Gilvan Samico (1928-2013)
TEXTO José Cláudio
01 de Janeiro de 2014
José Cláudio, Guita Charifker e Gilvan Samico, casa de José Cláudio, 2012.
Foto Vera Magalhães/Reprodução
Não estava nos meus planos faturar a morte de Gilvan Samico. Até disse isso há algum tempo, que por favor não morressem, Samico, Guita, Corbiniano, para não me obrigarem a derramar minha sub-literaturazinha aproveitando o ensejo. Para chamar atenção para mim próprio afinal de contas. Eu também falava em intromissão, invasão de privacidade, em invadir a área sagrada da dor alheia, de quem sofreu diretamente e de fato e muito essa perda e não da boca para fora. De quem não saberá como, sem ele, será o dia de amanhã. De quem, com ele, foi arrastado ao fundo da cova ou queimado no crematório, tendo virado cinzas junto com ele. Não é o meu caso.
Estou ficando meio insensível depois de velho. Até me admira a frieza diante da morte dos que me são próximos. Me espantei por não ter sofrido o tanto quanto deveria com a morte de meu pai, não ter sentido o vazio que esperava: eu ia dizer isso a Milton Hatoum, que escreveu sobre a morte de meu pai (e que saiu recentemente em 2013 no livro Um solitário à espreita, Companhia de Bolso, crônica inicialmente publicada no O Estado de S. Paulo, Caderno 2, 07/01/2011, com o título Uma pintura inacabada). Também quando minha mãe morreu fui lá, ela ainda em casa, vi-a morta, que de fato eu queria vê-la morta, porque isso amanhã talvez me fosse fazer falta ou não sei por que, mas nem cheguei a ir ao cemitério. De lá para cá, me prometi não ir a cemitério mais nunca nem a hospital, só quando chegar a minha vez. Espero de todo coração morrer antes de meus filhos e netas. Minha mãe dizia somente querer viver até a morte de um filho e o mesmo digo eu.
Sem, no entanto, como disse, querer “faturar” a morte de Samico, como não faturei a de Paulo Vanzolini, e ele iria detestar, por um lado sinto uma expectativa ao redor sobre o que penso, o que sinto, o que tenho a dizer sobre a morte de Samico, como pintor saído da mesma fornada, vivendo aqui no Recife, ou melhor, Olinda, nós dois, etc. etc.; e também, ao mesmo tempo, sem que eu queira, o meu ego, ou superego, o que diabo seja começa a soprar no meu ouvido as ideias e lembranças.
Por exemplo, quando meu pai morreu eu fui dormir naquele dia sem ter caído a ficha (como ainda se diz mesmo não existindo mais telefones de ficha); somente no outro dia, quando acordei, antes do amanhecer, mas já o dia se anunciando, aqui nesta casa onde moro, isso em 1979, olhando maquinalmente o horizonte arroxeado, me ocorreu: “Hoje é o primeiro dia que não tenho pai”. Meu pai morrera no começo da tarde do dia anterior e de noite fomos enterrá-lo no cemitério de Ipojuca porque a última frase que ouvi dele foi: “Quero voltar para Ipojuca. Para dormir”. Já no caso de Samico, que morreu hoje de manhã às 10h, já agora, de noite mas ainda no começo da noite, isto é, no mesmo dia, me veio que é a primeira noite que vou dormir sem Samico, sem Samico em vida quero dizer. Ou seja, uma antecipação em relação à morte do meu pai!
Eu tinha acabado de dar uma entrevista em Ponte d’Uchoa num leilão organizado pelo pintor Armando Garrido onde eu haveria de expor dois antigos quadros cuja origem me era desconhecida e fui lá para ver, aliás excelentes dentro do meu padrão, e de casa ligaram para o celular do taxista com quem ando sempre, quer dizer, uma coisa assim por tabela, como se distante. Ele próprio Samico, a última vez que liguei, semanas antes, me disse que andava tão abatido, ou cansado, que até agradecia a quem não lhe fizesse visita. Eu próprio telefonei pensando em coisa desse tipo, e disse a ele, que achava uma sacanagem o indivíduo com saúde exibir-se diante da criatura ali prostrada, ali sofrendo, como ele já vinha sofrendo havia tempo, de doença grave e que castiga, que dói, que cerceia. Pior do que torturado numa prisão por não ter a quem imputar tal sofrimento, acrescento agora. Seria preciso o estoicismo de um Marco Aurélio; e mesmo assim, como bom romano, adepto do suicídio; suicídio tranquilo, sem nada de desespero, consciente, estoico enfim. A religião cristã nos tirou essa possibilidade, talvez resto de barbárie do paganismo, embora num homem superior como Marco Aurélio, de quem leio sempre Meditações (tenho três traduções em português, duas do Brasil e uma de Portugal, Pensamentos; outras em espanhol, Soliloquios, italiano, Ricordi, e francês, Pensées, trazendo esta de quebra uma maravilha, o Manual de Epiteto, mestre de Marco Aurélio).
Estarei me transformando num estoico, deixando-me penetrar pelas ideias de Sêneca, inconscientemente me preparando para enfrentar o sofrimento mesmo que não tenha grandeza para isso? Às vezes penso que essa minha aparente invulnerabilidade não passará de superficialidade, devido ao fato de não ter, por acaso, sido atingido por maiores sofrimentos nem físicos nem morais, nunca ter sido submetido a grandes tensões, embora da maior delas, a da consciência da morte, ninguém escape; e este discurso todo já bem o demonstre. Talvez uma arte, praticada em tempo integral, como Samico lá no seu sobrado cortando madeira com seus ferros de gravura e eu cá à sombra das sucupiras do quintal das freiras do Monte pelejando com meus pincéis, sejam nossas matinas, laudes, vésperas, sextas e noas; mesmo que não nos comunicássemos, um sabia perfeitamente o que o outro estava fazendo, ainda que nem eu nem ele nunca pensássemos nisso.
Apesar da rigidez, do racionalismo na execução das gravuras de Samico, da ausência de improviso, da limpeza de seu corte, a perfeita simetria a afirmar cada vez mais essa racionalidade, a absoluta premeditação, o declarado horror ao expressionismo, a arte dele e a minha têm, ambas, a inspiração popular proveniente das lições de Abelardo da Hora. Sua obra, logo sua presença, continuará dialogando comigo tanto quanto quando ele vivo.
JOSÉ CLAÚDIO, artista plástico.