Nos últimos 10 anos, 165 mil brasileiros ficaram milionários e 34 milhões de pessoas migraram para as classes A, B e C. Esse número pode chegar a mais de 30 milhões, em 2025, só no que se refere às classes mais baixas. Com a estabilidade econômica, surgiu não um, mas vários tipos de luxo, que incluem desde acesso a produtos e objetos caros a experiências sensoriais exclusivas.
Esse novo tipo de luxo muda os padrões associados ao consumo e aproxima os recifenses das classes menos abastadas de uma cidadania que se exerce pelo poder de aquisição de bens materiais e culturais.
Nestor Garcia Canclíni, teórico que vem há mais de duas décadas estudando os efeitos do consumismo nas comunidades tradicionais da América Latina, defende uma “reconceitualização” do consumo, não apenas como cenário de gastos inúteis e impulsos irracionais, mas como o campo no qual a sociedade se organiza em torno de posições psicológicas e sociopolíticas que redefinem sua identidade e, consequentemente, o exercício da cidadania.
SUPÉRFLUO INDISPENSÁVEL
Para trabalhadores que por décadas foram alijados do poder de sedução da publicidade, agora é a hora de mostrar o seu potencial consumista. Cidadania exercida na medida em que o mercado os enxerga com o direito básico ao supérfluo indispensável. “O consumo é um lugar onde os conflitos entre as classes, originados pela desigual participação na estrutura produtiva, ganham continuidade em relação à distribuição e à apropriação dos bens”, descreve Manuel Castell.
Por isso há uma tensão silenciosa num dos mercados mais promissores que se estabelecem no Recife, cidade que detém o número de 1.743 milionários – conforme dados do Haliwell Bank. Considerado um dos campos econômicos mais prolíficos do futuro, por conta da expansão da riqueza mundial, o consumo de luxo é tendência geradora de distinções culturais e acompanha, na cidade, o crescimento da mão de obra qualificada que tem dinheiro e quer gastar.
Não foi, no entanto, por conta de seus modernos shoppings que marcas como Burberry e Prada aportaram no mais novo mall da capital, o Rio Mar. Marcas internacionais pesquisam bem os locais em que vão investir e o Recife é, hoje, a cidade com maior expectativa de crescimento no Nordeste e no Brasil, segundo a especialista em Desenvolvimento Econômico Tatiane de Meneses, professora de Economia da UFPE.
“Temos acompanhado em Pernambuco um PIB acima da média nacional, que atrai empresas e riquezas para o estado. Mudamos o perfil da mão de obra, que hoje é qualificada, mais produtiva e bem-paga. Para se ter uma ideia: em 2001, apenas 28% da População Economicamente Ativa (PEA) eram formados por pessoas que tinham mais de 11 anos de estudo. Em 2011, esse número subiu pra 46%”, explica Tatiane.
Ensaio do artista holandês Hans Eijkelboom, realizado em metrópoles globalizadas, evidencia, entre outros aspectos, a padronização do estilo pelas tendências de moda.
Foto: Divulgação
A primeira e mais problemática tensão é que boa parte dessa mão de obra qualificada vem de migrações interestaduais. De Pernambuco, tem-se aproveitado, como nunca, o setor de serviços gerais, responsável por um fenômeno contemporâneo: a categorização de uma classe pelo seu acesso ao consumo e não por indicativos socioculturais, como é de praxe nas estatísticas sociológicas.
É o fenômeno da classe C, formada por trabalhadores como empregadas domésticas, frentistas, taxistas, entre outros serviços gerais, que, por conta de uma política de estabilização da moeda e da melhoria na oferta de trabalho, aponta Tatiane, passou a ter acesso massivo a compras parceladas. “Essas pessoas não mudaram de classe, não houve mobilidade social. Elas apenas deixaram de comprar artigos de sobrevivência e se inseriram no mercado de bens supérfluos e de entretenimento”, detalha a pesquisadora.
“Do ponto de vista da relação entre as classes, continuamos vivendo em um dos países mais desiguais do mundo, e não somente em termos de renda, mas de status e de direitos garantidos. Afirma-se que somos os inventores do elevador de serviço e isso diz muito sobre nossa sociedade. De todo modo, a desigualdade caiu pelo contínuo crescimento do salário mínimo, o aumento do emprego formal e os programas sociais”, completa Maria Eduarda Rocha, especialista em cultura de consumo e professora da pós-graduação em Sociologia da UFPE.
A distribuição da renda gerou, sobretudo, um excedente de oportunidades com as quais a cultura contemporânea reivindica, a despeito da classe, o seu direito ao supérfluo. Um exemplo recente virou hit e meme na internet: o Melô da calça jeans. Em meio a boatos sobre o fim do Bolsa Família, um vídeo de uma senhora negra, mãe de família, caiu no YouTube, gerando comentários jocosos, indignados com o rumo que a matriarca daria para sua mesada pública.
“Só ganho 134 reais, não tá dando nem para comprar uma calça para minha filha. Porque uma calça para uma jovem de 16 anos é mais de 300 reais”, vaticinou. Independentemente das implicações sociais que um comentário como este indica, a frase dá a justa medida de como o consumo supérfluo se tornou indicativo do manejo da renda familiar.
SEM FRONTEIRAS
A disseminação da informação e o acesso massivo aos meios digitais estimularam a aproximação de mundos distintos que, por meio do e-commerce, blogs e promoções em mídias sociais, acabaram tendo o luxo inacessível desmitificado. O surgimento das lan houses, que ocupam boa parte das periferias recifenses, e do wi-fi, facilitou o ingresso desse novo consumidor ao mercado de bens supérfluos.
Para muitos consumidores das diversas variantes de luxo, o deslocamento geográfico era o passaporte para a fruição nesse universo – o que acabava garantindo o monopólio dessa informação apenas para os detentores de capital financeiro suficiente para viagens nacionais e internacionais – ou aquisição de informação por meio de mídia especializada.
Com a estabilização da moeda e o crescimento do salário mínimo, parcela da população, alijada do consumo de bens supérfluos, pôde ter acesso a eles. Foto: Helder Tavares
Naturalmente, o poder de sonhos e as fantasias de raridade e exclusividade coexistem à atração pelas políticas de preço e imagem acessíveis. Segundo Gilles Lipovestky, autor de Luxo eterno – da idade do sagrado ao tempo das marcas, no entanto, é um novo sistema que cresce, junto à difusão das cópias e falsificação das marcas. A pirataria, ironicamente, contribui para a democratização, somente em tornar popular o signo das grandes marcas, que hoje circulam promiscuamente nos mercados urbanos.
As logos, porém, são esvaziadas do sentido original atribuído a grandes grifes (apoiadas em sua institucionalidade, tradição e permanência, caso, por exemplo, de símbolos como Channel, praticamente uma lei para os consumidores de alto luxo). A logo, no luxo democratizado, é menos índice de refinamento e mais mecanismo de identificação com os personagens da indústria do entretenimento: celebridades efêmeras, jogadores de futebol, cantores pop, sertanejos.
O diretor da CDL, Fred Leal, localiza com propriedade esses novos consumidores, que praticamente causaram uma revolução na forma com a qual as empresas negociam os produtos contemporâneos mais populares, sobretudo os tecnológicos. “Eles estão nas grandes lanchonetes, estão comprando smartphones e TVs de plasma ou assinando TV a cabo”. Nas periferias, é comum a proliferação de antenas de TV por assinatura, cujos assinantes das classes C e D representam, juntos, quase 70% dos serviços, segundo estudo divulgado pelo Instituto Data Popular, em abril deste ano.
“Antigamente reservados aos círculos da burguesia rica, os produtos de luxo progressivamente ‘desceram’ à rua. No momento em que os grandes grupos apelam a managers oriundos de grande distribuição e treinados no espírito do marketing, o imperativo é de abrir o luxo ao maior número, de tornar ‘o inacessível acessível’”, diz o autor de Luxo eterno.
O gosto generalizado pelas grandes marcas, o crescimento de consumo em frações ampliadas da população provocam, para ele, uma relação menos institucionalizada, mais personalizada, mais afetiva com os signos prestigiosos. Mudanças que convidam ao questionamento do sentido social e individual do consumo dispendioso, “bem como do papel tradicionalmente estruturante das estratégias distintivas e dos afrontamentos simbólicos entre os grupos sociais”.
O clamor de pertencimento a uma cultura à qual esteve tradicionalmente afastada economicamente reformula, porém, toda a dinâmica do consumo, com a liberação de uma demanda reprimida. Cada vez mais, as facilidades de pagamento se tornam um meio de acesso a essas classes que, sorrateiramente, vão ocupando um espaço deixado para trás pela classe média, por uma pequena burguesia.
Eis a segunda grande tensão do mercado de luxo democratizado. O ingresso da classe C redefine o gosto e a distinção entre classes. “Quando os bens se democratizam, perdem sua capacidade de marcar o ‘valor’ social de seus usuários. O ingresso de novos grupos sociais no mercado de consumo de bens e serviços, como máquinas de lavar roupas ou viagens de avião torna esses bens e serviços ‘triviais’, de modo que eles perdem a capacidade de explicitar as fronteiras entre as classes médias e as classes baixas, até então excluídas do consumo”, explica Maria Eduarda Rocha.
Basicamente: para as classes originalmente detentoras desses estoques de bens de entretenimento, a popularização os banaliza. O acesso ao refinamento, possível pelo estabelecimento de um mercado de luxo desmitificado, altera o gosto e distinção na cidade. Os grupos mais abastados buscam desvincular-se da banalização estética, que os ameaçaria nessa nova relação com o grande público.
Leia também:
Sensorial... de exceção
Riqueza: Dos primórdios até hoje