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'Quatro soldados': Romance histórico em reinvenção

Escritor gaúcho Samir Machado apropria-se do gênero para construir narrativa de aventura em que a ironia e o pastiche sedimentam argumento em torno de disputas territoriais

TEXTO Priscilla Campos

01 de Abril de 2014

No imaginário gaúcho está a luta territorial, retratada no filme 'Anahy de las missiones'

No imaginário gaúcho está a luta territorial, retratada no filme 'Anahy de las missiones'

Foto Reprodução

Entre os séculos 18 e 19, Portugal, para controlar seus súditos, administrava a entrada de livros no Brasil, através de censores. Na época, surgiram práticas destinadas ao contrabando do produto, que envolviam livreiros e comerciantes, além de formas alternativas para a distribuição das publicações. Diante de um cenário intelectual limitado, três jovens – Domingos José Gonçalves de Magalhães, Manuel Araújo Porto Alegre e João Manuel Pereira – canalizaram a preocupação em formar leitores na colônia fundando o periódico O Gabinete de Leitura, Serões das Famílias Brazileiras, Jornal Para Todas as Classes, Sexos e Idades, publicado pela primeira vez na Corte do Rio de Janeiro, em 1837. Com um detalhe: quase todos os textos da gazeta eram ficcionais.

A ligação entre história e literatura parecia meio esquecida pelos escritores contemporâneos brasileiros até o lançamento de Quatro soldados, segundo livro do gaúcho Samir Machado de Machado. Não é possível sair incólume do romance, após abri-lo: através de ilustrações, diagramação e linguagem textual que remetem ao final do século 18, o leitor é levado aos primeiros parágrafos, que surpreendem pela segurança do narrador. A sensação é de empatia ao ler trechos como: “Uma vez que cabe a mim, teu narrador, a obrigação de narrar, e a ti, meu leitor, a de ler – e assim te apraz –, faz-se mister, por questões de cortesia, que nos apresente. Porém, não sendo possível que eu te conheça, não há sentido que conheças a mim, posto que cá eu ficaria em posição de desvantagem contigo”.

A partir daí, a disputa territorial entre a Colônia do Sacramento (hoje, pertencente ao Uruguai) e a Vila de Laguna (Santa Catarina) se conecta com as histórias de quatro homens das armas que estão em constante movimento, tanto emocional quanto geográfico. Samir consegue unir ação, ficção científica, terror e suspense, trazendo ao leitor uma narrativa que não deixa espaço para classificações engessadas. De acordo com Samir, a vertente histórica é apenas uma das que sustentam o romance, cheio de inquietações e referências.


Destaca-se, também, no livro, o bom projeto gráfico.
Imagem: Reprodução

“Eu queria escrever um romance de aventuras. Uma história que provocasse, continuamente, o que os americanos chamam de sense of wonder: aquela quebra de paradigma e ‘maravilhamento’ que se relaciona com a descoberta de algo, e que me parece tão intrínseco à uma história de aventura, mas também se encaixava com o período retratado. O século 18 é o do Iluminismo, de uma quebra de pensamento radical, que resultaria numa mudança profunda no modo de vermos a sociedade”, explica.

De fato, a classificação de um romance como histórico não está necessariamente definida por restrições ou limites. Segundo o escritor e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Luís Augusto Fischer, o romance histórico não é uma especialidade brasileira, em sentido estrito. “Porém, em sentido amplo, há muita matéria histórica no grande romance brasileiro, como acontece em casos estratégicos da obra de Machado de Assis”, pontua. De acordo com Fischer, existe uma dificuldade dos escritores contemporâneos em lidar com as características do pós-modernismo e, ao mesmo tempo, estabelecer uma conexão com a tradição do romance histórico, mecanismo utilizado com mestria na narrativa de Quatro soldados.


Imagem: Reprodução

Outro ponto levantado pelo professor é a constante referência, na literatura, aos conflitos políticos nas fronteiras geográficas do Sul do país. “Em certo momento, o Rio Grande do Sul desejou ser um país à parte, numa guerra que durou 10 anos, na qual o Brasil venceu a unidade do território. Essa perda gerou um sentimento, uma consciência e uma fantasia de diferença, de singularidade, que até hoje é sentida, às vezes de forma caricata, às vezes de modo consistente. O romance histórico gaúcho se liga diretamente a esse complexo, essa relação difícil entre o sul e o centro do Brasil.”

Com uma narrativa divida em quatro capítulos, que poderiam ser facilmente desenvolvidas separadamente, Quatro soldados traz imagens carregadas de eventos grandiosos. Um exemplo disso é a cena em que dois personagens lutam contra um monstro macabro em um tipo de caverna subterrânea. Nesse ponto, Samir consegue surpreender novamente o leitor com suas habilidades como roteirista de aventuras, acrescentando ironia a uma certa elegância textual insolente: “E agora, leitor, rufem tambores e trovões e cantem os corais, que se fosse dito que tal gana percorreu o braço de Licurgo até converter-se num tiro de pistola perfeitamente preciso, a atravessar a garganta do animal e sair pela nuca, fazendo a besta-fera tombar morta no mesmo instante e caindo a cabeça para um lado e o Andaluz são e salvo para o outro, há de se concordar que tal resultado, ainda que bastante realista, não condiz nem com a tua expectativa tampouco com a minha”.

No início, Quatro soldados traz como epígrafe uma citação de Mason e Dixon, de Thomas Pynchon. Nela, o escritor norte-americano afirma que a literatura é uma “excitação mental das mais mesquinhas e ordinárias”. Ao final das 317 páginas, o que fica para o leitor é a vontade de, com muito afinco, continuar sua busca literária por essa sedutora “excitação mental”. A escrita de Samir oferece uma possibilidade de inquietude intelectual das mais solidárias e honestas. 

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