A história da ascensão do pesado café da manhã inglês acompanha a história da decadência da gastronomia britânica, uma lacuna de quase dois séculos na qualidade da comida do país, que afeta a forma como a sua culinária é pensada até hoje. Na mesma época em que surgia a combinação famosa do desjejum britânico, as transformações pelas quais passava a sociedade inglesa levaram a um declínio duradouro na gastronomia nacional do país.
HIATO INDUSTRIAL
Segundo Colin Spencer, a comida da Inglaterra tinha uma boa fama internacional até o século 19, mas a ideia de que se come mal no Reino Unido tem seu fundo de verdade histórica. “O que as pessoas comem é determinado pela classe social delas. Em países industrializados, a classe trabalhadora e os pobres comem mal porque estão separados dos recursos e da terra em que os alimentos são produzidos”, disse. Desde o século 11, a comida consumida pela elite britânica impressionava o resto do mundo pela influência de temperos internacionais. “Até o século 18, a comida inglesa era muito boa, mas a Revolução Industrial afetou a dieta e transformou o país inteiramente.”
O pesquisador diz ser possível destacar vários motivos que levaram a comida inglesa a conquistar o rótulo de “pior do mundo”, que predominou até poucos anos atrás. Quase todas as razões têm relação com as transformações culturais e sociais por que o país passou no século 19, a começar por reformas no sistema de propriedade de terras e urbanização por conta da Revolução Industrial, que cortaram a raiz da alimentação britânica, que era a culinária camponesa. A urbanização do país levou a práticas mais simplificadas de preparo alimentar.
Tudo começou, segundo ele, porque a Era Vitoriana, no século 19, foi um momento em que a Inglaterra vivia um período de fortes transformações sociais, com grande fluência entre as classes e espaço para a ascensão social. Enquanto isso acontecia, a elite passou a obedecer a uma série de regras de etiqueta e comportamento que deixava todas as pessoas do grupo parecidas. “Havia verdadeiro medo da diferença”, ele conta, e isso gerou um movimento rumo a uma alimentação com base em comidas simples e sem gosto. “A aparência da comida era mais importante do que o sabor”, diz.
A classe média surgida na Era Vitoriana, explicou, tinha pavor de demonstrar prazer em qualquer situação, o que acabou afetando também a alimentação. “A comida deveria ser consumida com demonstração de decoro; se tivesse fome, a pessoa nunca deveria demonstrar isso; carnes tinham que ser fatiadas finamente; as pessoas precisavam comer lentamente. Uma boca cheia de comida era algo nojento.” Junto a isso, um forte zelo religioso fazia a má gastronomia ser aceita, valorizando a baixa sensibilidade ao prazer.
Segundo Spencer, a sociedade vitoriana sobrevalorizava a gastronomia francesa, em detrimento da culinária tradicional inglesa, e “nenhum cozinheiro era incentivado a desenvolver receitas britânicas”. Além disso, uma nova arquitetura da urbanização da época separou a cozinha da sala de jantar, transformando a culinária em um trabalho “mercenário”, realizado por trabalhadores sem educação e sem preparo na cozinha, desenvolvendo pratos sem sabor.
Dois últimos motivos completam o cenário de desolação para a gastronomia: o desenvolvimento da tecnologia de enlatados, de embalagem e de congelamento ajudou a padronizar os sabores e as texturas. E, por último, o Reino Unido se envolveu numa série de guerras no século19, o que causou o bloqueio do suprimento de alimentos de fora da ilha para o consumo dos ingleses, alterando definitivamente o perfil alimentar. “Ao final do século 19, todos esses fatores se combinaram para atingir a qualidade da culinária britânica, sem que o povo tivesse noção do que estava acontecendo”, diz Spencer.
Café da manhã britânico foi adotado por hotéis nos anos 1960. Foto: Divulgação
FEIJÃO AO ACORDAR
Foi nessa mesma época que surgiu o hábito de incluir feijão, linguiças e ovos no café da manhã. O desjejum britânico surgiu como um ritual das classes mais altas da sociedade de fazer uma longa refeição ao acordar, com uma grande variedade de pratos usando ingredientes do Império Britânico, além de chá e café. Era um costume considerado como a forma mais civilizada de se começar o dia. O café da manhã completo foi então incorporado pelas classes médias que surgiam na Inglaterra, e foram elas que popularizaram o que viria a se tornar a tradição na refeição matinal do país.
Em um livro que servia à educação das administradoras do lar inglês no século 19, a escritora Isabella Beeton promovia a ideia de que um café da manhã cheio era a melhor forma de se preparar para um longo dia de trabalho. À época, as refeições matinais já incluíam bacon, presunto, tomates fritos, cogumelos fritos, ovos, pão, linguiças, black pudding (linguiça preparada com sangue de porco), manteiga, geleias e frutas. Para os mais ricos, havia ainda mais pratos compondo a mesa matinal, com mais tipos de carnes, frutas e pães.
Foi no século 20, entretanto, depois da Primeira Guerra Mundial, que a tradição das casas inglesas passou a ser incorporada por bares, restaurantes e hotéis do país, ajudando a divulgá-la internacionalmente. Turistas que viajavam a Londres encontravam a estranha combinação matinal e passavam a considerar parte do contato com a cultura britânica.
Segundo o pesquisador Simon Majumdar, a fama e a tradição do café da manhã inglês se devem justamente à enorme presença de turistas internacionais em Londres desde a década de 1960, quando o breakfast passou a ser adotado por hotéis e turistas passaram a incluir o prato na lista de coisas a fazer. Tradição que dura até hoje.
A imagem do famoso desjejum está espalhada por Londres. É comum ver fotos do enorme prato cheio de comidas estranhas ao paladar matinal brasileiro, em que o feijão tem gosto adocicado, em cada quarteirão com um pub da cidade. O prato é oferecido por preços que variam entre cinco e 10 libras (R$ 20 e R$40), e continua sendo uma das melhores formas de conhecer a história da gastronomia inglesa, mesmo que seja o representante de seu pior momento. Para o visitante, encarar o café da manhã que corporifica a alimentação do país pode ser uma forma de entender melhor a cultura local.
“Claro que muitas pessoas ainda relacionam a comida inglesa à gororoba de microondas servida em pubs”, explicou Laura Siciliano-Rosen, autora do London food and travel guide. Mas mesmo alguns pratos tradicionais, como o café da manhã, estão sendo revalorizados. “Clássicos estão recebendo tratamento de qualidade atualmente. Ingredientes são selecionados especialmente, tudo é feito à mão”, disse.
DANIEL BUARQUE, jornalista e autor do livro Brazil, um país do presente.