Caminhar pelo bairro é a forma mais apropriada de travar contato com esse renascimento. E a praça Mary Fitzgerald Square, epicentro da região, é um bom ponto de partida. Reformada após a Copa do Mundo de 2010, na praça fica a Bassline, casa de shows de jazz e blues inaugurada em 2004, no antigo local do Music Hall. Nesses quase 10 anos de portas abertas, os mais importantes nomes da música africana têm se apresentado na Bassline, com capacidade para mil pessoas em sua sala principal, e para 150 em outra menor, dedicada a espetáculos intimistas. Em frente à casa, destaca-se a escultura em bronze de Brenda Fassie, legendária cantora sul-africana, falecida em 2004.
Ao me afastar da estátua de Brenda, o olhar é atraído para uma curiosa fileira de pequenos bustos representando anônimos rostos de traços africanos. Esculpidos em toras de madeira retiradas de antigas estradas ferroviárias, as cabeças estão dispostas lado a lado, sobre baixos pilares brancos, formando uma extensa e retilínea fileira. Ao todo, existem 560 esculturas assim espalhadas pela cidade, muitas delas em Newtown. Obra de artistas locais, chama a atenção a forma única de cada rosto, com feições nunca repetidas. “A arte está instigando as transformações do centro da cidade. Estamos começando do zero, sem exclusão, construindo Newtown com uma outra visão”, afirma Tania Olsson, formada em Arqueologia, e há quatro anos comandando visitas guiadas pelas ruas de Joanesburgo.
Seguindo a linha formada pelas cabeças de madeira, caminha-se por uma área ampla da Mary Fitzgerald Square, entre trechos arborizados, de grama bem-aparada e árvores esparsas não muito altas; e por vazios, espaços abertos, como à espera da ocupação. Ao longe, prédios de arquitetura moderna lembram o passado recente de vocação empresarial.
Bustos, esculpidos em madeira, espalham-se pela cidade
Ao alcançar a extremidade norte da Mary Fitzgerald Square, dá-se de frente com o grande e sóbrio prédio do Museu da África. A construção de linhas retas, em formato retangular, reconta a história de Joanesburgo desde os primórdios, passando pelo povoamento da cidade, a exploração de metais preciosos, até o desenvolvimento da música sul-africana. Um dos destaques do museu é a exibição que detalha o Treason Trial, entre 1956 e 1961, episódio que forjou o caráter de muitos líderes da nova África do Sul. Ao lado do Museu da África, o Market Theatre aguarda os visitantes nas mesas de alguns restaurantes e bares, e tem se consolidado como um ponto frequente de shows e apresentações artísticas.
O tour a pé por Newtown continua, cruzando uma movimentada avenida, na face oeste do Museu da África. O pequeno grupo de seis ou sete pessoas segue os passos da guia Tania Olsson, uma sul-africana muito branca, de cabelos loiros, com cerca de 1,60 metro de altura, vestida de modo despojado, com roupas largas, movimentando-se com agilidade e bastante falante. Tania parece adorar seu trabalho e ter grande orgulho da cidade.
Chegamos embaixo de um longo viaduto, o De Villiers Graaff Motorway, e a guia aponta para os pilares que sustentam a construção, com cerca de 10 metros de altura e dois de largura, cobertos por coloridos grafites. “A arte de rua é responsável pelo renascimento da área central de J’oburg. Tudo começa a vir à tona agora”, diz ela, referindo-se a Joanesburgo como os nativos a chamam, e refletindo sobre a ebulição artística de Newtown. Os desenhos são enormes e irreverentes.
Um dos primeiros retrata a Virgem Maria segurando nos braços um grande spray de tinta; há o Super-Homem feio, baixinho e gordo; o Homem de Ferro com cara de cansado; uma jovem morena de cabelo tipo Channel e fita métrica a mão, que mais parece uma faca; outro que retrata um negro desenhando, com formas e traços que se assemelham ao modernismo de Di Cavalcanti ou Tarsila Amaral; e outros mais, todos primando pelo colorido, muitos com a temática de quadrinhos.
Ao contrário da famosa e turística Cidade do Cabo, no sudoeste do país, onde o grafite é expressamente proibido – com punição, inclusive, para o dono do imóvel que oferecer seu muro ou parede –, em Joanesburgo o grafite não só é legalizado, como é incentivado. Se, na Cidade do Cabo, essa forma de manifestação artística iniciou ao redor das linhas de trem, em áreas de certa forma mais escondidas e afastadas, em J’oburg, o grafite já começou em espaços abertos e centrais.
Afastamos-nos dos pilares da ponte e atravessamos a rua em direção à calçada lateral. Alguns passos adiante, um grupo de jovens (três meninas e um rapaz) arma dois tripés e fixa câmeras neles, com as lentes apontadas para os grafites. Embora sul-africanos brancos, loiros, e de olhos azuis sejam minoria no país, ainda assim há muitos, mas aqueles ali parecem estrangeiros. De fato, são alemães e estão produzindo vídeos sobre as manifestações artísticas de Joanesburgo.
Grafites estão em toda parte, também na fachada da CityVarsity
Antes de dobrar na rua, à esquerda, seguindo orientação da guia, um grafite no muro ao lado chama a atenção: o perfil de um chimpanzé, com o queixo apoiado sobre a mão, ares de pensador e, abaixo, a palavra: Fin. Entramos numa rua pouco movimentada, e logo adiante passamos pela fachada vermelho-escarlate da CityVarsity – School of Media & Creative Arts. A escola de graduação e pós-graduação em Comunicação e Artes nasceu na Cidade do Cabo, e, desde 2007, tem campus em J’oburg. É uma instituição de ensino superior prestigiada e sua localização em Newtown, centro do renascimento artístico da cidade, não é por acaso.
Apesar disso, não é por esse motivo que a guia Tania Olsson trouxe o grupo a uma rua pouco movimentada, quase um beco. Embora, à direita, um muro com dezenas de metros de comprimento ostente mais uma série de grafites de bonecos e coloridos quadrinhos, é um pouco adiante, à esquerda, sob uma ponte baixa, que uma singela frase escrita num muro de tijolos talvez seja a mais importante inscrição de Joanesburgo: “WE WONT MOVE”.
A firme e curta negativa foi escrita há muitas décadas, e representa a inequívoca revolta da população negra da cidade, forçada pela minoria branca a se mudar para os bairros afastados da periferia, sendo expulsos das áreas centrais. Mesmo escrita há mais de 20 anos, artistas de J’oburg sempre preservaram a inscrição, retocando quando preciso a histórica frase em grandes letras de forma.
Frase expressa revolta dos negros, durante apartheid
No caminho de retorno à Praça Mary Fitzgerald Square, ponto inicial do tour em Newtown, o grupo passa ao lado do antigo prédio usado, desde 1968, como uma espécie de quartel-general da polícia de Joanesburgo. Nas duas últimas décadas do regime racista do apartheid, entre 1971 e 1990, o local, conhecido como John Vorster Square, foi o mais sinistro da cidade. Tal como o DOI-CODI da ditadura brasileira, ali, os ativistas negros que lutavam por liberdade eram presos, detidos brutalmente, e submetidos à tortura. Em 1997, já tendo Nelson Mandela como presidente da África do Sul, o prédio alto e feio, com mais de 20 andares, foi renomeado para Johannesburg Central Police Station.
Da calçada da esquina, a guia Tania Olsson aponta para o QG da polícia e conta que ali dentro, mais especificamente nas salas dos 8º e 9º andares, oito importantes líderes sul-africanos foram assassinados. E alguns outros se suicidaram. Em homenagem às vítimas, um memorial projetado pelo artista Kagiso Pat Mautloa foi inaugurado em 2007. “Esse prédio não deveria continuar sendo utilizado pela polícia. Ele traz péssimas lembranças à população. Sou a favor de que a polícia saia daí e que esse local todo seja transformado num memorial”, diz Tania, não se eximindo em dar sua opinião.
O ponto de vista de uma sul-africana loira e branca é simbólico. Em 2014, toda a África do Sul celebrará os 20 anos da eleição de Nelson Mandela e o fim do apartheid. Duas décadas depois, embora o país ainda enfrente muitas dificuldades sociais, as raízes do regime segregacionista parecem estar definitivamente cortadas. Impulsionado por ideais artísticos e valores humanistas, o renascimento do histórico Bairro de Newtown é como um sopro de esperança. Nem pretos nem brancos. Na igualdade racial, mais vale o colorido da arte.
LUCIANO VELLEDA, jornalista.