“Não é uma exposição sobre o rio, nem sobre o poema de João Cabral”, antecipa. “Mas, lendo e relendo o poema, fiquei intrigado com a força da expressão sobre os despossuídos. Quando recebi o convite da galeria Nara Roesler, dentro do projeto Roesler Hotel, pensei que seria uma boa oportunidade para testar algumas ideias que já tinha acerca da representação dos despossuídos no campo das artes visuais do Brasil”, complementa Moacir. Entre setembro e novembro de 2013, Cães sem plumas [prólogo] ficou em cartaz na galeria paulistana, materializando indagações propostas pelo curador e sua vontade de buscar espaços para amplificar o debate.
“Negros, índios, homossexuais, imigrantes, miseráveis, doentes mentais são, hoje, excluídos de um modelo de crescimento que o Brasil adotou. Por exemplo, o desenvolvimento do agronegócio implica, necessariamente, o avanço sobre terras indígenas. Não se faz muito contra isso. Os despossuídos são todos que não combinam com essa superação do Brasil em outros meios. E isso me traz dois incômodos: apesar do crescimento, essa parcela da população não é, e não vai ser, assimilada ou integrada nesse processo; depois, a pouca atenção que as artes visuais dão a esse processo, a essa exclusão. Nesse sentido, a exposição é uma crítica, porque esse assunto não está na pauta”, considera Moacir dos Anjos.
Antonio Dias, Armando Queiróz, Berna Reale, Carlos Vergara, Cildo Meireles, Claudia Andujar, Eduardo Coutinho (1933-2014), Gil Vicente, João Castilho, José Rufino, Lasar Segall (1891-1957), Marcos Chaves, Maria Thereza Alves, Matheus Rocha Pitta, Oswaldo Goeldi (1895-1961), Paula Trope, Paulo Bruscky, Paulo Nazareth, Regina Parra, Rosangela Rennó, Thiago Martins de Melo e Virgínia de Medeiros, acrescidos de João Cabral de Melo Neto e Jorge de Lima, compõem o time de artistas que ganha uma nova leitura em Cães sem plumas. “Não há uma cronologia nem uma concentração de situações afins. A ideia é mostrar certa continuidade entre o que essa população excluída sofria no passado e sofre hoje, e como isso era e é retratado”, diz o curador.
Fotografias de Carlos Vergara foram realizadas em carnaval nos anos 1970. Foto: Divulgação
AQUÉM DE SI MESMOS
Interligadas por esse conceito, as obras contribuem para um olhar sobre aqueles que vagam aquém de si mesmos, na lógica da poesia cabralina. Moacir evoca o filósofo francês Jacques Rancière para defender, mais uma vez em sua trajetória como curador, a junção entre arte e política: “É a contínua divergência com o que antes era considerado consensual que permite àquilo que, em determinado lugar e momento não podia ser dito, não podia ser visto ou não tinha colocação no corpo social, pudesse ser visto, dito e se legitimar socialmente. Como diz Rancière, é através da política que o que antes era somente ruído pode se afirmar como discurso articulado”.
O encadeamento se dá, portanto, entre obras de artistas que trabalham com essa questão, como Claudia Andujar, e outras que mostram a situação e “sugerem alguma forma de resistência”, nas palavras do curador. De Andujar, por exemplo, há fotografias da série Malencontro, datadas entre 1980 e 1989, em que ela enfoca índios ianomâmi, mas também instantâneos feitos no manicômio do Juqueri, de São Paulo, ainda na década de 1963, e nunca antes expostos.
Em grande formato, as pinturas de Thiago de Melo apontam para situações de desarranjo. Imagem: Divulgação
Nessa linha, surgem os trabalhos de Paula Trope, Regina Parra e Berna Reale, por exemplo, explícitos em seu enquadramento dos “cães sem plumas” anônimos. No vídeo Contos de passagem, a carioca Trope dá voz a meninos de rua, em imagens borradas e som quase inaudível; a paulistana Parra apresenta os imigrantes que, atraídos pela promessa do Eldorado, esbarram em situações de risco e medo; e a paraense Reale usa o audiovisual para outorgar dignidade a presos em condições desumanas e a milhares que morreram e nunca foram reclamados por ninguém. “Solicitei as ossadas ao Centro de Perícias Renato Chaves, onde trabalho e onde estavam armazenadas, pois haviam sido entregues pela polícia para futuros exames ou reclamações de reconhecimento. Meu objetivo era falar sobre a violência, sobre os anônimos, sobre o outro que não parece ser importante para nós. Utilizo sempre a simbologia para tratar questões que me angustiam”, comenta Berna.
As ilustrações de Lasar Segall para os Poemas negros de Jorge de Lima; os próprios versos de Jorge, ao lado do Cão sem plumas original; as soturnas gravuras de Oswaldo Goeldi (“um dos poucos artistas modernistas brasileiros a se contrapor à ideia de um país sempre solar e alegre”); uma bandeira preta com o verbete “realidade” grafado em italiano por Antonio Dias; uma imagem de três negros e a palavra “poder”, eternizada por Carlos Vergara em um carnaval dos anos 1970; e os trabalhos de Paulo Bruscky e Cildo Meireles alinham-se de modo igualmente politizado e incisivo. De Meireles vem a série Zero real, com uma fictícia nota estampada por um índio e por um louco, e o célebre Projeto cédula, em que o artista carioca carimba um simples e afiado questionamento – nesse caso, o novo é Cadê Amarildo?. Do falecido cineasta Eduardo Coutinho, o vídeo Porrada, em que ele registrou internos do instituto Philippe Pinel, do Rio de Janeiro, encenando quadros do programa do apresentador Carlos Roberto Massa, o Ratinho.
Para o maranhense Thiago Martins de Melo, presente na exposição com O matriarcado de Pindorama sucumbe à dança estatal das motosserras do andrógino fálico presidencial, de 2012, “o Brasil é racista e nossa sociedade, patriarcal, machista, excludente e paternalista”. Concebida na época da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, a tela carrega um exagero cromático e uma pluralidade de referências concatenadas pelo raciocínio do artista. “O mítico, o espiritual, o político, a Pindorama de Mário de Andrade e, consequentemente, o movimento antropofágico se juntam, forjando imagens arquetípicas na questão da luta étnica”, explica Thiago. “No Brasil, existe o racismo ambiental. Os quilombolas, os índios e os negros são invisíveis e demonizados. A arte brasileira é burguesa e elitista”, vaticina.
Desde os anos 1970, o artista Cildo Meirelles desenvolve o Projeto Cédula.
Imagem: Divulgação
ENCONTROS ABERTOS
À exposição, somam-se três encontros abertos ao público na sala Aloísio Magalhães, na Fundaj do Derby. No dia 24, Falar de quem não tem fala une o escritor mineiro Luiz Ruffato ao artista paraibano José Rufino (cuja presença na mostra se traduz com Lexicon silente, cerca de 50 pedras e fragmentos retirados das áreas de conflito agrário das Ligas Camponesas da Paraíba). Em 5 de maio, A pobreza que não interessa reúne a jornalista e doutoranda em Sociologia pernambucana Fabiana Moraes, a socióloga e professora Maria Eduarda Rocha e o sociólogo potiguar Jessé de Souza; dois dias depois, O invisível representado congrega a artista cearense Virgínia de Medeiros (sua obra é Fábula do olhar, em que fotografias de moradores de rua são engendradas de acordo com suas vontades), o teórico e crítico literário Márcio Selligman-Silva e o professor de arte e curador do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro Luiz Camillo Osório.
Moacir dos Anjos acredita que Cães sem plumas expõe o desejo de “mudar a configuração do ambiente do sensível no Brasil”. “Em outros países com uma situação social semelhante à nossa, como a Colômbia e o México, artistas e instituições articulam essa questão dos despossuídos com densidade de obras e pensamentos. No Brasil, isso não existe. Muitos observadores de fora sentem essa ausência e colocam isso. Talvez pelo colonialismo, talvez pela forte presença negra... O que tentei foi articular essas combinações de modo a refletir e colocar a questão em pauta”, argumenta.
LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.