Arquivo

Juliana vai a Roma

TEXTO José Cláudio

01 de Fevereiro de 2014

'Templo de Minerva', bico de pena sobre papel, 24 x 34,8 cm, José Cláudio, Roma, 1958

'Templo de Minerva', bico de pena sobre papel, 24 x 34,8 cm, José Cláudio, Roma, 1958

Imagem Reprodução

Tem um livro tampa: Amor a Roma, de Afonso Arinos de Melo Franco. É que minha netinha americana Juliana, nascida em Waco, Texas, recém-formada em letras, já trabalhando, está juntando uns trocados pra ir a Roma, atiçando meu amor de avô. Na falta de algo mais sonante, pego bigu na viagem dela lhe dando essas dicas, confiado no ano em que lá morei quando ela nem era nascida, que digo eu, nem sua mãe era nascida, eu ainda solteiro. Mas Roma é eterna. Passei lá o ano entre 1957-58 e voltei com minha mulher, Leonice, em 79, vinte e um anos depois. Passava frequentemente, na primeira viagem, na Igreja de Santa Maria del Popolo (pópolo, povo), caminho para a Accademia (acadêmia) di Belle Arti, onde estudava, e de tanto pedir ao sacristão para acender a luz da capela onde ficavam os quadros Conversão de São Paulo e Crucificação de São Pedro, ambos de Caravaggio, cujo nome era Michelangelo Merisi, Caravaggio a aldeia de onde vinha, como o Vinci de Leonardo, não confundir pois com o Michelangelo Buonarroti, ou simplesmente Michelangelo, o da Capela Sistina, e daPietà de São Pedro; de tanto pedir, dizia eu, o sacristão resolveu que eu podia acender a luz sem precisar ir pedir a ele. A capela era um breu de escura. Quando fui com Leonice, encantada, pois na hora estava havendo um casamento, a noiva muito bonita, alta, vestida a caráter, entrando emocionadíssima, as flores do buquê tremendo nas suas mãos, passamos ao lado da nave e procurei tateando o lugar do interruptor na tal capela: meu dedo mal tocou e as luzes se acenderam!

Sempre viajei como aquele rapaz da música de Belchior, sem dinheiro no bolso nem parentes importantes, o melhor jeito de conhecer um lugar segundo Joca Souza Leão: liso. De fato eu comia naVia della Scrofa (porca), mas tudo muito limpo, numa mensa (mesa), comida a preços módicos. Muitas vezes, para completar a refeição, eu comprava ali perto, na Via dei Portoghesi (portugueses) ummezzetto (50 gramas) de stracchino (um tipo de queijo). Nessa Via dei Portoghesi certa vez Caravaggio puxou da espada e queria matar um cara: foi preso entre outras coisas por não ter licença de carregar espada. Meu amigo Mario Delli Colli disse que ali virou rua de milionários hoje.

Uma das grandes épocas de Roma é a do barroco, justamente a época de Caravaggio. Na Scrofa você poderá ver, na Igreja de São Luís dos Franceses (Chiesa di San Luigi de’ Francesi), O Martírio de São Mateus, e A Vocação de São Mateus do mesmo Caravaggio e mais adiante, na Chiesa di Sant’AgostinoLa Madonna dei Pellegrini. Se você quiser ter uma ideia do resumo do barroco, visite aChiesa del Gesú (Igreja do Jesus) onde se fundem arquitetura, pintura e escultura. Engraçado que o nome “barroco” e o da arte que se seguiu, “rococó”, designam ambos coisas do mar, sendo o primeiro, de origem portuguesa, uma pérola de formato irregular, e o outro de uma concha. O barroco é cenográfico, grandioso, a igreja católica querendo mostrar seu poder depois do golpe sofrido com a Reforma, de Lutero, enquanto o rococó já se distingue pela frivolidade, como se o discurso já se tivesse esgotado (você, Juju, formada em letras e que adora pintar, gostará de ler Rococo to Cubism in Art and Literature de Wylie Sypher.

Comecei, ao acaso, por Caravaggio. Em Roma ainda tem dele São Jerônimo, e Davi com a cabeça de Golias na Vila Borghese; Narciso, Galeria Nacional de Arte Antiga; O Repouso no Egito, Galeria Doria; A Decapitação de Holofernes, Coleção Coppi; e Deposição de Cristo, de que há tantas releituras, de Rubens a Cézanne, da Pinacoteca Vaticana.

Por aí dá para ver que você não vai poder, durante alguns dias, se especializar em nada. Já que toquei no Vaticano, seria mais didático, para nós do Ocidente, começar por uma visita às catacumbas: foi ali que Jesus Cristo de fato nasceu. Em cima da Via Appia Antica, a tumba de Cecilia Metella a dar notícia do mundo que terminava; e, embaixo do chão, a semente do mundo nascente. A arte desse mundo de cima foi destruída drasticamente. Sobrou apenas o que ficou enterrado. Roma tem sete cidades, uma embaixo da outra. Por sua vez, esse mundo que foi soterrado pelo cristianismo, o do Império Romano, começou a sair de debaixo do chão. É a Renascença, outro grande período de Roma, Leonardo, Rafael, Miguel Ângelo, ou Michelangelo como dizem lá. Você tem que tomar alguns exemplos para entender o todo, pelo menos numa primeira olhada, como fiz aqui com Caravaggio para a pintura do Seiscentos. Antes que me esqueça você terá de dar uma passada no Museo di Villa Giulia, para ver a arte etrusca. Sabia você que a palavra “amor” foi tirada da língua etrusca? Acha José Ortega y Gasset que é por isso que até hoje ninguém sabe direito o que é. Por falar em “entender”, você só poderá entender Miguel Ângelo se vir a escultura Laocoonte no Museo Vaticano que foi desenterrada justamente na época de sua juventude. E o defeito da pintura renascentista, que dominou o mundo, é justamente ter partido da volumétrica da escultura greco-romana, o que durou até o aparecimento de Velázquez (Ortega y Gasset).

Um dos meus lugares prediletos era a Piazza del Campidoglio tendo ao centro o mais belo monumento equestre, modelo de todos os outros que existem no mundo, o de Marco Aurélio. Os cristãos destruíram todos menos este: pensavam ser de Constantino, primeiro imperador cristão. O pedestal e as raias do chão da praça são de Miguel Ângelo. Entre no museu para ver a Vênus Capitolina. Suba à igreja Aracoeli (araxéli). Não deixe de ver as Termas de Diocleciano nem o Foro Romano. Entre no Pantheon (pânteon), vá ver o Moisés na San Pietro in Vincoli (víncoli, ferros) e peça em qualquer boteco um bicchierino (copinho) de Olevano (olévano), rosso (tinto) ou Frascati (frascáti), bianco (branco).. 

JOSÉ CLÁUDIO, artista plástico.

veja também

Quinteto Violado: Ensaio para a folia

Jonathas Andrade: A insurgência dos carroceiros como metáfora

William Burroughs: O malvado favorito da contracultura