Nada é realista na montagem. Tudo é desordenado, esquecido pelo tempo, fechado em si mesmo. Os objetos são como os desalinhos, desequilíbrios dos habitantes à beira do precipício, da loucura. Um trono para o rei, impotente diante do amor e da loucura que o rodeiam. “A ideia é formar um ambiente isolado, fechado, sem contato nenhum com a vida que segue do lado externo”, diz Samuel, descrevendo o cenário da peça.
Dentro desse espaço fechado, escadas conduzem a plataformas, trampolins. “São objetos que simbolizam a tensão, a insegurança, pois o ser humano, quando sobe uma escada ou num trampolim, fica cambaleante, sem a firmeza necessária”, continua. Isso tudo está presente nos personagens e na atmosfera da dramaturgia. Os trampolins também servem de cama, já que a relação sexual entre o casal protagonista advém do abismo, da desconfiança.
“Eu jurei que viria dizer apenas estas palavras: ‘Ismael, tua mãe manda sua maldição’”. Elias, o irmão branco, chega à casa de Ismael, tal qual o rei Édipo, cego e perdido, às portas de Colono, como um duplo de Ismael, com traços finos, louro, cintura fina, meigo, carinhoso. Na montagem de O Poste, ele vem como um vodu, mandado pela mãe para amaldiçoar o irmão. A partir dessa cena, Ismael cai na própria desgraça e na que o circunda. “Nelson dilui a estrutura da tragédia grega, do coro que ajuda a criar um efeito épico. Os coros de Anjo negro não têm esse distanciamento da trama, da narração, portanto, ajudam a criar a atmosfera de terreiro que a peça tem”, argumenta o diretor.
Na tragédia mítica rodriguiana, Jesus Cristo entra também como símbolo do desejo de Virgínia: “Ismael, quero que você me arranje um quadro de Jesus! Jesus não tem o teu rosto, não tem os teus olhos – não tem, Ismael!”. Ao nascer Ana Maria, filha branca de Virgínia com Elias, Ismael a cega, assim como fez com o irmão, para que ela nunca veja sua negritude. Percebendo ali o início de uma relação incestuosa, Virgínia, com a cumplicidade do marido, traça o plano final para matar a filha, já adolescente.
Nelson reproduz, em cena, um microcosmo da sociedade brasileira, destacando a violência como fator de base dos fundamentos étnico-sociais, e a vivência de um casal inter-racial, na ambiguidade de sua linhagem mestiça. O dramaturgo expõe de maneira perturbadora temas adormecidos no inconsciente coletivo.
O projeto se chama Um Nelson ancestral. “Quando começamos os ensaios, cada um acrescentou sua experiência, inclusive eu, que tinha recentemente acabado uma pesquisa sobre a dança de culto a Oxum dentro do Afoxé Oxum Pandá”, conta Smirna Maciel. A intenção do diretor foi desconstruir o imaginário já cristalizado que se tem sobre a obra de Nelson. “Achei isso uma audácia tremenda, principalmente, por pegar um texto que muitos consideram ultrapassado. Pelo contrário! É um texto atualíssimo”, defende Ângelo Fábio.
GUILHERME NOVELLI, jornalista.