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“Esse filme é sobre solidão”

Diretores Marcelo Gomes e Cao Guimarães coassinam a direção de 'O homem das multidões', longa inspirado em conto de Edgar Allan Poe, que será lançado no Festival de Berlim

TEXTO André Dib

01 de Fevereiro de 2014

Foto Ivo Lopes Araújo/Divulgação

Eles já trabalharam no curta Concerto para clorofila e no longa Ex-isto. Agora estão juntos em O homem das multidões, primeira coprodução cinematográfica entre Pernambuco e Minas Gerais. Assinado por Marcelo Gomes e Cao Guimarães, o longa é o único brasileiro selecionado para a Mostra Panorama do Festival de Berlim.

Diretor de Cinema, aspirinas e urubus, Viajo porque preciso, volto porque te amo (com Karim Aïnouz, que, com Praia do Futuro, também estará em Berlim, na competição oficial) e Era uma vez eu, Verônica, Gomes define o novo filme como o encontro da cachaça mineira com o coentro pernambucano. Sobre o processo, diz ele, “foi muito divertido”.

Com O homem das multidões, Cao Guimarães completa a assim batizada Trilogia da Solidão, iniciada com A alma do osso e O andarilho. Inspirado em conto de Edgar Allan Poe, o longa acompanha o dia a dia de um condutor de trem (o ator Paulo André, do grupo Galpão) em Belo Horizonte. Sua chefe, vivida pela atriz Silvia Lourenço, o acompanha com interesse particular, por monitores de vigilância e subterfúgios sociais.

Uma das particularidades do longa é o espaço ocupado na tela, um formato quadrado que lembra o Instagram (e por sua vez, o Polaroide) e, ao mesmo tempo, remete ao usado na origem do cinema. Em entrevista concedida à Continente, Cao e Marcelo falam sobre as escolhas estéticas e o processo criativo, que resultaram em uma obra singular.

CONTINENTE O roteiro é fruto de uma estada de vocês em Berlim. Como foi a relação com a cidade nesse tempo?
MARCELO GOMES Nossa temporada em Berlim foi de três meses. Foi o momento de amadurecimento, o que permitiu um processo inicial de definir a história que gostaríamos de narrar, os personagens, o tema da solidão analógica e digital e o desejo de tornar contemporâneo o conto de Allan Poe. Depois disso, viajei muito para Minas Gerais, e Belo Horizonte foi se tornando mais presente como a cidade na qual iríamos trabalhar.


Cao Guimarães. Foto: Divulgação

CONTINENTE A história se passa no centro de Belo Horizonte, mas o filme trabalha com elementos de Berlim, como as linhas de trem. O que mais foi transposto?
MARCELO GOMES Os trens remetem a uma relação direta com Berlim, mas esse filme é sobre solidão no Terceiro Mundo, cuja urbanidade começou há menos tempo. A solidão é uma questão universal, mas a solidão berlinense cheira a mofo; a nossa, a suor. O ritmo com que observamos o centro de Belo Horizonte é de metrópole europeia, com mais calma e tranquilidade.
CAO GUIMARÃES Berlim seria quase o oposto da sensação que procuramos no filme, o oposto da capital tropical, desgovernada e claustrofóbica. E Berlim é dilatada, com muitos parques, é a solidão da falta, do vazio, da velhice de uma cultura cansada, de uma vida tão organizada, que entedia. Aqui, é do excesso, da quantidade de gente, falta de organização, da luta do dia a dia. Começamos a escrever o roteiro lá e, durante as conversas, pensamos que essa seria a sensação do personagem, que talvez inconscientemente tenha se tornado um maquinista de trem.

CONTINENTE E, para um solitário, nada melhor do que se diluir na multidão. O anonimato é confortável.
CAO GUIMARÃES No caso do Juvenal, é uma necessidade espiritual e física, por isso o foco da imagem está nele e não nas demais pessoas. É como se a multidão pudesse sentir sua presença.

CONTINENTE Isso tudo remete ao flâneur, personagem do início do século 20, identificado pelo filósofo Walter Benjamin na poesia de Baudelaire.
CAO GUIMARÃES Sim, buscamos outro tempo, mais dilatado, no sentido da contemplação do outro, do surgimento das cidades. O flâneur está presente no conto como consequência de uma forma de vida guiada pela urbanidade, não pelo campo. Por isso, o conto é a centelha inicial, nós transpomos isso para o contemporâneo, que traz outros tipos de sensação. Daí o quadro quadrado. A solidão de espaços largos mostrada em cinemascope não dá conta de estar dentro de uma multidão, na qual se pode sentir o cheiro do outro. O quadrado tem essa potência.
MARCELO GOMES Por isso a câmera anda a passo de tartaruga, no ritmo do personagem. Também não tivemos a preocupação de fazer edição rápida, esquizofrênica, optamos por observar esses dois personagens com tranquilidade.
CAO GUIMARÃES O ponto de vista é mais do observador do que o daquele que age.

CONTINENTE Essa não é a primeira vez que trabalham juntos. Como tudo começou?
MARCELO GOMES Em 2003, fui a Belo Horizonte montar, com Karen Harley, Cinema, aspirinas e urubus e, numa festa, ela me apresentou a Cao, que dias depois me mostrou o primeiro corte do seu curta, Da janela do meu quarto. Fiquei impressionado com o filme e começamos a sair, conversar sobre cinema. Havia interesse comum em determinado cinema, filmes e cineastas. Mostrei-lhe o primeiro corte de Cinema..., ele gostou bastante, principalmente do trabalho com os atores. Ele havia acabado de fazer A alma do osso e me falou que era uma trilogia, da qual queria que o terceiro filme fosse uma ficção baseada em Allan Poe. E me convidou, porque não se sentia familiarizado com o mundo da ficção. Em 2007, ganhei uma bolsa do DAAD de residência na Alemanha e, como estava com o roteiro de Era uma vez eu, Verônica e de O homem das multidões, solicitei um auxílio para levar o Cao. É muito bom fazer a estreia mundial em Berlim, sete anos depois.

CONTINENTE Como foi dirigir em dupla, a dinâmica de criação?
MARCELO GOMES É muito fácil trabalhar com alguém que tem gostos parecidos, além da admiração mútua. Todo o processo de criação foi prazeroso. Naturalmente, houve discussões, e o que prevaleceu foi tendo em vista o melhor para o filme. Deve ter sido difícil para equipe, pois são dois diretores. Mas, para nós, foi complementar. Enquanto eu trabalhava com atores, Cao estava com Ivo Lopes de Araújo, que fez a fotografia. Estávamos empenhados em saber que filme era esse, quando ele chega ao set, onde tudo se materializa. E foi tudo muito eficiente, graças a esses anos de discussão.
CAO GUIMARÃES Muitas vezes uma parceria fica complicada, mas o filme ultrapassou questões e quis existir independente da gente. Ao complementar características minhas e de Marcelo, o filme ganha uma vida paralela às nossas vontades e desejos. Quando ele começou a existir para além de cada um, fiquei satisfeito. Chamei Marcelo porque, além de bom roteirista, é divertido falar com ele. E, cada vez que compartilhávamos o roteiro com as pessoas envolvidas, como o ator, a direção de arte e a de fotografia, percebia que o projeto ganhava novas formas. Isso até o momento da filmagem, quando quase abandonamos o roteiro e fomos ver o que essa entidade, o filme, queria dizer. Nesse momento, trocamos de características com o outro, eu estava gostando mais de trabalhar com os atores e Marcelo, com a fotografia. Isso foi rico para o aprendizado de cada um.


Marcelo Gomes. Foto: Divulgação

CONTINENTE A escolha do Grivo (dupla mineira responsável pelo som) e de Ivo Lopes de Araújo (diretor de fotografia, do coletivo cearense Alumbramento) para a equipe tem a ver com essa parceria?
CAO GUIMARÃES Sim, foi uma equipe sintonizada, que também é autora do filme. Já conhecia Ivo, de Fortaleza, antes de ele começar a se relacionar com a Teia (produtora mineira da qual fazem parte Helvécio Marins, Clarissa Campolina e Sérgio Borges). Queríamos um diretor de fotografia mais jovem, mais aberto do que alguém engessado à indústria, a equipes grandes. E o Ivo tem noção de direção, deu pitacos, não é à toa que está dirigindo filmes.
MARCELO GOMES O Grivo está para o Cao assim como Marquinhos (Marcos Pedroso, diretor de arte) está para o meu trabalho. Ele construiu o apartamento de forma brilhante, foi um encontro muito bacana de pessoas de lugares diferentes.

CONTINENTE Vocês também assinam como produtores.
MARCELO GOMES Sempre fui produtor dos meus filmes. Nesse caso, isso está mais definido, porque estamos bancando esse filme durante todos esses anos, antes mesmo de chegarem os patrocínios.

CONTINENTE Por falar nisso, essa talvez seja a primeira coprodução Minas/Pernambuco.
MARCELO GOMES A REC Produtores foi pioneira na co-produção entre estados. O Brasil é um país continental, precisamos aproveitar essa diversidade. A maior parte dos recursos está no eixo Rio-SP, mas as leis estaduais têm facilitado a captação.
CAO GUIMARÃES No nosso caso, estabeleceu-se um diálogo entre formas de fazer cinema: João (Vieira Jr., da REC) e Beto (Magalhães, da Cinco em Ponto). Um tinha curiosidade de sair do esquema de grande produção. O outro, de entender o mecanismo de uma produção maior. Nesse sentido, o aprendizado de definir o tamanho do filme foi fundamental para que as coisas fluíssem na hora da filmagem. E isso determinou o resultado, que ficou dialético, no meio termo.

CONTINENTE O formato de tela adotado é incomum para os padrões atuais. Ao mesmo tempo, ele traduz a condição do personagem, de estreitamento de horizontes e inadequação.
MARCELO GOMES É curioso como, no cinema, se usa tão pouco o formato como linguagem, não são feitos filmes redondos, por exemplo, buscando um sentido, para não ficar no maneirismo pelo maneirismo. Assim como você interpreta a inadequação, pode-se imaginar que o quadrado é a janela de metrô, por onde Juvenal vê o mundo. O interessante é que ele abre uma reflexão sobre formatos, que se adequam ao sentimento dos personagens. Em 1927, Abel Gance fez Napoleon usando formatos completamente estranhos, dividindo a tela em três, ousando formas narrativas. Cao, que veio das artes plásticas, compartilha desse pensamento. Queremos convidar o espectador para entrar em um mundo diferente, em que a identificação com os personagens supere o estranhamento.
CAO GUIMARÃES Pergunto-me por que o cinema é tão engessado em si mesmo. Por que a indústria tem que reger uma expressão artística, só porque as TVs são 16x9? É preciso pensar ontologicamente a arte cinematográfica. Por que nos acostumamos ao formato “x”? Optamos pelo quadrado sabendo que isso iria estreitar as possibilidades de venda, mas a ousadia é algo fundamental, que o cinema também precisa. É preciso trazer o momento cinematográfico para a contemporaneidade. 

ANDRÉ DIB, jornalista e crítico de cinema.

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