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Tapioca: O branco amálgama da cozinha no Brasil

A partir da união de ingredientes banais, como coco, goma de mandioca, sal, fogo – e gestos –, produz-se um dos quitutes mais genuinamente brasileiros

TEXTO Eduardo Sena

01 de Fevereiro de 2014

Foto Divulgação

Permitam-me uma digressão pessoal. Dia desses, entrevistando o uberchef francês que institucionalizou a gastronomia no Brasil, o cozinheiro Laurent Suaudeau, questionei qual seria a fonte de sustentação e inovação da gastronomia brasileira. “Acredito que a cozinha do Brasil tem um pilar histórico gestual importante. O gesto faz parte da formação e é tão relevante quanto a técnica. Um exemplo é como fazer uma boa tapioca, que pode ficar ‘borrachuda’. Você tem que deixar a goma aerada, depois de peneirar com cuidado, e pôr aos poucos na frigideira com golpe de vista para evitar que a massa fique muito espessa e crua. Mas quem ensina isso em uma escola? Você vai encontrar em aldeias e ir assimilando gestos ao longo de anos. Isso é um pilar muito grande, a assimilação da relação tátil do cozinheiro com o alimento”, respondeu.

Quem sobe ao Alto da Sé, em Olinda, e segue para a praça de alimentação local, depara-se com todo esse gestual descrito por Laurent. Quando o relógio assinala 15h, a brasa do pequeno fogareiro de barro de Dona Tânia já está bem alaranjada. O sol ainda está quente e a quituteira começa a liturgia de preparo da tapioca: soltar o coco fresco raspado, peneirar a goma, abanar o carvão para a labareda subir e pôr a frigideira para esquentar. Os gestos são repetidos à exaustão pela comerciante. Antes disso, porém, na hora da seleção dos produtos na feira, os ritos também são seguidos. O coco seco, por exemplo, é escolhido pelo som que faz quando é balançado na mão. Deve-se ouvir o som da água para assegurar a qualidade para o consumo.

E basta um olhar mais cuidadoso para perceber essa individualização dos fazeres como o embrião de linguagens, símbolos e tradições – tripé responsável por constituir a cultura local. E não é demasiado creditar ao talento e à criatividade dessas damas da goma o poder de transformação do espaço público ordinário em um ambiente particular. Talvez, por isso, o Alto da Sé seja a principal referência de quem quer comer uma tapioca na Região Metropolitana do Recife. E nem tanto pelo sabor, que tecnicamente é parelho ao de vários lugares. Mas por tudo aquilo que a cerca. Atividades simples, que singularizam aquele espaço.

“Hoje, a gente tem que trazer tudo pronto. Não podemos mais raspar o coco aqui”, conta Tânia Ferreira, que vende o acepipe há 32 anos, metade de sua idade, referindo-se às novas diretrizes sanitárias da Prefeitura de Olinda, que proíbe também e a fritura de acarajés no local. Mas, falando da vendedora, ela é filha de tapioqueira, portanto, rebento da tapioca. Foi o preparo esbranquiçado, circular e dobrado da goma de mandioca com coco seco fresco ralado com manteiga e queijo, que possibilitou o sustento da cozinheira. Levou adiante a tradição da mãe e criou seus quatro filhos da mesma forma.


Tânia Ferreira faz e vende tapiocas há mais de 30 anos no Alto da Sé,
em Olinda. Foto: Leandro Lima

A receita é secular e brasileira de pai e de mãe. “Era alimento indígena, feito a partir da goma da mandioca produzida por eles. Insumo, aliás, corriqueiro em todo o Norte e Nordeste que, quando levado ao fogo, se transformava em beiju, um tipo de panqueca da terra”, pontua a pesquisadora gastronômica Maria Lecticia Cavalcanti. A tapioca seria, portanto, o beiju recheado. “No princípio, apenas com coco. Depois foi ganhando, aos poucos, toda sorte de ingredientes. Como a massa tem sabor neutro, faz convite a vários temperos”, registra ela.

Como a culinária pernambucana, embrião da cozinha brasileira, foi nascendo aos poucos, feita a partir do delicado equilíbrio entre as cozinhas portuguesa, indígena e africana, a tapioca corporifica essa sintaxe étnico-comestível. Segundo Gilberto Freyre, no seu clássico Casa-Grande & Senzala, “na tapioca de coco, chamada molhada, estendida em folha de bananeira africana, polvilhada de canela, temperada com sal, sente-se o amálgama verdadeiramente brasileiro de tradições culinárias: a mandioca indígena, o coco asiático, o sal europeu, confraternizando-se num só e delicioso quitute sobre a mesma cama africana de folha de bananeira”.

TAPIOQUEIRAS
Numa perspectiva comercial, é a tapioqueira quem realiza o ofício tradicional de fazer a tapioca. Nas feiras, nos mercados e em muitos outros lugares, lá está ela, realizando as receitas identitárias da região, como também assim faz a baiana vendedora de acarajé, a “tacacazeira”, dispondo seus tacacás em Belém, e outras representantes das cozinhas regionais. Ali, na vista mais bonita de Olinda, são 37 delas, segundo a Associação de Tapioqueiras da Sé. “A tapioqueira é, sem dúvida, uma grande difusora da comida de coco: a tapioca tem na sua receita tradicional o ingrediente ralado, embora também se faça tapioca apenas com a goma, para ser comida com manteiga que derrete sobre a massa branca”, sublinha o sociólogo Raul Lody.

Nesse verdadeiro fast food popular, que é o espaço de alimentação do Alto da Sé, estão as tapiocas secas, mais rápidas de serem feitas e consumidas. Lody lembra que “são preparadas sob o olhar do freguês, e que certamente cada culinarista deixará sua assinatura no sabor, distinguindo-se dessa forma as autorias, como, aliás, acontece com o acarajé, o abará, a cocada e tantos outros quitutes que nascem de uma habilidade que se pode chamar de mão de cozinha”.

No caso da tapioca da Tânia, o segredo, revela ela, está na goma soltinha, pouco úmida. Para quem pede com queijo de coalho, o mesmo não pode se encontrar gelado, uma vez que, em contato com a frigideira quente, soltará água. No fast food tapioqueiro, veem-se muitas interpretações, em especial nos recheios. A massa é a mesma, e o processo também, mas, assim como aconteceu com a pizza, os sabores podem ser os mais diversos. Tem de camarão, charque desfiado, frango, linguiça, chocolate, goiabada, doce de leite, banana com canela e queijo de manteiga (cartola).


Na rua, a tapioca é feita na brasa; nos restaurantes, é preparada no fogão tradicional.
Foto: Leandro Lima

Silvana Araújo, que também desempenha o ofício no Alto da Sé, há 26 anos, vende todas essas versões. Mas confessa que “essa coisa de misturar” é invenção equivocada. “Onde já se viu? Querem defender tanto a autenticidade, o que é típico, e saem fazendo tapioca de tudo. Eu faço, por questão de mercado, se o cliente pedir, preciso ter. Mas no dia que cismarem e proibirem, como proíbem tudo aqui, eu sou a primeira a votar a favor”, depõe.

REFERÊNCIA
Obviamente, não é apenas no Alto da Sé que existe tapioca. A receita é prato de subsistência no café da manhã e na ceia de muitos lares nordestinos. E em muitas das ruas e restaurantes da capital pernambucana, sobretudo aqueles com o rótulo de regional, o acepipe também é vendido. No restaurante Parraxaxá, referência de primeira ordem de comida típica na cidade, que mantém endereços em Boa Viagem e Casa Forte, a tapioca, junto à carne de sol e o bolo de rolo, está entre os itens mais procurados por turistas.

Segundo o proprietário das casas, Bruno Catão, as tapiocas que têm mais saída são as que combinam queijo de coalho e coco, só de coco, ou apenas com queijo. “Nada que fuja muito ao padrão, mas, para reforçar o quesito estética do alimento, temos a bordada: nela, o queijo fica por fora da goma e, depois de assado, ganha um aspecto de renda”, descreve o empresário, que também é cozinheiro. Por mês, são vendidas cerca de 1,3 mil unidades em cada uma das casas.

Nas lanchonetes das academias de ginástica, ela também é artigo comestível benquisto. Aliás, ganhou o status da nova queridinha do verão porque não contém glúten – a proteína mais odiada dos últimos anos, que colabora para o aumento da inflamação do organismo e da gordura abdominal. Ou seja, é uma boa substituta para o pão branco e, além de tudo, é pouco calórica. Tem cerca de 70 calorias – quando sem recheio.

No restaurante Balanceado, da Academia Santé, em Boa Viagem, a mais pedida é a que traz a goma assada com queijo ricota e ervas finas. “Sem dúvidas, o prato é uma opção saudável, quando combinado com recheios e acompanhamentos que seguem a dieta magra. Podem ser acrescentados um ovo mexido, pasta de húmus com páprica e um fio de azeite com orégano. Se preferir um alimento doce, escolha geleia sem adição de açúcar”, recomenda Tamyris Farias, nutricionista responsável pelo espaço, e que sugere as combinações do box da página anterior. 

EDUARDO SENA, jornalista.

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