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A beleza que pode estar contida na dor

Universo da cultura pop é farto na criação de obras que expressam o desejo profundo de viver situações-limite que não respeitam os limites impostos pela ética e moral vigentes na sociedade

TEXTO Fernando Athayde

01 de Abril de 2014

No filme 'Laranja mecânica', de Stanley Kubrick, a violência estetizada

No filme 'Laranja mecânica', de Stanley Kubrick, a violência estetizada

Foto Reprodução

Na sequência final do filme Dredd (2012), de Pete Travis, o juiz Dredd droga a vilã Ma-Ma com uma substância cujo efeito colateral é retardar a passagem do tempo a 1% da velocidade real e a atira do alto de um prédio. A câmera, posicionada no solo, captura a chegada de Ma-Ma ao chão, mostrando em slow motion o corpo dela se transformando numa massa homogênea de vísceras e sangue.

Na sala de cinema, algumas pessoas tapam a vista, outras olham para baixo. Essas reações pontuam a eficácia da metáfora exibida em tela: por mais complexa que seja a mente em questão ou as relações de poder que a cercam, um corpo humano ainda é um corpo humano, tão frágil quanto é o de qualquer outro ser vivo. Ao perceberem isso, os espectadores preferem ocultar o cruel grafismo da verdade, confortando-se no abismo de escuridão escondido sob suas pálpebras.

Nessa situação, percebe-se a intensidade que tem a violência quando exibida de forma plena. Em seu artigo Do assassinato como uma das belas artes, de 1826, o britânico Thomas De Quincey oferece a primeira reflexão sobre tal prerrogativa. Ambientado num contexto fictício, em que o palestrante X.Y. Z. vai a uma conferência explicitar as formas de pensar de uma tal “Sociedade de Encorajamento ao Assassinato”, De Quincey destrincha o assassinato num painel de ideias. A principal delas propõe que o momento exato em que se desfere o golpe de misericórdia pode ser um agente estético, ou seja, constituído de significado tanto plástico quanto intelectual. Para justificar isso, o autor aborda a questão do prazer obtido através da violação daquilo que é ilícito. Assim, trabalhando sob uma ótica filosófica em que o Direito surge como mecanismo regulador do desejo, ele identifica a arte como mecanismo de extravasão psíquica, desprendido de qualquer moralidade – um retrato definitivo da modernidade e dos anos consecutivos a ela.


Nesta HQ do Batman, cenas de brutalidade. Imagem: Reprodução

Tendo como base essa visão, é possível admitir que obras de arte cujos eixos temáticos estão ligados à violência não representem um incentivo à agressividade, como se sugere hoje. “Ultraviolência”, termo que surge no livro Laranja mecânica (1968), de Anthony Burgess, representa justamente essa utilização da violência como elemento estético. A adição do prefixo latino ultra não configura necessariamente um aumento do nível de agressão em si, mas uma ampliação da carga simbólica atribuída ao ato de violência.

ESPETÁCULO
“Depois, tecendo uma coroa de espinhos, puseram-lhe sobre a cabeça e um caniço na mão direita. E, ajoelhando-se diante dele, diziam-lhe, caçoando: ‘Salve o rei dos judeus!’”. (Mateus, 27:29). Segundo o esloveno Slavoj Žižek, em O guia pervertido do cinema (2006), a sétima arte é uma plataforma pela qual se transforma o ilógico em lógico. Na prática, a ficção é o artifício que torna possível uma situação absurda. Žižek exemplifica isso a partir da concepção do filme Os pássaros (1963), de Alfred Hitchcock, em que uma situação irreal (pássaros atacarem humanos espontaneamente) não parece estranha ao espectador. E isso acontece justamente por tal ação estar contida numa obra ficcional. O desapego da realidade é adotado em função de uma reconfiguração simbólica do que está na tela.

Dessa forma, a “espetacularização” do absurdo, tal qual a representação da própria agressividade, por se tratar de uma metaforização do desejo, configura à ultraviolência um caráter freudiano – e essa não é uma particularidade do cinema, mas da cultura pop como um todo.

No início da década passada, o escritor irlandês Garth Ennis assumiu o título mensal da HQ do anti-herói Justiceiro, publicada pela Marvel Comics. Despindo o personagem de qualquer moral, Ennis o retrata como um homem que, após jurar vingança ao mundo do crime por ter sua família brutalmente assassinada, se torna muito mais sádico que os próprios criminosos. Além da arte do ilustrador Steve Dillon, a série tem como excelência fundamentar a desconstrução da psiquê humana: renegando seu ego, o protagonista é apenas uma ponte para que o id se infiltre no superego. Isso fica claro quando, ao atirar um mafioso na jaula de um urso faminto, o Justiceiro observa a carnificina com o mesmo fascínio de um garotinho que vai ao circo.


Em 1945, o pintor Francis Bacon concebeu série impulsionada pelo horror.
Imagem: Reprodução

E se o Império Romano lotava as arquibancadas do Coliseu para assistir ao espetáculo de uma vida posta à provação, hoje é possível traçar um paralelo entre esse fascínio ancestral e a onda das séries de TV. Em Breaking bad (2008–2013), talvez a mais representativa de todas, a própria brutalidade da natureza inspira a trama: o químico e pai de família Walter White (Bryan Cranston), após descobrir um câncer de pulmão, inicia uma jornada sem volta ao mundo do tráfico de drogas. Com gigantesca popularidade, a obra tem o mérito de captar o espectador através de um personagem que, diferentemente da geração selfie que o idolatra, não tem nenhum apego à sua posição frente à sociedade.

GRAFISMO E SEXUALIDADE
Seria um tanto equivocado representar a sobrecarga simbólica que caracteriza a ultraviolência como uma injeção que transubstancia a violência. O que acontece é uma ampliação do significado do termo e não uma transformação completa. Dessa forma, o caráter gráfico é algo quase sempre presente nas obras dessa fatura.

Em 1945, o pintor irlandês Francis Bacon concebeu o tríptico Três estudos de figuras na base de uma crucificação, cujo impacto visual é impulsionado pela intensa violência da série. Ainda assim, em nenhuma das três telas que a compõem há sequer uma gota de sangue ou sofrimento físico. A tonalidade laranja e a deformidade das criaturas subverte o conceito de agressão e torna intensamente dolorosa uma imagem ausente de qualquer figura crível. Na prática, a arte de Bacon afirma à própria ultraviolência seu teor subjetivo, tornando a ligação entre a dor e um evento físico apenas um dentre tantos símbolos possíveis para representá-la.

Por outro lado, um dos artifícios capazes de conectar plenamente homem e natureza, o sexo, compõe um amplo campo de ação nas artes. Formando um contraponto à subjetividade da obra de Bacon, a desconstrução dos valores e a exposição física do desejo são condições de extrema carga simbólica. Por interagir diretamente com diversas representações sociais, a utilização do sexo como metáfora é a forma mais recorrente de ultraviolência. Um exemplo disso está na adaptação cinematográfica dirigida por Stanley Kubrick do já citado livro Laranja mecânica, que disseminou definitivamente o termo tratado aqui.


Criador do monstro de Alien, polonês H.R. Giger uniu carne e aço
para representar aspectos da moralidade. Imagem: Reprodução

Dentro dessa perspectiva, H.R. Giger, artista visual polonês famoso pelo design do monstro Xenomorfo do filme Alien – o oitavo passageiro (1979), de Ridley Scott, uniu carne e aço para representar os aspectos mais obscuros da moralidade. Em sua obra, repleta de aberrações chamadas de biomecânicos, o que vemos é o hibridismo de homem e máquina, cujo elo é selado através do sexo. Na prática, uma representação do mundo a partir da segunda metade do século 20, unindo a expansão definitiva da tecnologia como aparato doméstico à luta pela liberdade sexual. Imageticamente, a obra de Giger é como girar a lâmina de um canivete dentro de uma úlcera moral. O sexo anal, a gravidez na adolescência, a pornografia, o desejo encarado sem regulação, tudo está lá, à vista de quem quiser.

E, ainda que possam ser citados nomes dos quadrinhos, tais quais Dave McKean e Bill Sienkiewicz, como grandes detentores da ultraviolência na arte sequencial, ou até mesmo a relevância de Frida Kahlo para a pintura, há um caso que chama bastante atenção. Trata-se de um roteiro escrito pelo quadrinista britânico Alan Moore para uma história do Batman.

Publicada no final da década de 1980 e desenhada pelo britânico Brian Bolland, A piada mortal é surpreendentemente a obra ultraviolenta mais representativa. Nela, o personagem Comissário Gordon é sequestrado, despido, encoleirado, enjaulado e forçado a assistir aos registros fotográficos do Coringa aleijando e estuprando sua filha. Enquanto isso, o vilão ainda urra para sua vítima como é bom tomar uma dose de realidade.

O que está por trás desse espetáculo de terror é uma metáfora para a ficção que o ser humano adotou como referencial de sua vida. No diálogo final, travado entre o próprio Coringa e o Batman, o antagonista conta uma piada sem aparente graça ou lógica, mas cuja interpretação adequada retrata com perfeição a relação entre humanidade e natureza: as relações afetivas, os costumes, o amor e a sociedade são criações humanas para suportar a realidade. Brutal, a vida é uma ação natural, vivida através de instantes consecutivos, sem ligações com o passado ou o futuro. A dor dos homens reside na dissolução de seus símbolos – e a ultraviolência é a ponte para que isso aconteça. 

FERNANDO ATHAYDE, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.

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