FÉ E CULPA
Os espetáculos Sobre o conceito da face no filho de Deus e Gólgota picnic, por exemplo, discutem questões ligadas à fé, mas de formas bastante distintas. O primeiro, da companhia italiana Societas Raffaello Sanzio, carro-chefe da programação do Festival de Porto Alegre, no ano passado, traz para o palco uma reprodução da face de Cristo, obra renascentista criada pelo pintor italiano Antonello da Messina (1430-1479). Numa das cenas, crianças arremessam granadas de alumínio contra a imagem. Mas, segundo Paula de Renor, atriz e produtora do Janeiro de Grandes Espetáculos, é a figura de um pai que sofre de incontinência fecal que, realmente, causa o maior desconforto na plateia.
“É um espetáculo muito forte, que trata da chamada ‘culpa cristã’. Com toda paciência do mundo, o filho limpa o pai, veste, arruma. Minutos depois, o pai está todo sujo novamente. O cheiro insuportável toma conta da plateia. O pai sofre por fazer o filho passar por aquilo e o filho sofre pelo pai, mas também por se sentir culpado de não aguentar aquela situação. Quantos de nós não passamos por isso?”, comenta a produtora, que viu o espetáculo concebido e dirigido por Romeo Castellucci durante o Festival Internacional de Buenos Aires.
Já Gólgota picnic é uma montagem dirigida por Rodrigo García, argentino que vive na Espanha desde 1986, e tem um trabalho vinculado às artes visuais e à música. No caso de Gólgota, o cenário é composto por cerca de 25 mil pães de hambúrguer. O local de suplício de Cristo se transforma em espaço para piquenique e o elemento sagrado da ceia cristã, que simboliza o corpo de Cristo, está no palco, mas ali fazendo referência a ideias de consumo e mercantilização. A sinopse da peça também adianta que a ação inclui a “crucificação” de uma atriz. Tanto Sobre o conceito... quanto Gólgota foram alvo de polêmicas e insatisfações na Europa, especificamente na França. O site da BBC noticiou que protestos contra Gólgota estavam sendo planejados na cidade de Toulouse por fundamentalistas cristãos.
Outros dois espetáculos, entre os quais podem ser traçados paralelos, são Ubu e a Comissão da verdade, da Handspring Puppet Company, da África do Sul, e Escola, do dramaturgo e diretor chileno Guillermo Calderón, reconhecido como um dos nomes mais expressivos do teatro latino-americano. Ubu é uma releitura do texto de 1888, de Alfred Jarry, colocado em diálogo com o trabalho da Comissão de Verdade e Reconciliação da África do Sul. Escola traz ao palco um grupo de militares de esquerda que recebe treinamento para resistir e derrubar Pinochet e a ditadura militar no Chile. “Tanto no apartheid quanto na ditadura militar estamos falando de perdas de direitos civis. De morte, de violência, de falta de liberdade. E claro que essas montagens também nos fazem lembrar a ditadura militar no Brasil, que está completando 50 anos agora em 2014”, avalia Antonio Araújo.
Peça sul-africana Ubu e a Comissão da Verdade é releitura de texto de 1888, de Alfred Jarry. Foto: Frederico Pedrotti
Se uma das críticas aos festivais espalhados pelo país é de que eles não fomentam a reflexão de maneira mais efetiva, mas apenas a circulação de espetáculos, a MITsp tem como um dos seus pilares justamente o pensamento e os diálogos construídos a partir do fazer teatral. Fernando Mencarelli, diretor e professor da Universidade Federal de Minas Gerais, e Silvia Fernandes, dramaturga, professora do Departamento de Artes Cênicas da USP e uma das principais estudiosas do teatro contemporâneo no país, realizaram a curadoria de uma série de atividades intituladas Olhares críticos.
Logo depois das sessões, por exemplo, pensadores e artistas, grande parte não diretamente ligados às artes cênicas, terão o desafio de criticar os espetáculos. O escritor e religioso Frei Betto vai tratar de Escola; já Vladimir Safatle, filósofo, professor e colunista trará suas impressões sobre Ubu e a Comissão da Verdade; a psicoterapeuta, professora e crítica Suely Rolnik comentará Eu não sou bonita, solo de Angelica Liddel; e assim por diante.
Também fazem parte dessa série de ações textos escritos por um coletivo de críticos formado por profissionais de sites, blogs e revistas, que viram na internet a possibilidade da manutenção do espaço de reflexão sobre o teatro. Além de terem suas resenhas numa publicação idealizada pelo evento, os críticos participam de uma ação que envolve o Facebook, na tentativa de levar para a escritura a polifonia de sentidos que podem ser derivados de um espetáculo. “Talvez o grande mérito do MITsp não seja a circulação de espetáculos, mas o espaço de discussão, reflexão, pensamento. Tenho a impressão de que o pensamento crítico sobre teatro aqui, em São Paulo, perdeu espaço na mídia formal, mas está nas revistas de pós-graduação. Só que para um público muito especializado. Como ter ações que aproximem essa crítica do público? Queremos discutir questões como essa”, propõe Antonio Araújo.
POLLYANNA DINIZ, jornalista, crítica de teatro e colaboradora do blog Satisfeita, Yolanda?.