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“Trabalhamos muito uns com os outros”

Encenador português Tiago Rodrigues fala sobre o trabalho da companhia Mundo Perfeito, na qual atua, e sobre o teatro em seu país que tem se caracterizado pelas trocas constantes de experiência

TEXTO Gianni Paula de Melo

01 de Dezembro de 2013

Tiago Rodrigues

Tiago Rodrigues

Foto Jota Gambuzino/Divulgação

É impossível desvincular o nome de Tiago Rodrigues da Companhia Mundo Perfeito, ainda que a trajetória do artista comece antes de o coletivo ser concebido. Isso porque os últimos 10 anos de trabalho com o grupo teatral que o consagrou no cenário português também foram decisivos para o surgimento do traço autoral de ambos, diretor e companhia. Junto à produtora Magda Bizarro, Tiago criou uma marca colaborativa e vem desenvolvendo projetos em parceria com grupos de vários países. Entre eles, constam experiências com artistas de São Paulo e do Rio de Janeiro.

No entanto, seu ímpeto de tentar abraçar o mundo não significa desligar-se nem por um instante do seu lugar primeiro. Em conversa com a Continente, ele demonstra grande entusiasmo com a produção cênica da capital portuguesa, mas lamenta a falta de investimentos, que inviabiliza a mesma força criativa em outras cidades do país. O jovem diretor destaca o que chama de “promiscuidade” das artes performativas em Lisboa, onde há uma troca intensa entre profissionais de diferentes companhias, que se envolvem nos projetos uns dos outros.

Mundo maravilha e Peça romântica para um teatro fechado são os nomes dos espetáculos desenvolvidos em parceria com brasileiros – o primeiro, com a companhia Foguetes Maravilha, o segundo, com artistas de diferentes procedências, consequente de um convite do Teatro Ipanema. Outra peça que, embora não tenha sido desenvolvida em parceria com grupos do país, estabelece um diálogo instantâneo com o nosso atual momento é Três dedos abaixo do joelho. Seu texto é uma colagem de falas de censores do período da ditadura de Salazar. Três dedos nos faz pensar, a um só tempo, na censura do passado e do presente e nos documentos aos quais, no Brasil, ainda não temos acesso.

CONTINENTE A imprensa portuguesa o define como um dos mais influentes criadores da década no país. Você concorda?
TIAGO RODRIGUES A única coisa importante nesses rótulos, que têm sempre a injustiça de pôr um adjetivo em alguém em vez de pôr em outra pessoa, é quando ele oferece visibilidade do trabalho do artista a um público mais alargado. De alguma forma, (esse rótulo) é o resultado de como a Mundo Perfeito desenvolveu 10 anos de trabalho intenso, de muita criação, altos e baixos. Essa intensidade permite que, inevitavelmente, você crie um espaço, e depois as pessoas põem o nome que quiserem. Acho que o que nos tornou aptos a sermos classificados como “influentes” foi o fato de colaborarmos com gente diferente e, ao interagir com outros grupos, a nossa forma de trabalhar se dispersar com eles. Também tem a ver com o fato de estarmos a completar uma década e termos criado um projeto que as pessoas já identificam. A única coisa realmente importante é que isso é uma forma de revelar conhecimento, não só reconhecimento de um artista, mas também conhecimento de seu trabalho.


Espetáculo Mundo maravilha. Foto: Magda Bizarro/Divulgação

CONTINENTE Com quais outras companhias do teatro português você se identifica?
TIAGO RODRIGUES Uma característica de uma geração do teatro português na qual eu me incluo é o fato de trabalharmos muito uns com outros, há circulação, uma grande promiscuidade. Claro que, depois, há o risco de tudo ficar parecido, mas não é o caso. Nessa mistura de gente, existem projetos que se destacam e que, muitas vezes, têm mais reconhecimento internacional do que no próprio país. Há uma companhia muito interessante, chama-se Mala Voadora, e está completando 10 anos como o Mundo Perfeito. É um grupo singular, com uma produção sólida e que se comunica com o nosso trabalho, porque eles também estão preocupados com a escrita, em como tratar a realidade, a política e a sociedade. Temos uma dupla de criadores, Ana Borralho e João Galante, que também já se apresentou no Brasil e que faz um trabalho de performances. Já colaborei com eles na tradução do texto, no acompanhamento dramatúrgico. São dois artistas mais conhecidos fora de Portugal e pode-se dizer que são volantes de nosso tempo. Na dança, a dupla Sofia Dias e Vitor Roriz é um caso fulgurante, com um trabalho próprio, inclusive difícil de definir. Acho que as artes performativas portuguesas são profundamente portuguesas, pessoais, parecem que só vão fazer sentido para aquelas pessoas, mas depois explodem.

CONTINENTE E a produção está mais concentrada em Lisboa?
TIAGO RODRIGUES Absolutamente. Primeiro, por ser a capital, então acaba tendo mais projetos, mais oferta. Depois, porque, nos últimos anos, o resto do país tem tido muitas dificuldades em ter uma dinâmica cultural devido à gestão política, como é o caso do Porto, que é a nossa segunda grande cidade, e foi quase completamente silenciada em termos artísticos por falta de investimentos. Há coisas de qualidade acontecendo no Porto, mas poucas e com pouco espaço. Alguns lugares tentam combater isso, Guimarães tenta ter uma dinâmica cultural; Montemor-o-Novo, que é uma pequena cidade ao sul, é extremamente importante para a criação contemporânea, porque tem um projeto de residências artísticas. Mas a esmagadora maioria das cidades portuguesas do interior tem pouca oferta cultural. Já a dinâmica da capital, pelo contrário, tem reforçado que a cidade quer, politicamente, investir na cultura. Uma coisa importante em Lisboa é que existe sempre um olhar nas possibilidades, às vezes é muito deprimente, às vezes é muito difícil, não há dinheiro, mas há sempre esse olhar nas possibilidades. Isso é algo que o meio artístico poderia ensinar ao resto da sociedade...

CONTINENTE Esse cenário vibrante tem conseguido impulsionar as novas gerações de artistas?
TIAGO RODRIGUES Hoje, uma das questões mais importantes é abrir espaço para os mais novos, porque é pouco dinheiro e pouco espaço. Se eu tiver que competir com um estudante recém-formado no conservatório de teatro, eu ganho. Agora começam a haver conversas entre artistas sobre como criar as condições para que a falta de meios não faça com que só uma geração com mais estrutura continue a se afirmar sem deixar espaço para os mais novos. Já é um sinal positivo o fato de estarmos preocupados com isso. Há um passado muito complicado de gerações anteriores que continuam a receber todo o dinheiro – companhias antigas com 30, 40 anos de trabalho – e a fazer pouco para abrir espaço para os mais jovens. Às vezes, eles convidam atores mais novos, mas é mais como absorver, não é permitir que eles façam seus próprios caminhos.


Foto: Divulgação

CONTINENTE A companhia Mundo Perfeito está completando 10 anos. O que você acha que mudou neste tempo?
TIAGO RODRIGUES Somos mais ricos na forma como fazemos os espetáculos, temos mais ferramentas. Também articulamos uma linguagem, fomos construindo uma forma de olhar para o palco, de olhar para o trabalho com os atores. Muitas vezes os princípios são os mesmos, por exemplo, o de que o espetáculo nunca está fechado e só acontece realmente quando o público está presente. Se, durante a apresentação, passa um avião e faz barulho, não vamos fingir que ele não passou. Isso são coisas que se mantêm desde o primeiro dia, em 2003, o que acontece é que sabemos fazer melhor. Além disso, nós começamos ligados a projetos de criação coletiva e, lentamente, fomos compreendendo que essa ideia de trabalharmos democraticamente é possível mesmo que haja um autor, porque isso não se traduz em uma hierarquia em que eu mando e alguém obedece, de que eu tenho um sonho e alguém serve ao meu sonho. Existe um lado nos nossos trabalhos que também nos transforma. Quando fizemos um espetáculo sobre cozinha, O que se leva desta vida, fomos trabalhar como aprendizes de cozinheiro. Quando fizemos Se uma janela se abrisse, fomos estudar jornalismo. Portanto, a cada espetáculo há uma aprendizagem para o artista, mas também para a pessoa. Acima de tudo, o que nos aconteceu foram 10 anos de vida, mais que de teatro. Tenho muito carinho pelo Tiago Rodrigues que começou com a Mundo Perfeito em 2003, mas eu não era tão bom quanto hoje, assim como tinha outras coisas que hoje devo ter perdido – essas são as escolhas que fazemos e as que não conseguimos fazer.

CONTINENTE Como surgiu a parceria com o grupo Foguetes Maravilha?
TIAGO RODRIGUES A Mundo Perfeito organizou em Lisboa, durante alguns anos, uma experiência que chamávamos de Estúdios e, todos os verões, convidávamos artistas estrangeiros para trabalhar com portugueses. Em 2009, desafiamos o Felipe Rocha, ator e dramaturgo do Rio, a escolher uma equipe carioca, trazê-la para Lisboa e trabalhar com a equipe que eu tinha escolhido. Foi um verão explosivo, pois criamos três peças e mais não sei quantos solos. Continuamos em contato e, rapidamente, surgiu a ideia de fazermos outro trabalho juntos, porque percebemos que tínhamos muita coisa em comum. A oportunidade surgiu em 2012, no mesmo teatro em que tínhamos nos encontrado, o Maria Matos. A Mundo Perfeito os convidou para vir a Portugal para uma criação coletiva, nós e os quatro membros do Foguetes Maravilha – Felipe Rocha, Alex Cassal, Renato Linhares e Stella Rabello. O espetáculo Mundo maravilha foi criado em Montemor-o-Novo, ensaiado lá e estreado em Lisboa, escrito por várias mãos e interpretado por todos. É uma ironia ingênua sobre a ligação entre os dois países e, principalmente, sobre expedições, aventuras e contar estórias. Um grupo de brasileiros e portugueses que querem realizar um espetáculo decide fazê-lo a bordo de um navio, porque acham que isso tem um simbolismo qualquer. Obviamente, como são artistas brasileiros e portugueses, naufragam e morrem todos. O espetáculo é a história do que o espetáculo poderia ter sido.

CONTINENTE Peça romântica para um teatro fechado também é uma parceria com o Brasil. Como se deu esse outro encontro?
TIAGO RODRIGUES Surgiu de um desafio do Teatro Ipanema. Eles tiveram um projeto chamado Companhia Provisória, em que artistas de várias companhias cariocas e paulistas eram dirigidos por um convidado estrangeiro durante duas semanas. Primeiro, foi a companhia Gob Squad, da Alemanha. Depois, foi a Lola Arias, de Buenos Aires. E o terceiro artista que eles convidaram fui eu. Trabalhei com oito atores de quatro companhias e fiz algumas propostas de textos, mas depois começamos a escrever em conjunto. Fui escrevendo todos os dias e, ao fim de uma semana, havia uma peça, então resolvemos fazê-la. Foi um processo intensivo, eu gosto muito de processos rápidos; gosto mais, às vezes, do traço a carvão que do quadro a óleo bem pintado. Às vezes, há qualquer coisa nessa urgência, nessa imperfeição, que me interessa.


Espetáculo Três dedos abaixo do joelho. Foto: Magda Bizarro/Divulgação

CONTINENTE Você não parece sentir necessidade de esperar muito tempo para amadurecer seus projetos.
TIAGO RODRIGUES Eu tenho experiências muito diversas. Demorei quase um ano escrevendo peças regularmente, mas também tenho criações realizadas em uma semana. Eu não escrevo por disciplina, se eu não fizesse teatro, eu não escreveria. Minha escrita é na beira do palco, faz parte da mecânica de construir um espetáculo, e o que acho que define uma obra é a escolha. O fato de ela ser escrita em duas noites ou em noves meses não deriva nenhuma garantia de qualidade. Nesse sentido, não acho que todo trabalho tenha que ser feito rapidamente, nem que tenha que ser lentamente, que precise de um ano, caso contrário não é válido. Três dedos abaixo do joelho demorou sete anos para ficar pronta, Peça romântica para um teatro fechado, duas semanas. Foi o tempo preciso.

CONTINENTE O processo criativo e a possibilidade de fracasso são temas presentes nas parcerias com o Brasil. Você realmente enfrenta os projetos como barcos à deriva ou sabe exatamente aonde quer chegar ao integrar a temática?
TIAGO RODRIGUES Existe um pouco das duas coisas. A partir do momento que tu olhas para o trabalho como uma possibilidade de fracasso e, ainda assim, isso te parece interessante, então as duas ideias se juntam. Uma de, efetivamente, poderes falhar e a outra de integrar a possibilidade de falhar como uma parte do processo. No caso do Mundo Maravilha, falar do construir o espetáculo só vale se isso comunicar sobre outras coisas. O naufrágio, por um lado, diz muito sobre o risco de afundar ao tentar fazer um espetáculo, mas também sobre a necessidade de haver pensamentos divergentes, gente que faz coisas que não se sabe bem pra que servem; isso é essencial em uma sociedade, que haja essas zonas de risco e experiência. Portanto, sim, estávamos a falar da arte, mas também estávamos a falar de nós próprios, até mesmo em uma escala mais íntima, dos riscos que temos que correr na vida. Essas várias interpretações têm que estar lá, porque se falares estritamente do processo, eu acho que há demasiado ego nesse gesto, mas se falarmos do processo com a convicção de que estamos a abrir a porta para outros níveis de leitura, então é muito interessante. Agora, há sempre o risco efetivo de falhar e essa possibilidade tem que estar sempre em cima da mesa, porque, quando achamos que ela não existe, significa que as coisas se tornaram aborrecidamente eficazes. Uma das principais competências dos artistas – e aqui não falo de mim, mas de grandes artistas de verdade – é essa capacidade de, tendo a qualidade e o conhecimento para produzir uma grande obra, portar-se como alguém que não a tem. Essa dúvida metódica é essencial. E é essencial que, às vezes, seja mesmo um fracasso.

CONTINENTE Três dedos abaixo do joelho é uma peça sobre a censura oficial que o teatro sofreu em certo período histórico. Existe censura ainda hoje?
TIAGO RODRIGUES Existe uma grande diferença entre haver um órgão do governo com a função de censurar, como aconteceu durante a ditadura, e o que há nas sociedades democráticas em que vivemos hoje. Não existe uma instituição, mas existe censura sim, sempre existiu. Hoje, há uma censura que vem da pressão econômica, que ocorre, muitas vezes, pela autocensura, pois se fizeres determinado trabalho artístico, talvez não tenhas financiamento. Acredito que a maioria dos artistas, na qual eu me incluo, pratica autocensura em alguma medida, mas é algo mais ambíguo. Existem grandes grupos econômicos na sociedade e pressões que são exercidas para que certas coisas não aconteçam. Essa censura cumpre um caminho mais difícil de traçar, pois não se pode dizer que a pessoa A que dirige aquela empresa tenha proibido o artista Z de fazer o seu trabalho, mas, se fizermos o percurso, vamos ver a ligação entre essas instâncias. Uma das coisas que é interessante nessa peça é perceber como o público reconhece maneiras de falar. Por exemplo, quando o diretor de um canal diz que determinado reality show é imbecil, mas é o que o povo quer. Essa ideia de alguém que assume saber o que o povo quer é completamente demagógica. Isso é algo que os censores faziam, eles diziam: “Por mim, aprovava, mas as pessoas não vão gostar”. Com a peça, percebe-se nos censores daquele tempo uma forma de argumentar que encontramos hoje na nossa sociedade. Agora, esse espetáculo é também grande elogio ao poder do teatro. Uma diferença entre os censores daquele tempo e o que acontece hoje é que eles tinham medo do teatro, eles achavam que o teatro era perigoso. Hoje, quem toma decisões que limitam a possibilidade do teatro acontecer, não o faz por medo, mas porque acha que o teatro é irrelevante. Isso é mais perigoso, ser indiferente ao teatro. 

GIANNI DE PAULA MELO, jornalista, com especialização em Literatura Brasileira.

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