalidade é reduzir em muito as possibilidades.”
De acordo com o pesquisador Adeilton Lima, os diálogos entre cinema e teatro devem ser desfrutados e continuar atraindo público. São formas revolucionárias de transformação do mundo: “A arte hibridizada serve para pensarmos nosso tempo, espaço social, político e existencial”.
CLARISSA MACAU, jornalista.