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Fotografia: A cena capturada

Os mecanismos usados pelos fotógrafos para expressar elementos materiais, humanos e semânticos que compõem uma montagem teatral

TEXTO Pollyanna Diniz

01 de Fevereiro de 2014

Trabalho de Guto Muniz para a peça 'Donka - uma carta a Tchekhov', da Companhia Finzi Pasca

Trabalho de Guto Muniz para a peça 'Donka - uma carta a Tchekhov', da Companhia Finzi Pasca

Foto Guto Muniz/Divulgação

A pesquisa Teatro para crianças no Recife – 60 anos de história no século 20 reuniu mais de 450 imagens – entre fotografias, recortes de jornal, cartazes e anúncios – de espetáculos que subiram aos palcos da capital pernambucana entre 1939 e 1999. “A maior dificuldade foi encontrar informações. Como voltei bastante no tempo, vários diretores, atores, produtores, já faleceram. Então, em muitos momentos, tive que recorrer quase que exclusivamente aos jornais da época”, explica o pesquisador e jornalista Leidson Ferraz.

Se, nos primeiros anos cobertos pela pesquisa, os periódicos não publicavam muitas fotos das montagens, depois isso mudou. Mas, ainda assim, nem todas as peças estão registradas em fotografias. “Não temos nenhum resquício de imagem de muitos espetáculos. E são as fotografias que abrem a visão do que foi a cena, que a tornam palpável, que nos fazem perceber não só o trabalho dos atores, mas a cenografia, o figurino, a iluminação”, analisa o pesquisador, mesmo ponderando que nem sempre as imagens são fiéis à encenação.

Logo que começou a registrar espetáculos de teatro, João Caldas percebeu a importância histórica de que fala Leidson Ferraz quanto à fotografia de cena. Engenheiro por formação, trabalhou no Centro Cultural São Paulo, documentando com regularidade a cena paulistana. “Eram muitos espetáculos do circuito comercial e eu também fazia dança. Foi aí que me estabeleci como fotógrafo de palco e aprendi algumas coisas que levo comigo, como fotografar com a presença do público. A energia do espetáculo durante a temporada é completamente diferente”, conta o fotógrafo que, em mais de 30 anos de carreira, já registrou cerca de 800 espetáculos.


João Caldas acaba de lançar o livro Teatros, em que compila parte do seu trabalho, que inclui fotos para a peça Clara Crocodilo, de 1981. Foto: João Caldas/Divulgação

Uma das referências históricas para João Caldas e muitos outros fotógrafos de artes cênicas é o trabalho de Fredi Kleemann (1924-1974), que, a partir do final dos anos de 1940, registrou as montagens do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). “Ele também era ator, pertencia àquele grupo. Então, conhecia muito bem a dinâmica. As suas fotos eram todas posadas, mas pareciam mesmo de cena. Ele preparava a cena para a foto, que mostrava a interpretação, o cenário, os figurinos. A maioria delas, no entanto, era feita com tripé”, diz.

Para Guto Muniz, fotógrafo de Belo Horizonte, uma boa fotografia de cena é aquela que instiga a curiosidade. “Não é a foto que mostra a cena, mas aquela que quer te levar ao espetáculo. Uma foto que é muito retrato da cena talvez seja muito fechada em si mesma”, avalia. Claro que a técnica fotográfica, conhecimento sobre luz, composição, movimento, é importante. Mas o fotógrafo revela que não se atém tão rigorosamente à técnica. “Aceito uma foto que esteja levemente desfocada, desde que tenha a energia do espetáculo, que me dê essa dinâmica. Nos workshops que ministro, percebo que algumas pessoas têm dificuldade em assistir ao que estão fotografando. Exercitam tanto a técnica, que esquecem o que está acontecendo no palco”, comenta. Guga Melgar, fotógrafo do Rio de Janeiro, com 33 anos de carreira, concorda: “Claro que a técnica importa, mas a emoção me interessa mais. Não adianta ter uma foto perfeita, mas sem expressão, sem o instante certo. Gosto de deixar que o trabalho me guie, gosto de fotografar coisas que ainda não vi”, avalia.

Há 27 anos, Guto Muniz acompanha a cena teatral mineira. Em 1987, pediu ao elenco da Cia Sonho e Drama para fotografar Antígona. “Quando cheguei ao laboratório no outro dia e puxei o negativo, percebi que não queria mais parar de fazer isso.” Com o grupo Galpão, o primeiro trabalho oficial foi em 1991, para a montagem de Álbum de família. “Essa peça foi um marco para o grupo, porque eles estavam acostumados com o teatro na rua. E ali, não, era palco, um texto de Nelson Rodrigues, diferente da vertente mais cômica do grupo”, relembra. Também fez Romeu e Julieta, com direção de Gabriel Villela, provavelmente a peça mais emblemática do grupo.

Já Guga Melgar é um dos fotógrafos mais experientes na cena carioca. Fotografa desde os espetáculos mais comerciais até aqueles de grupos, como o Alfândega 88, do diretor Moacir Chaves. “Não tenho preconceitos. Adoro, por exemplo, a turma que faz comédia, Jorge Fernando, Miguel Falabella, Pedro Cardoso. Para mim, o mais complicado é o teatro malfeito, uma montagem que não tem texto, que não é bem-executada”, diz.


No trabalho com cênicas, Bob Sousa elege como destaque
os portraits. Foto: Bob Sousa/Divulgação

CRIAÇÃO
Uma das discussões sobre a fotografia de cena trata da questão da criação artística. Até que ponto o fotógrafo é um criador, se aquelas cenas foram pré-visualizadas pelo diretor? “A fotografia é o meu olhar e não o do diretor. Esses olhares podem ser até parecidos, mas as relações de cena serão trabalhadas de forma diferente na fotografia. É outra linguagem, que não a da construção do diretor”, avalia Guto Muniz. “A fotografia não é só o disparar. É o que você é, viu, pensa, leu, o que você enxerga do espetáculo a partir de toda a sua experiência de vida. É uma recriação”, comenta Guga Melgar.

Para o pernambucano Ivan Alecrim, professor de fotografia, esse novo olhar não pode ser considerado criação. “Você não está criando absolutamente nada. O cenário está montado, a luz. A foto é interpretativa. No teatro, o que você faz é interpretar o objetivo do diretor e transformar num frame. E aí você precisa ter entendimento para escolher qual o instante que representa essa montagem. Se o fotógrafo passar disso, começa a agredir a criação do diretor”, opina. Ele se refere, por exemplo, às interferências que o fotógrafo possa fazer na cena. “Fotografo muito cavalo-marinho, uma realidade bastante específica. Como vou dizer para aquele brincante que a luz não é a ideal para a minha fotografia, se o seu espetáculo acontece com aquela luz de poste?”, pontua.

Em condições adequadas, o ideal é que, antes de fazer as imagens, o fotógrafo esteja munido de informações que subsidiem a construção do seu trabalho: é importante o contato com o diretor, com a linha de trabalho do grupo, com a dramaturgia do espetáculo. “Quando é possível acompanhar o processo de montagem, desde as leituras do texto, as imagens finais da peça geralmente são mais ricas de possibilidades e significados”, comenta Guto Muniz.


Para Ivan Alecrim, a fotografia de teatro não é criação, mas
interpretação. Foto: Ivan Alecrim/Divulgação

A principal regra de postura profissional do fotógrafo de cena é ser discreto e não atrapalhar o espetáculo. “É uma tríade: passar despercebido, entender os instantes do espetáculo e possuir a técnica”, afirma Ivan Alecrim. Para Bob Souza, fotógrafo que desde 2003 acompanha a cena paulistana, é preciso ter respeito pelo palco. “Esse espaço para mim é sagrado. Não é chegar de qualquer jeito. Talvez seja diferente de um fato jornalístico que está ali, posto. No teatro, você está invadindo um espaço”, comenta.

“O respeito é ao trabalho dos outros e à plateia”, complementa João Caldas. Mesmo com as câmeras digitais, sem a limitação das poses do filme das analógicas, esperar o instante certo, a cena se completar, o movimento se realizar, para disparar a câmera, é uma das dicas dos profissionais. “Uma das manias que surgiram com a câmera digital é conferir a imagem depois do clique. Além de atrapalhar os outros e tirar a concentração do ator por conta da luz, você se distrai e pode perder o próximo momento da cena. Às vezes confiro o foco, mas tento não tirar a câmera do olho”, destaca.

O barulho dos cliques também é motivo de incômodo para muitos espectadores e para os próprios atores. Sempre que vai fotografar um espetáculo, Guto Muniz veste preto, tenta se movimentar o mínimo possível e usa um acessório na câmera, como uma bolsa que veste o equipamento, na tentativa de abafar o som. “É preciso escolher uma câmera que seja mais silenciosa, porque cada modelo faz um barulho”, confirma.

ACERVOS E PUBLICAÇÕES
A fotografia digital facilitou a organização do acervo dos fotógrafos. Guga Melgar revela que nunca conseguiu colocar em ordem os negativos que possui. “É uma bagunça! Tentei organizar certa vez, mas isso saiu muito caro. Precisava, por exemplo, de refrigeração adequada”, diz o fotógrafo, que pretende montar uma exposição no ano que vem. Já Guto Muniz, que também é professor e ministrou no mês passado umworkshop no Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte, lançou em 2012 o site Foco in cena (www.focoincena.com.br).


Trabalho para O homem travesseiro. O fotógrafo Guga Melgar diz não fazer distinção entre companhias, trabalhando em comerciais e experimentais. Foto: Guga Melgar/Divulgação

“Ficava incomodado com tantas histórias guardadas. O site não é do Guto, mas é um ensaio sobre as artes cênicas. Por isso tem todos os trabalhos, independentemente de eu ter gostado ou não do espetáculo porque, obviamente, fotografei muita coisa ruim”, conta. A tarefa de disponibilizar todo o acervo ainda não foi concluída e o site serve como um banco de dados e pesquisa, já que tenta trazer, além das fotos, a sinopse, a ficha técnica, textos dos programas, vídeos.

No ano passado, um dos lançamentos na área de fotografia de artes cênicas foi o livro Teatros por João Caldas, que reúne imagens, desde 1981, do espetáculo Clara Crocodilo. “Era um espetáculo transgressor, com música de Arrigo Barnabé. Acompanhei desde o ensaio. Fiz cerca de 40 rolos de filmes de 36 poses. Na época, isso era um absurdo!”, relembra. A pesquisadora Sílvia Fernandes deu o norte sobre quais espetáculos deveriam compor o livro e a edição de imagens foi de Juan Esteves.

Também no ano passado, Bob Sousa lançou Retratos do teatro (a publicação está disponível para download na internet), com imagens registradas desde 2009. “Esse livro e a opção pelos retratos vieram da vontade de, depois do espetáculo, manter um diálogo com as pessoas envolvidas com teatro”, explica. O livro não traz imagens de montagens, mas retratos de encenadores, atores, produtores, críticos. “A fotografia é um elemento narrativo e, mesmo que não estejam caracterizadas como personagens das peças, essas pessoas são personagens de uma história, a do teatro, prioritariamente paulistano”, comenta Bob Souza. 

POLLYANNA DINIZ, jornalista, crítica de teatro e colaboradora do blog Satisfeita, Yolanda?.

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