O papel de Bárbara nos movimentos revolucionários de que participou poderia ter sido ainda mais relevante. Segundo as escritoras Rachel de Queiroz e Heloísa Buarque de Hollanda, “ela também assumiu o comando do movimento (de 1817), deixando a liderança apenas para que seu filho José Martiniano de Alencar subisse no púlpito em frente à igreja e proclamasse a república na região, a República do Jasmim, nome de uma propriedade sua. Bárbara se viu impossibilitada de fazer a proclamação ela mesma. Não era atitude própria de uma senhora”.
A casa onde nasceu, na Fazenda Caiçara, em Exu, foi transformada num museu para preservar sua memória. Foto: Claudia Parente
Seguindo linha semelhante de raciocínio, a professora de literatura hispano-americana da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Claudia Luna acredita que a matrona sertaneja foi ofuscada pelo filho José Martiniano, cuja carreira política teve repercussão em todo o país. “Sabemos que a escrita da história é feita pelos historiadores segundo alguns modelos consagrados e, geralmente, nela tem imperado uma perspectiva androcêntrica, isto é, uma história escrita por homens, que valoriza os grandes heróis e os grandes feitos. Podemos acrescentar que essa escrita geralmente é feita pelos vencedores e é sob perspectiva deles que os fatos são selecionados”, explica.
Esse fenômeno, segundo a professora, que está pesquisando a trajetória de Bárbara de Alencar para um pós-doutoramento em História da América, não aconteceu somente no Brasil. É um padrão que se repete em toda a América Latina. “A participação das mulheres geralmente é obscurecida, colocada em segundo plano em relação aos homens mais próximos: maridos, filhos, amantes”, revela. No caso de Bárbara, a destruição deliberada dos documentos do movimento de independência de 1817 pelos próprios participantes, para se protegerem de uma possível devassa, comprometeu a definição do papel efetivo que ela desempenhou.
Claudia Luna diz que não é possível afirmar que Bárbara de Alencar foi a primeira presa política do Brasil porque a escrita da história é dinâmica e novos documentos podem ser encontrados. “O que podemos assegurar é que sua prisão foi decretada por motivos políticos: a participação na Revolução de 1817”.
Para a professora, Bárbara de Alencar pode não ser uma heroína porque esse é um conceito relativizado. “Há personagens que foram punidos como traidores em sua época, mas, para a posteridade, transformaram-se em heróis por sua atuação firme e corajosa em defesa de seus ideais, resistindo à repressão”, argumenta. “Bárbara é uma figura emblemática, uma mulher de grande visão, uma autêntica matriarca nordestina, uma mulher ‘ilustrada’, que encaminha os filhos para o Seminário de Olinda, trava contato com os círculos maçons e as ideias iluministas ainda no período colonial, que abre sua casa para os insurgentes, tem poder de liderança e participa ativamente do movimento de 1817. Se pensamos de novo na escrita da história, verificamos que são poucas as mulheres de poder que ocupam o panteão dos grandes heróis.”
LIVRO DOS HERÓIS
No intuito de mudar essa realidade e tirar Bárbara de Alencar da invisibilidade, a então deputada federal Ana Arraes (hoje ministra do Tribunal de Contas da União) elaborou um projeto de lei, propondo a inscrição do nome da matriarca nas páginas de aço do Livro dos Heróis da Pátria, guardado no Panteão da Pátria e da Democracia, na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Tataraneta de uma irmã de Bárbara de Alencar, a deputada argumentou que quis fazer justiça a uma mulher que, no início do século 19, lutou por um país justo e democrático.
O projeto foi aprovado por unanimidade na Câmara dos Deputados, em junho de 2012. “A lei já reconheceu o patriotismo e heroísmo de Bárbara. Resta, agora, que os historiadores registrem a sua história para que o povo brasileiro possa conhecer melhor esse período”, diz Ana Arraes.
Por enquanto, o registro mais conservado da vida de Bárbara é a casa onde ela nasceu na Fazenda Caiçara, a 14 km da cidade de Exu. O imóvel foi recuperado e transformado em museu, para tentar preservar a memória da heroína esquecida. A diretora, Amparo Alencar, descendente de um dos seus irmãos, explica que as peças não são originais. Servem apenas para reconstruir o ambiente da época. Mas há uma réplica do retrato falado de Bárbara, pintado por Ernani Pereira, fixado numa das paredes. “Os únicos pertences que restaram dela são um par de luvas e algumas xícaras que estão em um museu do Crato”, informa.
Na cidade cearense, a casa onde a matrona viveu foi demolida. No lugar, funciona a Secretaria da Fazenda. Também não há nada além de ruínas onde outrora era o Sítio Pau Seco, hoje município de Juazeiro do Norte (CE). Na opinião de Amparo Alencar, os pernambucanos não conhecem Bárbara porque não estudam sobre ela na escola. “Estudamos Frei Caneca, mas ela não, apesar de ser um vulto muito importante na história do Brasil. Alguém que, há quase 200 anos, lutou por uma forma de governo que persiste até hoje”, completa. Apenas o conterrâneo mais famoso não a esqueceu. Na música Meu Araripe, Luiz Gonzaga canta “quero louvar os grandes desse lugar, Luiz Pereira, dona Bárbara de Alencar...”. Que a história faça o mesmo.
CLAUDIA PARENTE, jornalista.