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Duas décadas de artes cênicas

Janeiro de Grandes Espetáculos completa 20 anos incentivando a circulação de montagens pernambucanas por outros locais do Brasil

TEXTO Pollyanna Diniz

01 de Janeiro de 2014

'O amor de Clotilde por um certo Leandro Dantas' ganhou visibilidade nacional após participação no evento

'O amor de Clotilde por um certo Leandro Dantas' ganhou visibilidade nacional após participação no evento

Foto Divulgação

O carro de som que circulava pela cidade diariamente, durante duas horas, anunciava: “Agora você pode frequentar os teatros de Santa Isabel, do Parque e Apolo pela bagatela de R$ 2 e assistir a grandes espetáculos de teatro e dança no projeto Janeiro de Grandes Espetáculos. Não perca a oportunidade de se divertir com o que há de melhor na produção de teatro e dança por apenas R$ 2. Eu disse R$ 2 para assistir a grandes espetáculos. Vá conferir”. Estávamos no fim de 1994, o Teatro do Parque funcionava (agora, aguarda, há quatro anos, por uma reforma), e a propaganda repetitiva e de apelo popular tinha razão de ser. Era uma época em que o público brigava por ingressos para peças do tipo “besteirol”, em filas quilométricas no Teatro Valdemar de Oliveira, enquanto o restante da produção cênica da cidade amargava pouca visibilidade e casas vazias.

“Não foi uma reação ao ‘besteirol’, mas havia uma efervescência na criação de obras não comerciais, mal recepcionadas na cidade. Além disso, este era um mês de muitos turistas no Recife, mas os teatros estavam fechados, entrávamos em recesso. Então, o festival foi criado a partir dessas duas arestas: aproveitar esse período de grande fluxo de pessoas e mostrar uma produção com perfil diferenciado”, explica o idealizador do projeto, Romildo Moreira, que ocupava o cargo de coordenador de Artes Cênicas da Fundação de Cultura do Recife.

A ideia logo ganhou o apoio da classe artística. Em menos de dois meses, o festival era realizado com 17 espetáculos, 40 sessões e mais de oito mil espectadores. “Peças que tinham ficado três meses em cartaz foram apresentadas durante um fim de semana e tiveram mais público do que na temporada inteira”, relembra Moreira. “É como se a classe artística tivesse acordado para a necessidade do Janeiro e celebrado a própria arte. Os artistas não recebiam cachê, ganhavam percentual de bilheteria, o que mostrava, na prática, o nosso apoio. Essa parceria foi a base de construção do festival e continua sendo até hoje”, comenta Paula de Renor que, ao lado de Paulo de Castro e Carla Valença, assina a produção atual do Janeiro de Grandes Espetáculos.

AUTONOMIA
Em duas décadas, que estão sendo comemoradas agora em 2014, foram muitas mudanças na mostra. A primeira delas veio após três anos: quando a prefeitura local apostou na criação do Festival Recife do Teatro Nacional e a própria classe artística, através da Associação dos Produtores de Artes Cênicas de Pernambuco (Apacepe), decidiu que levaria adiante a realização do evento, já que eles tinham perfis diferentes e esse último se mostrava sobretudo importante para os espetáculos do estado.


O festival tem programação infantil, como O pequenino grão de areia. 
Foto: Bárbara Wagner/Divulgação

“Enquanto os eventos culturais promovidos com incentivos públicos ou privados tendem a prestigiar mais as atrações de fora, o Janeiro de Grandes Espetáculos sublinha e põe em evidência os profissionais locais e suas obras. É hora de olhar para si e entrar em contato com o discurso produzido pelas artes cênicas de Pernambuco em determinado ano. Sempre um momento para apreciar, avaliar, discutir e fazer reverberar o resultado dessas reflexões”, comenta o ator e diretor Jorge de Paula.

A montagem O amor de Clotilde por um certo Leandro Dantas, da Trupe Ensaia Aqui e Acolá, dirigida por Jorge de Paula, foi vista por curadores de todo o país em 2011, quando recebeu os prêmios de melhor montagem pelo júri oficial do Janeiro e pela votação popular. Embora faça restrições com relação ao seu caráter competitivo (que premia dança, teatro adulto e teatro infantil em várias categorias), o diretor afirma que a visibilidade garantida pelo evento, ao trazer para cá organizadores e curadores do país inteiro, foi fundamental para que a carreira da montagem deslanchasse. “Depois disso, participamos de mostras de teatro pelo Brasil. Foi o pontapé para uma trajetória no país afora”, avalia.

Nesta 20ª edição do Janeiro de Grandes Espetáculos, estão sendo esperados pelo menos 10 curadores, inclusive internacionais. “Conseguimos estruturar uma ação concreta de circulação dos nossos espetáculos. Ano passado, seis grupos pernambucanos participaram de festivais a partir de conexões que foram travadas durante o Janeiro”, comenta Paula de Renor. “Nosso objetivo não é trazer para a programação obras de grandes companhias, de nomes já consagrados. Se temos essa possibilidade, ótimo. Mas não é o nosso foco. Estamos mais interessados nas trocas entre os grupos, nos intercâmbios entre as realidades de diversas cidades e no que isso politicamente agrega para as artes cênicas em Pernambuco”, reflete.

“Na medida em que sentimos que determinado evento ou cidade investe na visibilidade e na exportação de sua produção cênica, isso é valorizado por todos os outros festivais do país. Cria-se certo comprometimento e crescem as possibilidades de circulação da produção local. Nenhum programador vai ao Recife, ou a qualquer cidade, com a obrigação de selecionar ali o que quer que seja. Mas é claro que essa ação gera oportunidades para os grupos e os artistas”, comenta Guilherme Reis, do Cena Contemporânea, de Brasília.

INTERNACIONAL
Desde 2011, o Janeiro de Grandes Espetáculos participa do Núcleo de Festivais Internacionais de Artes Cênicas do Brasil, que conta com oito mostras do país inteiro. “Aos poucos, fomos trazendo grupos internacionais para participar da programação. No início, dois ou três. Depois, resolvemos assumir que o festival também tem esse caráter internacional”, explica Paula de Renor.


Montagem de Na solidão dos campos de algodão está na programação deste ano.
Foto: Jorge Clésio/Divulgação

Este ano serão seis apresentações internacionais, tanto de dança quanto de teatro e ainda um show feito em parceria entre músicos brasileiros e portugueses. “Acredito que a entrada do Janeiro no Núcleo trouxe um ganho para esse coletivo por conta da capacidade do festival de mobilização e de dar visibilidade a grupos e artistas de Pernambuco e do Nordeste como um todo. O Janeiro ainda contribui bastante para a articulação em rede e para as ações políticas desenvolvidas pelo Núcleo”, complementa Guilherme Reis.

Uma das principais dificuldades que todos os integrantes do Núcleo enfrentam é com relação à manutenção financeira. “Temos eventos realizados por prefeituras, como as de Porto Alegre, Belo Horizonte e São José do Rio Preto, e outros feitos pela iniciativa privada. Mas todos vivem o mesmo problema de ter que recomeçar praticamente do zero a cada ano”, afirma Reis. Se, no ano em que foi criado, o Janeiro foi realizado com um orçamento que girava em torno de R$ 5 mil, hoje, uma planilha razoável para que as ações idealizadas pudessem realmente ser colocadas em prática seria de R$ 1,4 milhões. “Este ano conseguimos R$ 950 mil e só temos as respostas das verbas que serão liberadas com pouquíssima antecedência, o que dificulta a produção, conseguirmos garantir grupos, passagens em alta estação, hospedagem”, diz Paula de Renor. Ano passado, o Janeiro teve um público de quase 30 mil pessoas.

A programação desta 20ª edição será aberta no dia 8, no Teatro de Santa Isabel, com o espetáculo Dzi Croquettes em Bandália – 40 anos de história, um musical que retoma a linguagem cênica irreverente e libertária que marcou a trajetória desse coletivo, nos anos 1970. Entre as presenças nacionais, há ainda alguns destaques, como a Cia. Teatro di Stravaganza, de Porto Alegre, com as peças Estremeço e Príncipes e princesas, sapos e lagartos; a companhia Alfândega 88, com A negra felicidade e O controlador de tráfego aéreo, ambas direções de Moacir Chaves; e, ainda, a montagem À primeira vista, com direção de Enrique Diaz, e que traz no elenco as atrizes Drica Moraes e Mariana Lima.

Entre as montagens locais, o público poderá conferir, por exemplo, Terra, espetáculo do Grial, pelo qual a coreógrafa e bailarina Maria Paula Costa Rêgo acabou de vencer o prêmio de melhor criadora-intérprete pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), as quatro montagens da trajetória do Angu de Teatro (Angu de sangue, Rasif – Mar que arrebenta, Ópera e Essa febre que não passa), comemorando os 10 anos do coletivo, peças como Na solidão dos campos de algodão (texto do francês Bernard-Marié Koltés, com Edjalma Freitas e Tay Lopez no elenco, e direção de Antonio Guedes) e estreias como Anjo negro, direção de Samuel Santos para o texto de Nelson Rodrigues.


Dzi Croquettes em Bandália – 40 anos de história vai abrir o evento. Foto: Divulgação

DEPOIMENTOS

“O festival apresenta uma característica interessante: por não ser temático, os espetáculos que se apresentam mostram uma cartografia bastante verossímil da produção cênica local. Acho isso muito positivo, porque nos permite um olhar analítico do nosso fazer teatral. Creio que essa seja a sua maior contribuição, colocar-nos diante de nossa própria realidade, para que possamos repensá-la não apenas sob a ótica da organização e da produção, mas também a partir do ponto de vista estético e de troca.”
André Filho, diretor

“O Janeiro de Grandes Espetáculos tem crescido a cada ano e se tornado um evento de referência e importância para as cenas local e nacional. No início, era mais voltado para o Recife, mas hoje apresenta um panorama bastante interessante da cena local e da cena nacional e tem ampliado ano a ano a participação dos grupos internacionais. Essa fruição e acesso dos artistas, dos formadores de opinião e da população de uma maneira geral a bons trabalhos é uma missão importante para festivais do seu porte e do Festival Recife do Teatro Nacional.”
André Brasileiro, produtor, ator e diretor


“O Janeiro me proporcionou  maturidade. Isso é: ensinou-me a ter certo distanciamento diante da minha obra coreográfica. A premiação é a busca por reconhecimento, mas se isso não acontecer, a luta continua, a obra segue se apresentando noutras praças.”
Maria Paula Costa Rêgo, coreógrafa e bailarina

“Desde o fim da década de 1990, acompanho o Janeiro de Grandes Espetáculos. Participei com o Teatro de Amadores de Pernambuco, depois em 2000, com a peça Inês, sob direção de Jorge Clésio, com a Cia. Versos de Teatro. Tenho a recordação do dia em que ganhei prêmio com Inês, e como isso foi de grande importância para mim como atriz, alavancando minhas perspectivas e meus desejos de continuar no teatro, tendo visto um longo trabalho sendo reconhecido simbolicamente. Também foi nele que estreei uma direção para crianças, em 2006, com Pequenino grão de areia, texto de João Falcão. Também aí foi um momento superespecial em minha trajetória, ratificando minhas experiências e dando possibilidade de colocar na prática o que já vinha trabalhando no meu mestrado em Teatro, que havia terminado em São Paulo.”
Luciana Lyra, atriz e diretora 

POLLYANNA DINIZ, jornalista, crítica de teatro e colaboradora do blog Satisfeita, Yolanda?.

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