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Zé Limeira: O repentista que ouvia a lua cheia

Definido como “surrealista bárbaro” e outros conceitos capazes de entortar cabeças, o Poeta do Absurdo continua vivo 60 anos após sua morte

TEXTO Gilson Oliveira

01 de Janeiro de 2014

Imagem Karina Freitas

Se “ouvir estrelas” é próprio dos amantes, dos poetas e dos loucos, como querem o parnasiano Olavo Bilac e o cantor Belchior, na música Divina comédia humana (“Ora direis, ouvir estrelas, certo perdeste o senso”), qual seria o astro que falava aos ouvidos do repentista paraibano Zé Limeira? Provavelmente, a lua, ou melhor, a lua cheia, que, de acordo com multimilenar crendice popular, afeta profundamente o juízo das pessoas, concepção aproveitada até por William Shakespeare, que escreveu na peça Otelo: “Ela (a lua cheia) aproxima-se mais da Terra agora do que de hábito e deixa os homens loucos”.

Essa é uma das conclusões a que se pode chegar quando os versos limeirianos são lidos, como esses em que narra um episódio que seria inusitado para a maioria dos seres humanos, mas é encarado por ele com a maior das naturalidades: “Um dia eu tava acordado,/ no mais rancoroso sono,/ passou uma cobra azul/ falando num microfono,/ e um mudo gritando em baixo:/ – ‘Vim buscar o meu abono!’”.

Ou esses outros, exaltando a beleza de uma mulher: “Ela parece um limão/ Rodeado de cebola,/ Uma goiabeira verde/ Enfeitada de ceroula,/ com dentadura de pau/ eu elogiá-la vô-la”. Ou, ainda, a estrofe a seguir, na qual ele, no bojo de uma tradição típica da peleja entre cantadores, derrama-se em autos e altos louvores: “Eu sou açude corrente/ dentro da mata bravia,/ gramática azul, beiçuda,/ queijo de leite de jia,/ rincho de burra cardan/ e haja festa na Bahia!”.

Os autoelogios eram, na verdade, típicos de sua esdrúxula forma de ser: “Cantador pra cantar com Limeirinha/ é preciso ser muito envernizado,/ ter um taco de chifre de veado/ e saber decorado a ladainha,/ ter guardado uma perna de andorinha,/ condenar para sempre o Carnaval/ guardar terra de fundo de quintal/ e é preciso engrossar o pau da venta,/ beber leite de peito de jumenta,/ ediceta, pei-bufo e coisa e tal!”.

Nascido em um dos grandes centros da poesia popular nordestina, a sertaneja cidade de Teixeira, na fronteira entre a Paraíba e Pernambuco, Zé Limeira veio ao mundo (ou melhor, ao seu particular universo) em 1886, em dia e mês desconhecidos. Como para aumentar a sua misteriosa aura, não se sabe também dia e mês de seu falecimento, ocorrido no ano de 1954.

O que, talvez, para muitos, signifique que este seja o Ano Zé Limeira, cuja morte completa 60 anos em um dos 365 dias de 2014. Para avaliar esse seu prestígio e popularidade, é bastante ver a forte presença do poeta, por exemplo, na internet, em que é expressivo o número de sites e blogs que a ele se referem, o que pode ser facilmente conferido através de uma consulta ao Google: lá, existem em torno de 550 mil ocorrências sobre o repentista.


O poeta Orlando Tejo teria conhecido Zé Limeira nos anos 1940 e, a partir disso, reunido seus poemas em livro. Foto: Divulgação

A música popular brasileira é outro espaço em que, de várias maneiras, a figura do poeta está altamente inserida. Caso de Pilogamia do baião, disco do Quinteto Violado lançado em 1979, cujo título utiliza uma palavra inventada por Zé Limeira, autor também de outros intraduzíveis vocábulos, como grodofobiaprodologicalidadegordosopria e fulupafilutupeia.

Em anos mais recentes, o cantador serviu de inspiração para outros trabalhos musicais, como o show e CD Oropa, França e Bahia, de Alceu Valença (título que reproduz um pouco da geografia limeiriana); a canção Se Zé Limeira sambasse maracatu, do grupo Mestre Ambrósio; e a composição Zé Limeira.com, da banda de forró As Bastianas.

Um artista associado ao autor de alguns dos maiores disparates épicos e líricos do mundo é Zé Ramalho, que não apenas compôs e gravou a música Visões de Zé Limeira sobre o final do século XX, como se tornou, junto com ele, personagem de um folheto de cordel: Peleja de Zé Limeira com Zé Ramalho da Paraíba, de Arievaldo Viana. Disponível no site oficial do cantor, o cordel tem texto de apresentação do próprio Zé Ramalho, que nele diz: “Fico lisonjeado pelo modo como apareço nesse libreto numa peleja ‘virtual’ com o lendário Zé Limeira, personagem que tanto me inspirou (...)”.

Outros setores que acolheram com entusiasmo o improvisador de versos sem pé nem cabeça foram o cinema, com o documentário de longa-metragem Na estrada com Zé Limeira, de Douglas Machado, e o teatro, através da peça O mundo louco do poeta Zé Limeira, de José Bezerra, que, encenada no Rio de Janeiro e em São Paulo, obteve grande cobertura da mídia do Sudeste, fazendo o cantador ser descoberto por um público jovem que não tinha a mínima ligação com o repente.

ABSURDO REAL
Verdadeira celebridade nos meios rurais do Nordeste, o repentista chegou aos círculos artísticos e culturais de grande parte do Brasil depois da publicação, em 1973, do livro Zé Limeira, poeta do absurdo, do jornalista e também poeta paraibano Orlando Tejo. Ao ganhar o país, a poesia limeiriana ganhou também uma série de análises, sendo o seu autor classificado por alguns críticos como “abstracionista rústico”, “ultrassincretista”, “nítido-abstracional-impressionista”, “surrealista bárbaro”, “futurista-nitidista” e outros conceitos capazes de destrambelhar até a cabeça do próprio poeta, que, hoje, segundo algumas fontes, teria os seus repentes estudados até na França.


Imagem: Reprodução

Lendo-se o livro de Tejo, percebe-se que conjuntos de palavras pouco convencionais também poderiam ser usados para definir a figura de Zé Limeira, cuja aparência e comportamento pareciam uma extensão de sua poesia e que, se hoje não passariam despercebidos em nenhum lugar do mundo, imagine-se nos grotões sertanejos do início do século passado... Assim o descreve Orlando Tejo:

“Caboclo de quase dois metros de altura, trajava mescla rústica de um azul vivíssimo a contrastar com o vermelho aceso da flanela que lhe envolvia o pescoço, onde se via um tosco anelão de pedra azul pendurado. Exageradas lentes pretas guarneciam os olhos (...). Quinze anéis grotescos reluziam nos dedos possantes e ágeis, enquanto dezenas de fitas multicores esvoaçavam nas clavículas da viola festiva. (...). Nunca utilizou o automóvel ou outro meio de transporte motorizado. (...) A pé venceu o mapa da Paraíba e deslocou-se ao Ceará, ao Rio Grande do Norte, a Pernambuco e a Alagoas”.

TOLFUS DOS ALDÍACOS
Considerado um precursor dos hippies, Zé Limeira – segundo alguns registros sobre esse que se tornou o mais mitológico dos poetas brasileiros – chegava a andar 60 quilômetros por dia, para participar de desafios em quase todo o Nordeste. Onde aparecia, era recebido como verdadeiro pop star pelo povão, que virava a noite, nas festas e feiras, ouvindo e rindo com seus versos malucos, os quais eram divulgados e preservados à base do boca a boca. Alguns, repletos de pornografia.

A paixão que o homem simples do interior tinha pelo Poeta do Absurdo deixava em maus lençóis todos os cantadores que ousavam desafiá-lo, porque, por mais talentoso que fosse o adversário de Zé Limeira, na avaliação popular, este era sempre o vencedor, chegando, muitas vezes, a deixar o outro repentista totalmente confuso com versos como: “Peço licença ao prugilo/ dos quelés da juvenia,/ dos tolfus dos aldíacos,/ da baixa da silencia,/ do genuíno da Bríbia,/ do grau da grodofobia!”.

Uma das grandes vítimas de Limeira foi o também famoso Anastácio Mendes Dantas, que o enfrentou numa peleja no Sertão do Cariri. Uma pessoa da plateia sugeriu o mote “Vou fazer serenata na calçada/ da menina que amei na minha vida” e Anastácio não teve dúvida: “Venho amando do tempo da infância/ uma linda menina que ainda prezo,/ inda quase maluco eu não desprezo/ sua imagem e sua rutilância./ Desprezá-la seria ignorância,/ minha deusa bonita e preferida/ que por Deus para mim foi escolhida/ minha estrela brilhante e consagrada.../ Vou fazer serenata na calçada/ da menina que amei na minha vida”.

O público reconheceu a criatividade e capacidade de improvisação do poeta, mas os mais duradouros e ardentes aplausos tinham sido reservados para Zé Limeira, que assim desenvolveu o mesmo tema: “Quando a guerra zuou dentro da França eu ouvi os estrondos do Sertão./ Gosto muito de fava e de feijão,/ a muié que eu quiri tinha uma trança./ Japonês e alemão entrou na dança,/ a estrada do Brejo é tão comprida,/ é pecado matar vaca parida,/ a Alemanha da China tá tomada.../ Vou fazer serenata na calçada/ da menina que amei na minha vida”. 

GILSON OLIVEIRA, jornalista.

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