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“A opção da maioria ainda é a carreira internacional”

Pernambucana Aurora Dickie lembra sua trajetória profissional até chegar ao The Washington Ballet, avalia o mercado da dança clássica no Brasil e fala da experiência em palcos estrangeiros

TEXTO Christianne Galdino

01 de Janeiro de 2014

Aurora Dickie

Aurora Dickie

Foto André Ferreira/Divulgação

No imaginário popular, a figura da bailarina continua sendo ícone de beleza, delicadeza e romantismo. Desejo de gerações inteiras de meninas, o balé clássico chega ao século 21 conservando uma aura deglamour, inevitavelmente associada ao nem sempre confortável rótulo de arte elitista. Porém, a realidade de quem vive profissionalmente o sonho de ser bailarina vai muito além desse luxuoso estereótipo. A busca da excelência técnica já seria motivo suficiente para explicar a rotina de tanto esforço dos que decidem levar a vida sobre as sapatilhas. “E, no caso da dança, é preciso começar bem cedo, pois estamos lidando com habilidades corporais ligadas ao desenvolvimento físico do ser humano”, comenta a experiente professora de dança clássica Jane Dickie, mãe de Aurora, destaque no elenco principal do The Washington Ballet – TWB. “Nunca interferi na sua decisão em ser ou não uma bailarina profissional, apenas fazia questão de orientá-la, dizendo sempre: se você vai fazer algo para construir o futuro, que seja bem-feito desde o início”, recorda ela, que também deu aulas à filha no Studio de Danças do Recife, onde hoje atua como professora, coordenadora pedagógica e diretora artística.

Do Recife, Aurora guarda boas lembranças de uma infância feliz nas areias da praia de Boa Viagem, nas “festas de São João, com direito a fogos de artifício e traque de massa”e, é claro, das aulas de balé; tudo regado “a bolo de rolo e tapioca”, as suas iguarias preferidas do cardápio local. Uma vez por ano, Aurora vem descansar e matar as saudades, mas ainda não teve a chance de se apresentar em solo pernambucano e parece que o Brasil não é um destino habitual das turnês do TWB (a companhia norte-americana nunca se apresentou no país).

Aurora esteve recentemente apresentando-se no Teatro Alfa, em São Paulo, dançando em evento comemorativo do Youth America Grand Prix, concurso que, em 2007, serviu-lhe de passaporte para a carreira internacional. Alvo de muitas críticas e polêmicas discussões, esse tipo de evento competitivo continua servindo de vitrine para os tantos talentos da dança clássica que o Brasil tem produzido nos últimos anos. “Dançamos muito bem neste país, me refiro à qualidade técnica do nosso bailarino que almeja ser um profissional de carreira. Temos excelentes escolas e mestres para isso”, declara Jane. “A qualidade técnica dos bailarinos brasileiros está muito alta, tanto que podemos ver o destaque que temos nos principais concursos internacionais de dança”endossa Aurora.

Mas, apesar desses indicativos positivos, tanto filha como mãe acreditam que ainda falta no país uma política cultural transparente e sólida, capaz de abrir um mercado de trabalho estável para os bailarinos e outros artistas profissionais. “É difícil viver da arte em um país marcado por histórias de corrupção, despreocupação com a estética, e carente de uma política educacional consistente. A tal da economia criativa, que é atualmente uma poderosa força global, ainda não se consolidou por aqui. Dentro da nossa realidade cultural, a criação de companhias de balé profissional infelizmente ainda é vista como despesa, e não como investimento. O que temos, há muitos anos, são escassas iniciativas privadas, que oferecem condições de profissionalização a um número bem reduzido de companhias que, na maioria das vezes, trabalha por um tempo determinado, sem uma estabilidade efetiva para os seus bailarinos”, analisa Jane Dickie, que já testemunhou a luta e a partida de muitos alunos rumo a uma carreira internacional de balé clássico, como fez sua filha Aurora.

Em entrevista à Continente, Aurora Dickie fala sobre sua carreira, a formação, a rotina na companhia americana, e analisa o panorama brasileiro para os profissionais de dança, comentando sobre a rotina de trabalho.

CONTINENTE Filha de uma bailarina e professora de balé clássico, você se decidiu por essa carreira profissional desde a infância?
AURORA DICKIE Sim. Desde a infância, o balé era meu mundo: frequentava a escola de dança da minha mãe quase todos os dias, assistia a vídeos, escutava música clássica e dançava até sozinha em casa. Ter tido minha mãe como exemplo certamente me ajudou a entrar nesse meio, mas ter continuado e decidido por essa carreira foi, sem dúvida, uma escolha muito pessoal.


Aurora e a mãe, Jane Dickie. Foto: Divulgação

CONTINENTE Como foi sua formação até chegar ao The Washington Ballet? Quais suas principais referências e mestres?
AURORA DICKIE Foi uma longa estrada. Como sabe, eu comecei com a minha mãe Jane Dickie, no Recife. Quando ainda era criança, mudamos para o Rio Grande do Sul para ficar mais perto da nossa família. Continuei as aulas de balé com minha mãe e também fiz ginástica rítmica por uns dois anos. Quando completei 11, entrei para a Escola do Teatro Bolshoi no Brasil, no ano da sua inauguração (2000). Estudei lá por cinco anos consecutivos e considero a minha principal formação. Tive como mestra a professora Galina Kravtchenko, e também fui selecionada para um estágio no Teatro Bolshoi de Moscou, quando pude fazer aulas com a companhia e conhecer mais de perto o dia a dia de bailarinos profissionais. Fiquei fascinada ao conhecer pessoalmente a bailarina Nina Ananiashvili, que eu acompanhava e admirava por vídeos. Sempre tive como ídolo a bailarina Sylvie Guillem que, para mim, é referência e inspiração constante. Depois de concluir a formação na Escola do Teatro Bolshoi, cheguei a dançar em algumas outras escolas no Rio de Janeiro e em São Paulo, e comecei a participar de alguns concursos de dança no Brasil e no exterior. Foi num desses concursos, o Youth America Grand Prix em Nova York, em 2007, que ganhei a medalha de bronze e fui convidada, pelo diretor Septime Webre, a integrar a companhia pré-profissional do The Washington Ballet, chamada de Studio Company. No ano seguinte, fui promovida para o elenco principal do The Washington Ballet e comecei a minha carreira profissional propriamente dita. Na época, eu estava com 19 anos.

CONTINENTE Durante muito tempo, a carreira internacional era a única possibilidade para os brasileiros que queriam ser bailarinos clássicos. Você acredita que essa realidade mudou? Por quê?
AURORA DICKIE Eu acredito que para os brasileiros que querem seguir carreira como bailarinos clássicos essa realidade, infelizmente, ainda não mudou totalmente. Apesar de o balé ter crescido muito no Brasil nesses últimos anos, o número de companhias clássicas profissionais ainda não cresceu o suficiente para suprir a demanda de bailarinos que o país tem e para mudar esse cenário. O que existe são escolas que criam grupos com os alunos mais avançados e fazem uma ou duas produções clássicas por ano, mas, infelizmente, esses grupos não podem oferecer condições adequadas para o bailarino se sustentar financeiramente. As companhias clássicas profissionais que pagam salário mensal são raríssimas, limitando o número de bailarinos que conseguem permanecer trabalhando no Brasil, por isso a opção da maioria é a carreira internacional mesmo.

CONTINENTE Você acompanha a realidade da dança no Recife e no Brasil? O que destacaria de positivo nesse cenário?
AURORA DICKIE Acompanho o que posso, geralmente pelas mídias sociais e internet. No geral, a dança está ganhando mais espaço no Brasil, não só entre os amantes dessa arte, mas entre a população em geral. Hoje, acho que existem não só mais bailarinos, mas também um maior e mais diverso público para a dança no Brasil. E isso é muito animador!

CONTINENTE Como é sua rotina no The Washington Ballet?
AURORA DICKIE Começamos o dia às 9h30, com uma aula de balé, e depois temos seis horas de ensaios, com um intervalo de uma hora para o almoço. Montamos e apresentamos cerca de cinco programas diferentes por ano, além da temporada do espetáculo Quebra-nozes, que acontece todo mês de dezembro. Agora, por exemplo, acabamos de emendar a temporada do Giselle com os ensaios e apresentações do Quebra-nozes. Geralmente, temos apenas cinco semanas para preparar cada programa e apresentamos, em média, oito vezes cada obra, com exceção do Quebra-nozes, cuja temporada inclui 35 apresentações. Ou seja, o ritmo é muito intenso, estamos sempre em ensaios ou em temporada.

CONTINENTE Quem financia e como é a estrutura administrativa da companhia?
AURORA DICKIE A companhia é uma associação sem fins lucrativos, coordenada por um quadro de diretores cuja principal função é angariar fundos para o financiamento das atividades. Esses fundos são arrecadados por meio de doações de pessoas físicas e jurídicas; venda de assinaturas e ingressos para os espetáculos; ou através de festas e eventos de gala, promovidos pela diretoria com essa finalidade. A companhia já chegou a receber apoio financeiro da prefeitura de Washington há alguns anos, mas não recebe mais, então, investe nessas estratégias e assim se mantém, realizando suas turnês internacionais com os recursos levantados por meio dessas ações, sem depender de incentivo do governo ou de algum edital específico.


Foto: Divulgação

CONTINENTE Você acumula no currículo pelo menos dois grandes prêmios, a medalha de bronze no Youth America Grand Prix (2007), e no Capetown International Ballet Competition (2012). Na sua opinião, qual a importância e o papel desses eventos competitivos para a dança?
AURORA DICKIE Na minha opinião, esses eventos continuam sendo muito importantes para o cenário da dança. Eles funcionam como uma vitrine para os bailarinos serem vistos, terem a oportunidade de mostrar seu talento e habilidades aos diretores das principais companhias profissionais do mundo. É um meio de conquistar bolsa de estudo, contrato de estágio ou trabalho e, também, do bailarino poder ver o que acontece no panorama internacional da dança, fazendo intercâmbio e trocando informações com outros profissionais da área. Na vida do bailarino, principalmente do estudante, o concurso deve servir como um meio para iniciar ou impulsionar uma carreira profissional. Mas, de jeito nenhum, esses eventos competitivos devem ser o objetivo principal da carreira de um bailarino. Ganhar um prêmio ou medalha deve ser só um meio de dar visibilidade, e nunca a finalidade da sua arte.

CONTINENTE Que recomendações você daria a alguém que sonha com a carreira de bailarino clássico?
AURORA DICKIE Procure uma boa escola de balé e um professor competente com experiência comprovada, boa formação e em quem você confie. Feito isso, é só estudar e trabalhar muito! Sua dedicação, disciplina, estudo, suor e força de vontade é o que determina 99% do seu sucesso profissional. Por isso, não tem jeito, tem que trabalhar muito e sempre. O caminho é longo e demorado, mas se é esse o seu objetivo, e sua paixão, tudo vale a pena, tudo será possível. 

CHRISTIANNE GALDINO, jornalista, produtora e professora universitária.

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