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Helio Eichbauer: Memórias de um cenógrafo

Aos 72 anos, o artista carioca mergulha nas lembranças do vivido em teatro, cinema, música e literatura e realiza o livro 'Cartas de marear'

TEXTO Pollyanna Diniz

01 de Dezembro de 2013

Helio Eichbauer

Helio Eichbauer

Foto Luiz Henrique Sá/Divulgação

Quando chegou aos 70 anos, o cenógrafo carioca Helio Eichbauer sentiu que estava pronto para, finalmente, escrever um livro. Percebeu, então, ao revisitar as décadas, os episódios e os encontros em que as memórias mais pareciam ficção do que realidade – e isso não era, absolutamente, um problema. Afinal, apesar de ser um dos principais nomes da cenografia no país, Eichbauer não tinha interesse em realizar uma obra técnica, um tratado que abordasse apenas o seu método de trabalho, a trajetória nas artes cênicas. Cartas de marear – impressões de viagem, caminhos de criação, publicado pela editora Casa da Palavra, é um reflexo fiel da formação humanista desse cenógrafo que morou nos Estados Unidos ainda adolescente, desistiu da faculdade de Filosofia e da pintura para se dedicar ao teatro, estudou na Europa, trabalhou em Cuba e deu aulas na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro e na Escola de Artes Visuais, no Parque Lage, na época da ditadura militar.

As lembranças mais remotas que guarda do teatro são contadas no primeiro capítulo, cujo título foi em parte tomado “emprestado” do compositor Gilberto Mendes: Marítimos remotos ou Ulisses em Copacabana surfando com James Joyce e Dorothy Lamour. Aos domingos, a diversão era o teatro de bonecos na Praça Serzedelo Correia, em Copacabana. “Primitivos fantoches de luvas, marionetes, cenários pintados, muita paulada, muita pândega”, escreve. “Dia desses, Maria Fernanda, filha de Cecília Meireles, me disse que ao ler livro também reavivou muitas memórias. Ela ia para esse mesmo teatrinho”, conta. Além do teatro de Guignol, o pai, piloto da Força Aérea Brasileira, sempre trazia presentes de suas viagens longínquas. Um deles, Helio coleciona até hoje: “um teatrinho de cartão – Pollock’s Britannia Theatre –, com figuras bidimensionais recortadas, montadas sobre hastes e seus cenários; uma reprodução ingênua de um teatro europeu do século 19”.

Como um dos tios era músico, desde garoto Eichbauer também frequentou o Teatro Municipal do Rio de Janeiro. “A cenografia dos espetáculos de dança era geralmente desenhada por pintores, belos quadros pintados para servirem de pano de boca e telões ao fundo. Artistas como Portinari, Vicente do Rego Monteiro, Emiliano Di Cavalcanti, Cícero Dias e Lasar Segall criaram cenários magníficos”, relata. “Eram outros tempos. Não tinha televisão. No colégio aprendia-se muito, a base era boa. O que eu não tinha como vivência, adquiria da literatura. Lia nomes como Shakespeare e Bernard Shaw.”

Na década de 1950, pós-guerra, morou nos Estados Unidos. O apartamento dos tios embaixadores mais parecia uma galeria de arte, com saraus periódicos. Um dos convidados era Villa-Lobos, de quem Helio se tornou amigo. “Aquele apartamento era fabuloso. E havia a tradição dos saraus, do violão, da seresta. A casa vivia cheia de artistas, músicos, pintores, poetas.” Aproveita para tratar da revolução causada pelos escritores da geração beat e escreve um diálogo “fictício” entre um jornalista (Nelson Coelho, poeta e correspondente do Jornal do Brasil em Nova York), a atriz portuguesa Nita Brandão e um jovem beatnik (ele mesmo).

Noutros momentos desse emaranhado de memórias, recorre novamente à ficção, e escreve um solilóquio do rei Rodolfo II, contemporâneo de Shakespeare, ou um diálogo entre personagens do modernismo como Oswald de Andrade, Haroldo de Campos, José Lino Grünewald, Lina Bo Bardi, Flávio de Carvalho e Patrícia Galvão. “Grande parte da estrutura do livro é dramática. Os diálogos são por conta de Platão, que escrevia tudo em forma de diálogos. O livro poderia até ser encenado”, explica.

TEATRO
Quando voltou ao Brasil, vindo dos Estados Unidos, Helio Eichbauer ingressou na Faculdade Nacional de Filosofia do Rio de Janeiro, mas não terminou o curso. Uma exposição que esteve na Bienal de São Paulo, vista no Rio, no Museu de Arte Moderna, do arquiteto tcheco Josef Svoboda, um dos principais cenógrafos do século 20, levou o jovem a repensar os próprios rumos. Como que, por destino, os tios embaixadores agora estavam na cidade de Praga, na então República Socialista da Tchecoslováquia.


Estudo desenvolvido em Praga, nos anos 1960, para montagem de A tempestade, de Shakespeare. Foto: Reprodução

Resultado: Helio Eichbauer foi o primeiro aluno estrangeiro de Svoboda, entre 1962 e 1966. “A minha profissão eu devo a ele. Fui levado ao rigor, ao desenho, ao método, à observação da cidade. Eu era um pintor figurativo, mas em Praga me tornei abstrato. A escola era do abstracionismo geométrico, da Bauhaus, a arquitetura, a estrutura”, enumera.

Nessa época, realizou diversos exercícios, sempre em preto e branco. O primeiro pedido do mestre foi para que o aluno criasse cenários e figurinos para um texto de Carlo Goldoni: Le baruffe chiozzotte. Depois vieram Shakespeare, Pedro Calderón, Molière, Nikolai Gógol, Gorki, Tchekhov. “O ateliê de Svoboda, onde nos encontrávamos diariamente para avaliação de meus exercícios, era repleto das mais belas maquetes de cenografia criadas no século 20. Algumas, construídas com madeira e ferro em grande escala, com pequenos motores que transformavam o espaço cênico radicalmente, representavam o mundo cinético que era transposto para os grandes palcos da ópera, tecnicamente perfeito, silencioso, surpreendente.”

A certa altura, o teatro já tinha ocupado todos os espaços na vida de Eichbauer – ou, ao menos, tomado a maior parte. O restante era ocupado pela literatura, pela música, pela ópera, pela filosofia ou pintura. “Submetidos à lei da gravidade, salvo quando por processos mecânicos alçamos voo, o que nos sobra é o poder imponderável da poesia. Um grande intérprete, imóvel, pode levar-nos a espaços incomensuráveis. Esse é o poder da caixa cênica; não estamos encerrados, mas livres para viajar pelas palavras e pela música, espaço irrestrito, porção de eternidade”, escreve.

O REI DA VELA
Foi em Praga que Helio Eichbauer conheceu José Celso Martinez Corrêa. Desde então, recebeu o convite para que, quando retornasse ao Brasil, fosse ao Teatro Oficina. Mas para a realização de O rei da vela, um dos trabalhos mais importantes da sua carreira de cenógrafo, justamente para o Oficina, foi fundamental uma temporada em Cuba, a convite da Casa de las Américas, organização dedicada à cultura cubana. “Cuba restaurou a cor no meu trabalho”, explica. Era tempo de modernismo no teatro, de tropicalismo.

A montagem do Oficina de O rei da vela, texto de Oswald de Andrade escrito em 1930, marcou época. “A partir das provocativas imagens trazidas por Terra em transe, filme de Glauber Rocha estreado no início daquele ano (1967), José Celso lança-se à criação do espetáculo multiplicando, até onde possível, as peculiaridades de sua nova poética: o deboche, a irreverência, as citações, o mau gosto, as alegorias, destacando o claro pacto de classes sociais em convivência para garantir a exploração do proletariado.”


Desenho do cenógrafo para montagem do Teatro Oficina
da peça
O rei da vela, de Oswald de Andrade. Foto: Reprodução

“Tornado um manifesto do grupo, O rei da vela inaugura um novo movimento artístico – o tropicalismo”, registra o livro História do teatro brasileiro, organizado por João Roberto Faria. Mais adiante, a cenografia da peça é comentada: “Lançando mão do palco giratório da nova sala de espetáculos, o cenógrafo Helio Eichbauer concebe um aparato cenográfico visualmente exuberante, a partir de signos oriundos do passado nacional e elevados à categoria de kitsch, em bem-humorada releitura da antropofagia moderna”.

Além de José Celso, Eichbauer trabalhou com nomes marcantes na história do teatro brasileiro, como Augusto Boal e o pernambucano Martim Gonçalves. “Com Boal fiz três trabalhos: FedraO corsário do rei e O público, uma peça de Garcia Lorca. Com Martim Gonçalves, montei, por exemplo, Álbum de família, na Venezuela”.

Mas não é só no teatro que Helio Eichbauer transita entre os cenários abstratos, geométricos e figurativos. Nada mais coerente que ele também trabalhasse com música, ópera, cinema, exposições, literatura. Faz cenários, por exemplo, para Chico Buarque e Caetano Veloso. Em Abraçaço, show mais recente de Caetano, colocou no palco quatro telas da fase suprematista do artista russo Malevich.

Lembra também que o cinema o trouxe a Pernambuco, nas gravações, ao lado do diretor Ruy Guerra, de Kuarup, filme de 1989, baseado na obra de Antônio Callado. Foi uma época bastante familiar, aliás, já que a mãe de Eichbauer nasceu no Recife – o avô dele, Giacomo Palumbo, era um renomado arquiteto, responsável pelos desenhos de prédios como o Palácio da Justiça, a Faculdade de Medicina do Recife e a Ponte Duarte Coelho.

Fernando Pessoa, um dos poetas mais citados em Cartas de marear, quem sabe traga de volta o carioca, de raízes nordestinas, ao Recife. A exposição Fernando Pessoa, plural como o universo, que esteve em cartaz no Museu da Língua Portuguesa, cujo projeto foi assinado por ele, agregou muitos elementos da coleção do pernambucano José Paulo Cavalcanti. “A exposição está guardada, mas seria muito bom levá-la ao Recife. Quem sabe não conseguimos?”, questiona. Seria uma ótima oportunidade não só de conferir mais um trabalho de Eichbauer, mas de ter o lançamento das suas Cartas de marear também em terras pernambucanas.

POLLYANNA DINIZ, jornalista, crítica de teatro e colaboradora do blog Satisfeita, Yolanda?.

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