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Protestos: Das barricadas ao Leblon em chamas

Essas trincheiras urbanas, que têm na França seu epicentro histórico, são erguidas com amontoado de materiais como fortificações que se erguem sob a urgência de um clamor

TEXTO Marcelo Pedroso

01 de Fevereiro de 2014

Empilhamento de paralelepípedos foi estratégia na barricada da Comuna de 1871

Empilhamento de paralelepípedos foi estratégia na barricada da Comuna de 1871

Foto Pierre Ambrose Richebourg/Reprodução

A palavra barricada vem de barrica, uma espécie muito comum de tonel usado para armazenar líquidos numa época em que a água ainda não abundava nas torneiras das casas. Foi provavelmente o material mais resistente e disponível que os insurgentes do 12 de maio de 1588 encontraram em Paris para se proteger de um inevitável confronto com os forças armadas do rei Henrique III. Vitória das ruas, o monarca teve que fugir da cidade. O episódio, conhecido como Dia das Barricadas, faz parte dos conflitos religiosos entre católicos e protestantes e pode ser visto hoje como uma espécie de marco fundador de uma genealogia das barricadas.

Não à toa, o surgimento desse tipo de tática coincide com o fortalecimento das cidades enquanto centros da vida coletiva e produtiva. O mesmo movimento histórico que levou as populações europeias a se organizarem em centros urbanos, buscando formas de otimizar a produção e circulação de mercadorias, nos instantes ainda embrionários do capitalismo. Levou também a novas formas de resistência e ocupação do espaço em situações de conflito.

As barricadas funcionam como uma espécie de trincheira urbana – com a diferença de não serem escavadas no solo, mas feitas a partir do amontoamento dos materiais os mais diversos empilhados para formar uma barreira de proteção. São como fortificações contra-hegemônicas, uma engenharia improvisada que se assenta sobre a urgência de um clamor, um protesto, uma revolta.

No seu romance Os miseráveis, Victor Hugo registra com fascínio a edificação da monumental barricada de Saint-Antoine, em Paris. Uma impensável construção de três andares de altura, que se espalhava por quatro ruas. “De que era feita esta barricada? Das ruínas de três casas de seis andares, demolidas expressamente, disseram uns. Do prodígio de todas as fúrias, disseram outros. (...) Foi a improvisação da ebulição. Olha, este portão! Esta grade! Esta cobertura! Este pedaço de chaminé! Este pote rachado! Tragam tudo, deitem tudo aqui!”, escreveu, situando os acontecimentos durante as revoltas de 1848 em Paris.

Estamos, de fato, na época áurea das barricadas. Trata-se do período entre 1827 e 1851, quando a capital francesa conheceu oito levantes populares de grandes proporções, que transformaram suas ruas em praças de guerra com bloqueios improvisados por todos os lados. Um momento de intensa convulsão política e aspirações revolucionárias. Alguns anos antes, o povo havia passado a navalha na realeza francesa, a Europa inteira estava transtornada pelo furor das guerras napoleônicas e um espectro novo ameaçava a ordem das coisas no continente – o do comunismo.


Rua SaintMaur, em Paris, após ataque em junho de 1848. Foto: Reprodução

OS TRÊS GLORIOSOS
De todos esses momentos em que a ordem estabelecida cambaleia e as barricadas tomam as ruas, o mais vibrante foi a Revolução de Julho de 1830, também conhecida como Os Três Gloriosos (Les Trois Glorieuses), por ter acontecido nos dias 27, 28 e 29 daquele mês. Estima-se que nada menos que 4 mil barricadas foram levantadas em Paris, mobilizando milhares de pessoas entre os insurgentes e as forças da ordem. Para termos ideia do que significam 4 mil barricadas numa cidade, basta lembrarmos que, embora num contexto totalmente diferente, o Recife não aguenta hoje um protesto de meia hora com bloqueio de alguma via movimentada da cidade sem que uma insurreição ruidosa de contramanifestantes venha a clamar pela ordem, denunciar o vandalismo do movimento e exigir a imediata restauração do fluxo de veículos na cidade, dentro de uma linha argumentativa da ordem do “não negociamos com terroristas”.

Mas na Paris de julho de 1830, pelo menos durante três dias, ninguém passava nas ruas. Nem as bicicletas, nem as carruagens. A luta civil, de caráter republicano, tinha como objetivo depor o monarca Carlos X, à frente de um governo conhecido como Restauração Francesa, movimento monárquico contrarrevolucionário que teve início em 1814 e terminou durante Os Três Gloriosos com a queda do rei.

Mais de mil pessoas morreram durante os conflitos, que teve grande impacto no imaginário da época. Atento ao que acontecia nas ruas, Eugène Delacroix pintou sua mais famosa tela, A liberdade guiando o povo (1830). Em carta ao irmão, disse estar se dedicando a um tema moderno – a barricada. “Mesmo que eu não tenha lutado pela liberdade do meu país, pelo menos pinto-a.”

A resposta à tamanha agitação nas ruas não tardou a vir sob a forma de medidas urbanísticas que visavam a, entre outras coisas, neutralizar a possibilidade do povo de se amotinar nos espaços públicos. Estreitas e sinuosas, as vias da Paris de então facilitavam um rápido empilhamento de materiais a partir de um mutirão de mãos ágeis e obstinadas que, logo em seguida, estariam empunhando as baionetas.

A Paris que surgia com o barão de Haussmann, o “artista demolidor”, prefeito da cidade entre 1853 e 1870, precisava se modernizar e reagir a tantas intempéries políticas. A cidade foi inteiramente reformatada e vários aspectos da vida coletiva foram levados em conta para se chegar ao atual desenho urbano da capital francesa. Ao erradicar as antigas ruas estreitas e substituí-las pelos portentosos bulevares, o gestor estava atento a medidas sanitárias que dificultariam a proliferação de epidemias (o esgoto deixava de correr a céu aberto e os “miasmas” seriam varridos mais facilmente), assim como à preparação da cidade para a enxurrada de veículos que as metrópoles passariam a receber no século seguinte.


Durante o levante de maio de 1968, os carros foram revirados para efeito de bloqueio.
Foto: Reprodução

Mas, do ponto de vista da agitação popular, os bulevares se tornavam grandes aliados no combate às barricadas. Primeiro, devido à sua largura, o que demandava uma quantidade de material exponencialmente maior para o fechamento da rua. Isso fazia com que os insurretos levassem muito mais tempo para erigir o bloqueio – o que permitia às forças da ordem chegar a tempo de debelar a construção antes que ela ficasse pronta. E, segundo, porque, com seu traçado retilíneo, os bulevares permitiam que a repressão alvejasse as barricadas de uma distância maior – usando, por exemplo, tiros de canhão.

Mas a resposta das barricadas também não tardou. Em 1871, Paris sediou a primeira experiência de um governo operário do mundo. Os communards tomaram o poder a partir da luta civil – e as barricadas entravam novamente em cena. Valendo-se do aprendizado das revoltas anteriores, os militantes buscavam agora outras formas de organização nas ruas da cidade.

Em 1866, cinco anos antes da Comuna, Auguste Blanqui publicou Instruções para uma tomada de armas, um programa, segundo o próprio, “puramente militar”, voltado para estratégias de combate de um movimento revolucionário. Em seu texto, Blanqui sugere um esboço de como deve ser erguida uma barricada, abandonando a precariedade improvisada da engenharia guerrilheira empregada nas revoltas da primeira metade do século – que o mesmo vivenciou.

O revolucionário francês elege o paralelepípedo como matéria-prima por excelência da “fortificação passageira”. Em seus cálculos, estabelece que, numa rua com 12 metros de largura, uma barricada ideal deveria se apoiar em 9.186 dessas pedras, que seriam, naturalmente, extraídas da própria via.

As imagens – daguerreotipadas – das barricadas da Comuna dão conta do quanto a engenharia sugerida por Blanqui foi absorvida pelos communards. Seu aspecto assemelha-se muito mais a uma fortificação militarizada, com o empilhamento geométrico e planejado dos paralelepípedos, do que o amontoado meio caótico de materiais que caracterizava os bloqueios descritos por Victor Hugo.


No Leblon, foram os sacos de lixo incendiados que impediram a passagem nas ruas.
Foto: Reprodução

Passado o ímpeto revolucionário que agitou principalmente a Paris do século 19, barricadas continuaram sendo erguidas em todo o mundo, de diversas formas e nos mais variados movimentos de resistência. A capital francesa, no entanto, continuou sendo um espaço privilegiado para esse tipo de ocupação, como mostram os bloqueios montados pelos partisans, durante a resistência à ocupação nazista, e as barricadas feitas com carros revirados, durante o levante de maio de 1968.

BRASIL, HOJE
No Brasil, os protestos que ocorreram a partir de junho de 2013 adotaram, em alguns momentos, táticas que guardavam familiaridade com a tradição das barricadas. Bloqueios de rua tornaram-se comuns, mais como uma estratégia de interferir na rotina das cidades e chamar a atenção para os problemas do que como forma de proteção contra as forças policiais. O período também marcou ascensão de um tipo de mídia descentralizado, não controlado pelos grandes grupos econômicos, mas organizado em torno de arranjos produtivos independentes – como é o caso da Mídia Ninja –, tendo a internet como espaço para escoamento do material realizado.

Milhares de imagens tomaram as redes testemunhando o que acontecia nas ruas. Uma delas: do Rio de Janeiro, mais precisamente do Bairro do Leblon, Avenida Ataulfo de Paiva. É lá que encontramos uma configuração específica de barricada, vários sacos de lixo espalhados regularmente nos cruzamentos da via, ardendo em chamas. Mais do que como proteção, serviam como bloqueio. Mais do que isso, serviam como gesto. O gesto de uma irrefreável revolta expressa contra uma conjuntura social e política que marca o país: o das barricadas.

Diferente de outras imagens dos protestos, essa não treme, sua imagem é de uma estabilidade quase impecável. Trata-se de um plano-sequência que dura dois minutos e vinte segundos. A câmera flutua por sobre a chamas, faz a varredura de uma rua quase deserta e incendiada. A cidade, pasmem, parece tranquila em meio ao braseiro que tomou a avenida. Há pouquíssimas pessoas na rua, o que contrasta com o ardor do fogo nos cruzamentos, aparentemente aceso há pouco tempo. Onde estão os insurretos, onde está a polícia, onde está o conflito?

A imagem não responde, coloca-as num fora de campo para nos deixar numa leve e enigmática suspensão – a suspensão da ordem, a suspensão da razão. Pois, assim como os black blocks, essa imagem não tem rosto, ninguém sabe quem a fez e possivelmente nunca saberá – aí está também a sua força. É uma imagem do estupor. Aquele que tomou todo o Brasil, que nos deixou atônitos, sem entender. As barricadas nos mandavam seu recado e era como se estivéssemos no faubourg de Saint-Antoine vendo se erguer o colossal bloqueio de três andares de altura – só que aqui, no coração do Leblon. 

MARCELO PEDROSO, cineasta, membro da Símio Filmes e mestrando em Cinema pela UFPE.

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