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Carimbó com o tempero de Lia

Sucesso da cantora, que foi uma das atrações do Carnaval do Recife de 2013, confirma a cidade como local de acolhida e até projeção de artistas paraenses

TEXTO Cleodon Coelho

01 de Janeiro de 2014

Mesmo orgulhando-se de ser apresentada como paraense, Lia nasceu na Guiana Francesa e foi criada no Amapá. Pará, só na adolescência

Mesmo orgulhando-se de ser apresentada como paraense, Lia nasceu na Guiana Francesa e foi criada no Amapá. Pará, só na adolescência

Foto Divulgação

Ao longo dos anos, a cena musical pernambucana foi celebrada por sua inventividade. Ainda na primeira metade do século passado, o mestre Luiz Gonzaga deu ao baião e ao xote status de música pop, levando os ritmos até então regionais para rádios de Norte a Sul do país. Nos anos 1990, foi a vez da turma liderada pelas bandas Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre S/A chacoalhar o modorrento cenário em que a MPB se encontrava. De lá para cá, nomes como Mombojó, Eddie, Tibério Azul e Karina Buhr – que nasceu na Bahia, mas cuja formação é genuinamente pernambucana – ajudam a manter a aura novidadeira que sempre acompanhou a música local.

Curiosamente, o Recife vem revelando outra faceta, quando o assunto é sonoro. A cidade virou uma espécie de talismã para a nova cena paraense. O sucesso atual de Lia Sophia, que mostrou o carimbó eletrônico Ai, menina pela primeira vez na praia de Brasília Formosa, no Carnaval de 2012, sem nem sonhar que a canção viraria um hit nacional, só comprova esse bem-sucedido intercâmbio Pará-Pernambuco.

Lia estava no Recife para acompanhar duas colegas de canto: Gaby Amarantos e dona Onete, um patrimônio da Terra do Açaí, que lançou seu primeiro CD aos 73 anos. “A ideia era cantar com elas, que tinham shows marcados em polos distintos, e curtir um pouco da cidade, conhecer o Carnaval. Mas, logo que cheguei, senti um troço diferente, como se já conhecesse o Recife de longa data. A identificação com a cultura local foi imediata. Acho que os dois estados se parecem no amor pela música que produzem”, opina a artista. “A reação calorosa à música Ai, menina me deu muita confiança. Era o meu carimbó caindo no gosto de um povo tradicionalmente exigente.” E, entre uma apresentação e outra, foi se aproximando de artistas locais, como Nena Queiroga, Almir Rouche e André Rio. “Já estive em vários outros lugares do Brasil e poucas vezes me senti tão integrada. Foi impactante”, completa ela, que só agora – depois de uma avalanche de participações em programas de TV e shows Brasil afora – lança o esperado novo disco. Na verdade, o quarto da carreira, mas o primeiro com distribuição nacional.

Apesar de não fugir dos ritmos característicos da região Norte, ainda que reprocessados à sua maneira, Lia Sophia logo caiu de amores pelo frevo. “Tem um fraseado lindo, cheio de força, sofisticadíssimo”, pontua. No Carnaval de 2013, com sombrinha em punho, a moça voltou decidida a jogar seu encanto pelos quatro cantos da folia. Enfrentou os frequentadores do Siri na Lata, dividiu com Otto e o Maestro Spok o tradicional palco do Marco Zero e peitou a multidão do Galo da Madrugada, em cima do trio de Almir Rouche. Passou nas provas com louvor.


Compositor, intérprete e guitarrista, Felipe Cordeiro se apresentou
no
Rec-beat. Foto: Julia Rodrigues/Divulgação

Antes de Lia, outros talentos paraenses já tinham experimentado a Veneza Brasileira como trampolim para o sucesso. Polêmicas atuais à parte, a batida original da Banda Calypso, do casal Joelma e Chimbinha, só ficou realmente conhecida depois que a capital pernambucana foi escolhida como base. “É uma cidade mais aberta e mais centralizada. A partir do Recife, nossa música foi se espalhando pelo resto do Brasil”, situa o guitarrista. O crítico musical José Teles lembra que – por volta dos anos 1970 – importantes fatores, como a presença da gravadora Rozenblit e uma rede de comunicação fortíssima, contribuíram para o constante trânsito de artistas da música nacional. Mas o que tem acontecido com os paraenses é algo realmente curioso.

XIRLEY, DANADA
A esfuziante Gaby Amarantos é outro bom exemplo. Atração do Rec-Beat de 2010, ela quase viu sua apresentação naufragar, à beira do Capibaribe. Seu computador, com todas as programações das músicas que iria cantar, pifou diante de um assombroso público de 30 mil pessoas. O jeito foi improvisar. E, no meio da noite, surgiu até uma divertida versão de Single ladies, o megahit de Beyoncé, que virou Hoje eu tô solteira. A brincadeira repercutiu nacionalmente e, pouco tempo depois, ela era apresentada como a Beyoncé do Pará, no palco do Domingão do Faustão.

Não ficou só nisso. Nessa primeira vinda ao Recife, Gaby ouviu no CD player da van que a buscou no aeroporto uma música que acabaria marcando sua carreira: Xirley, de Zé Cafofinho e Suas Correntes. “Fiquei enlouquecida, querendo saber que som era aquele. O motorista me deu o CD de presente. Voltei para Belém já pensando em gravá-la”, relata a artista. Em outubro de 2011, Gaby surgia no palco do VMB (premiação da MTV) cantando a versão tecnobrega endiabrada de Xirley, vestida com um figurino luminoso e avisando que “chegou para abalar”. A Beyoncé do Pará saía de cena. O resto é história.

“Posso dizer que a presença ininterrupta da música paraense no Rec-Beat é resultado da nossa busca incansável por novidades. Depois de Pernambuco, com o manguebeat e toda sua tradição, acho que o Pará é o estado que produz a melhor música do país. O que aproxima os dois estados são a inquietação, a riqueza sonora e a procura incessante por uma identidade musical”, analisa Antônio Gutierrez, o Gutie, organizador do festival, que também trouxe para a folia pernambucana de Pinduca e Carimbó Uirapuru a Gang do Eletro e Felipe Cordeiro.

“Amo os ritmos paraenses. Acho que, de uma forma geral, eles caem no gosto do público pela ginga, pela sensualidade, pelo ritmo dos trópicos mesmo. É música sem mistério. E quando se tem uma band leader do porte da Lia Sophia, da Gaby ou da Joelma, aí é que levanta geral”, atesta a DJ Allana Marques.


Gaby Amarantos conta que “enloqueceu” quando ouviu a música Xirley, de Zé Cafofinho, para a qual gravou uma versão tecnobrega. Foto: Daniel Aratangy/Divulgação

FRENTISTA VOZEIRÃO
A trajetória de Lia é das mais curiosas. Apesar de se orgulhar de ser apresentada como cantora paraense, ela nasceu na Guiana Francesa e foi criada em Macapá. A cidade de Belém só passou a fazer parte de sua vida na adolescência. Para sobreviver longe da família, foi frentista de posto de gasolina e vendeu enciclopédias Barsa de porta em porta. “Só conheci a chamada MPB depois que cheguei a Belém. Quando descobri João Gilberto e Marisa Monte, pirei. Aprendi a tocar todas as músicas deles em dois dias”, relembra a cantora. A partir daí, Lia juntou as influências familiares (bolero, merengue, brega, zouk e carimbó) com a possibilidade de escrever sobre o que pensava/sentia, assim como fazia Marisa. “Anos depois, ela foi ver um show que fiz com a Gaby, no Rio de Janeiro. Quando apareceu no camarim, não consegui falar nada, fiquei meio anestesiada. Ela nem imagina a importância que teve na minha vida. Mas um dia eu conto”, brinca.

Quem vê a desenvoltura de Lia no palco, nem imagina qual foi o primeiro local em que fez uma temporada de sucesso. Um puteiro! Sucedeu assim: ela soube que estavam precisando de um músico para fazer apresentações estilo voz e violão num bar de Belém e foi atrás. Mas só percebeu qual era o tipo de “empreendimento” quando chegou lá. Como precisava de dinheiro, fez um acordo com a dona do pedaço para que ficasse claro que ela não fazia programa. O cachê inicial era de R$ 50,00 por duas horas de show. Mas os clientes gostavam tanto da voz daquela garota, que ela se enchia de gorjetas. “Saía de lá com 300, 400 reais por dia. Achei que ficaria rica”, diverte-se. E o repertório não tinha nada de Ai, menina. Ia dos bregas de Alípio Martins aos hinos dos times do futebol local. “Comecei a ganhar tanta grana, que a dona queria que eu pagasse uma taxa de 20% pelo apurado, como as meninas da casa faziam. Aí, eu pulei fora”.

Foram-se as gorjetas, mas os bregas paraenses, que tanto sucesso faziam entre os frequentadores, permaneceram no repertório. Quando lançou o CD Amor amor, há quatro anos, ela deixou muita gente surpresa ao dar um banho de bossa a vários clássicos do gênero. “O mais interessante é que pessoas que só gostavam de Caetano Veloso ou de Chico Buarque sabiam todas as letras”, frisa Lia. Já o recém-lançado disco, apesar de enfatizar o lado compositora, também traz pelo menos uma pérola: Quero você, de Carlos Santos, sucesso nas rádios populares do Recife nos anos 1980. “Quero você, quero você, quero você, todinha pra mim”, implora a letra. E a moça nascida em Cayena ainda acrescenta trechos em francês. “Não dá para ter preconceito. Música tem que tocar o coração, não importa se é uma letra política, cheia de referências, ou uma canção de versos simples”, defende.

“O que é bacana na Lia é que, mesmo com aquele porte de diva, ela não se importa se alguém taxa suas músicas de brega. O novo hit, Amor de promoção, tem um clipe ótimo, que se passa dentro de um ônibus, no maior calor. Essa é a realidade do povo que gosta de ouvir suas músicas, sempre alegres e festivas”, afirma o ator Reyson Santos, criador da diva drag Jurema Fox. E Reyson, em breve, poderá reencontrar a musa. Contrariando a máxima de que amor de Carnaval nunca dura, Lia Sophia já está com a passagem comprada para a folia deste ano. A maratona começa cedo, na prévia do bloco Imprensa Que Entra, dividindo o palco com Almir Rouche. E, se depender dela, só acaba novamente na Quarta-Feira de Cinzas. “Quem sabe não ganho um título de cidadã pernambucana?”, brinca. 

CLEODON COELHO, jornalista, roteirista de TV e biógrafo da novelista Janete Clair e da atriz Lilian Lemmertz.

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