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Miró, enfim, num livro que fica de pé

Compilação reúne 178 poemas que exibem o humor, a sensibilidade e a contundência da obra do Poeta da Muribeca, publicado antes em 11 livretos

TEXTO André Telles do Rosário

01 de Março de 2014

Miró

Miró

Foto Divulgação

"Vai aqui um simples passeio/ Um bicicletar/ Um piscar de olhos/ Um entra e sai de becos e bares/ Desse mundo bêbado/ Um copo ali de lirismo/ Outro aqui de veneno/ Mortos e vivos/ Nesse passeio de mãos dadas/ Deus de bicicleta/ E vocês no bagageiro/ Podem ir/ Bom passeio” (primeiro poema de Quase crônico, de 2010).

Quem conhece Miró, mais de perto, deve lembrar-se de tê-lo ouvido, em alguma conversa, dizendo que nunca havia publicado um “livro que ficasse de pé”. Pois bem, desde o fim do ano passado, o camelô da poesia já não pode mais repetir tal fala. Miró até agora é o “primeiro livro” – propriamente dito, com lombada e tudo o mais – de João Flávio Cordeiro, o Miró da Muribeca. São 220 páginas, reunindo 178 poemas de 11 obras, publicadas entre 1985 e 2012.

Posta em ordem cronológica inversa, a antologia acaba formando uma obra nova, a partir das antigas – um delicioso percurso de leitura, em que o humor, a sensibilidade e a contundência, suas marcas registradas, vão dando conta de um mundo como só Miró é capaz de perceber e traduzir. O livro foi publicado pela Interpoética, a editora do maior site de poesia pernambucana na internet, e a edição foi capitaneada por Sennor Ramos, através de projeto aprovado no Funcultura.

Além da iniciativa e da poesia de Miró, o prefácio de Wilson Freire é outro dos pontos fortes do projeto editorial, traçando os momentos mais significativos da vida (e da luta por viver) do poeta, desde sua infância na favela onde hoje se encontra o Hospital Oswaldo Cruz, ao lado do cemitério de Santo Amaro, até a dolorosa partida de sua mãe, dona Joaquina, há dois anos.

Providências da vida: Olho pra mim/ torno a olhar,/ a morte toca/ em meu ombro direito./ Rapidamente/ guardo todos os meus segredos/ no bolso esquerdo da calça/ no direito/ alguns cruzeiros/ e pra não morrer/ feio/ beijo o espelho” (de Quem descobriu o azul anil?, 1985).

Miró até agora parte de um título que revela sua própria transitoriedade. Como quem sempre lutou contra a loteria da morte dos poetas marginais do Recife (o que o prefácio de Wilson Freire deixa claro), Miró segue vivo. Este “até agora” começa dizendo isso do livro – que não se pretende um trabalho definitivo. O poeta, além do fato de estar vivo, produzindo, principalmente sua poesia está e é, por condição, viva. E ela nunca foi tão querida quanto o é hoje. Tanto no Recife, como em São Paulo, suas principais bases afetivas e editoriais, mas além delas, pela internet, sua poesia é admirada e repercute mais, ano após ano.


Foto: Divulgação

“Até agora”, então, porque Miró continua criando. Criando poemas novos, e recriando sua poesia já publicada, sempre que recita algum poema antigo. Continuamente viva e nascente, sua voz é que amarra o encanto de suas crônicas em seus espectadores. A poesia de Miró continua nascendo toda vez que ele se apresenta e mais alguém se admira. É ali que está sua maior potência. Quem já o viu performar sabe da força desse encontro. E todos seus livretos, cartões, panfletos e camisetas, ou seja, as versões impressas para venda durante sua vida, também foram e são performáticos a seu modo, com imagens, fontes e tamanhos diferentes, tentando traduzir a corporalidade da sua poesia.

“Eu juro que vi./ Era quase detardezinha./ Esquina da Rua da Aurora,/ de quina com o São Luís./ Não foi filme não. Eu juro que eu vi./ Aconteceu a dez passos de mim./ Ali, na lata!/ Cacos de vidro pra tudo que é lado,/ difícil dizer quantos eram./ Não foi delírio febril./ Eu juro que eu vi./ Pensei ser um sonho,/ porra nenhuma./ Real como um tijolo./ Corra meu filho./ Nem perguntei,/ corri./ Até hoje não sei/ o que de fato aconteceu.” (Ilusão de ética, 1995).

FORÇA DA POESIA
Por outro lado, o livro acabou “aplainando” a performaticidade impressa de Miró. Movimento meio inevitável, que afastou sua poesia da cultura de impressos de baixo custo que tem lhe dado forma. O resultado proporciona a leitura linear de uma “artevida” fragmentária. E surpreende perceber que é muito bela, igualmente desse ponto de vista. Uma compilação de obras que se tornou uma nova, em novo meio. E que oferece para leitura uma atenção especial ao texto, mais que à página ou ao impresso (ou ao corpo).

Pode-se até dizer que é um livro que acredita mais na força da poesia de Miró, mesmo impressa, por dispensar explicativos. E crê, principalmente, na força de sua presença. Tanto aquela presença que está incorporada ao texto de suas criações, quanto aquela que as vende e ventila pelo mundo, já que é através da interação com o poeta que sua poesia é comunicada. Dessa forma, o contexto em que se obtém o livro acaba servindo de prólogo à obra. Na verdade, no caso de Miró, a presença do poeta é o que motiva a venda do livro. É sempre através do contato com o poeta que se consegue sua mais recente publicação.

Outras ostras:/ Lá vai Recife/ Num mais um fim de tarde/ As águas do Capibaribe cor de sangue/ Nos ombros dos negros/ que moram nos Coelhos/ Unhas na lama e a classe média/ comendo ostras/ de frente ao Acaiaca” (Onde estará Norma?, 2006).


Miró até agora. Imagem: Reprodução

A pesquisa trouxe a maior parte da sua obra, mas deixou vazios. Além da ausência de poemas, de livretos diversos, que não foram incluídos, existem algumas poucas imprecisões, segundo a dissertação de mestrado Corpoeticidade, Poeta Miró e sua literatura performática, o principal estudo sobre sua obra, defendida na UFPE em 2007. O livreto São Paulo eu te amo mesmo andando de ônibus, de 2000, não está citado. É uma obra importante, a mais performática de suas publicações, a primeira feita e inicialmente impressa em São Paulo, e que sustentou financeiramente sua permanência na capital paulista por um bom tempo.

Quebra à direita, segue a esquerda e vai em frente é de 1999, e não de 2000 (foi lançada em 7 agosto de 1999, no Bar do Microfone, no Mercado de São José, com show do Cordel do Fogo Encantado – e logo depois em Fortaleza). O Ilusão de ética, que aparece como publicado em 1987, é de 1995, com segunda edição na capital do Ceará, em 1998. E o zine Flagrante deleito é de 1998, e não de 1990.

Corrigidos na sua perspectiva histórica, esses dados são detalhes que não ofuscam o mais fundamental em Miró até agora: o poder de passar uma visão panorâmica de sua poesia. Ponto de vista para observar as mudanças que aconteceram com sua lírica-crônica. E capaz também de mostrar a obra do poeta em todos os seus temas, estilos e humores.

Miró é uma figura única no universo da poesia. Ele trouxe para ela muita dose de corpo, de humor, de prazer. E também uma perspectiva renovadora, na mirada sobre a sociedade e no uso da língua e da interação pessoal. Para quem o ouviu recitar, durante a leitura os versos têm som, os refrões não saem do ouvido e da lembrança.

Miró até agora traz o registro, a pauta, por assim dizer, dessa arte. Mas uma pauta que ultrapassou sua condição e vale por si, com vida independente da apresentação de seu criador. Como são os livros, afinal. 

ANDRÉ TELLES DO ROSÁRIO, professor de Comunicalção e Letras e pesquisador no programa de pós-doutorado da UFRJ.

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