“Até agora”, então, porque Miró continua criando. Criando poemas novos, e recriando sua poesia já publicada, sempre que recita algum poema antigo. Continuamente viva e nascente, sua voz é que amarra o encanto de suas crônicas em seus espectadores. A poesia de Miró continua nascendo toda vez que ele se apresenta e mais alguém se admira. É ali que está sua maior potência. Quem já o viu performar sabe da força desse encontro. E todos seus livretos, cartões, panfletos e camisetas, ou seja, as versões impressas para venda durante sua vida, também foram e são performáticos a seu modo, com imagens, fontes e tamanhos diferentes, tentando traduzir a corporalidade da sua poesia.
“Eu juro que vi./ Era quase detardezinha./ Esquina da Rua da Aurora,/ de quina com o São Luís./ Não foi filme não. Eu juro que eu vi./ Aconteceu a dez passos de mim./ Ali, na lata!/ Cacos de vidro pra tudo que é lado,/ difícil dizer quantos eram./ Não foi delírio febril./ Eu juro que eu vi./ Pensei ser um sonho,/ porra nenhuma./ Real como um tijolo./ Corra meu filho./ Nem perguntei,/ corri./ Até hoje não sei/ o que de fato aconteceu.” (Ilusão de ética, 1995).
FORÇA DA POESIA
Por outro lado, o livro acabou “aplainando” a performaticidade impressa de Miró. Movimento meio inevitável, que afastou sua poesia da cultura de impressos de baixo custo que tem lhe dado forma. O resultado proporciona a leitura linear de uma “artevida” fragmentária. E surpreende perceber que é muito bela, igualmente desse ponto de vista. Uma compilação de obras que se tornou uma nova, em novo meio. E que oferece para leitura uma atenção especial ao texto, mais que à página ou ao impresso (ou ao corpo).
Pode-se até dizer que é um livro que acredita mais na força da poesia de Miró, mesmo impressa, por dispensar explicativos. E crê, principalmente, na força de sua presença. Tanto aquela presença que está incorporada ao texto de suas criações, quanto aquela que as vende e ventila pelo mundo, já que é através da interação com o poeta que sua poesia é comunicada. Dessa forma, o contexto em que se obtém o livro acaba servindo de prólogo à obra. Na verdade, no caso de Miró, a presença do poeta é o que motiva a venda do livro. É sempre através do contato com o poeta que se consegue sua mais recente publicação.
“Outras ostras:/ Lá vai Recife/ Num mais um fim de tarde/ As águas do Capibaribe cor de sangue/ Nos ombros dos negros/ que moram nos Coelhos/ Unhas na lama e a classe média/ comendo ostras/ de frente ao Acaiaca” (Onde estará Norma?, 2006).
Miró até agora. Imagem: Reprodução
A pesquisa trouxe a maior parte da sua obra, mas deixou vazios. Além da ausência de poemas, de livretos diversos, que não foram incluídos, existem algumas poucas imprecisões, segundo a dissertação de mestrado Corpoeticidade, Poeta Miró e sua literatura performática, o principal estudo sobre sua obra, defendida na UFPE em 2007. O livreto São Paulo eu te amo mesmo andando de ônibus, de 2000, não está citado. É uma obra importante, a mais performática de suas publicações, a primeira feita e inicialmente impressa em São Paulo, e que sustentou financeiramente sua permanência na capital paulista por um bom tempo.
Quebra à direita, segue a esquerda e vai em frente é de 1999, e não de 2000 (foi lançada em 7 agosto de 1999, no Bar do Microfone, no Mercado de São José, com show do Cordel do Fogo Encantado – e logo depois em Fortaleza). O Ilusão de ética, que aparece como publicado em 1987, é de 1995, com segunda edição na capital do Ceará, em 1998. E o zine Flagrante deleito é de 1998, e não de 1990.
Corrigidos na sua perspectiva histórica, esses dados são detalhes que não ofuscam o mais fundamental em Miró até agora: o poder de passar uma visão panorâmica de sua poesia. Ponto de vista para observar as mudanças que aconteceram com sua lírica-crônica. E capaz também de mostrar a obra do poeta em todos os seus temas, estilos e humores.
Miró é uma figura única no universo da poesia. Ele trouxe para ela muita dose de corpo, de humor, de prazer. E também uma perspectiva renovadora, na mirada sobre a sociedade e no uso da língua e da interação pessoal. Para quem o ouviu recitar, durante a leitura os versos têm som, os refrões não saem do ouvido e da lembrança.
Miró até agora traz o registro, a pauta, por assim dizer, dessa arte. Mas uma pauta que ultrapassou sua condição e vale por si, com vida independente da apresentação de seu criador. Como são os livros, afinal.
ANDRÉ TELLES DO ROSÁRIO, professor de Comunicalção e Letras e pesquisador no programa de pós-doutorado da UFRJ.