Chegando aqui, teve a oportunidade de assistir no cinema a O encouraçado Potemkin, cuja filmagem ele havia presenciado. Formou-se engenheiro agrônomo em 1940 e, na Segunda Guerra Mundial, lutou ao lado do Brasil na Itália, pela Força Expedicionária Brasileira; perdeu vários companheiros e viu a morte de perto, quando o exército americano atacou seu agrupamento por engano. Essa experiência inspirou sua obra de ficção Guerra em surdina (Cosac Naify), resultado de uma elaboração de 16 anos sobre os traumas da guerra.
APURO E AUTONOMIA
Em 1943, ofereceu a várias editoras brasileiras uma tradução diretamente do russo do romance Os irmãos Karamazov, que ele nunca tinha lido. “Se tivesse, não aceitaria de jeito nenhum”, diz ele. Porém, ele atribui um papel importante dessa tradução na sua história: “Traduzir Os irmãos Karamazov foi uma revelação. Eu era novato, não em termos de idade, mas em termos de conhecimento. E, no entanto, foi um acontecimento na minha vida. Eu acabei quase decorando o romance”.
Ainda hoje, de tempos em tempos, é possível encontrar essa edição em sebos. Boris, entretanto, a renega. Usou o pseudônimo Solomonov, que é o seu nome patronímico, nessa e em outras traduções, até se sentir seguro. Em 1960, foi o primeiro professor de língua e literatura russa da USP, na qual ficou até 1979, e traduziu escritores como Doistoévski, Tolstói, Tchekhov, Gorki, Pasternak, poetas como Pushkin, Maiakovski.
Suas traduções ficaram conhecidas pelo apuro e pela autonomia. Na época da ditadura militar brasileira, Schnaiderman chegou a ser preso em sala de aula por sua aproximação com a cultura soviética. Ele esteve na URSS em 1965, 1972 e 1977, mas deplorava o realismo socialista, estética oficial soviética que impunha padrões para todas as manifestações artísticas. Para Boris, “o realismo socialista foi uma deformação total. Querer que a literatura se encaixe em normas ético-políticas é um absurdo”. Entretanto, ele simpatizava com o comunismo, o que hoje vê como uma contradição: “Era uma contradição completa, eu não aceitava o realismo socialista, mas era a favor do comunismo”.
Escritores foram perseguidos por não se adequarem ao realismo socialista, mas, para Boris, a grande literatura subsistiu, com os autores que escreviam, mas não publicavam. O caso mais curioso foi o de Bulgákov, autor de O mestre e a margarida: “Bulgákov é um caso muito estranho, de alucinação mesmo. Ele foi tão atacado, que, no final da vida, queria fazer realismo socialista, queria exaltar Stalin. É a identificação da vítima com o carrasco. E foi um grande escritor que passou anos e anos sem poder publicar nada”.
A larga experiência de tradução de Boris Schnaiderman foi resumida num livro, Tradução, ato desmedido, publicado pela editora Perpectiva na sua famosa coleção Debates. No livro, ele trata da importância da autocrítica constante na tradução – Boris, não raro, revisa suas traduções antigas, quando da reedição – “pois é muito fácil resvalar na autoflagelação e no autocompadecimento, e dessa forma incorrer numa das piores formas de exibicionismo”, como ele escreve no livro.
Autocrítica constante, sem autoflagelação ou autocompadecimento, são elementos indispensáveis para um tradutor, mas existe também um elemento central para a atividade: a ousadia. “Traduzir é uma ousadia. Quem sou eu para traduzir Dostoiévski? No entanto, é preciso ser feito. Tenho que aplicar toda a minha capacidade e fazer o melhor que posso. Mas é uma ousadia tremenda”, diz Boris, com toda lucidez, aos 96 anos.
De aparência frágil, este filho da Revolução Russa, ao receber a Continente no seu apartamento no Bairro de Higienópolis, corrigiu à mão, num exemplar, pequenos erros de edição do seu Tradução, ato desmedido. “Acontece nas melhores editoras”, disse ele. Um gesto incansável da busca pela perfeição.
JOSIAS TEÓFILO, jornalista, mestrando em Filosofia pela UnB.