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Digestivos: Tudo por um grand finale

Bebidas de sobremesa são itens de apreciação dos que se esmeram no ato de comer e receber, e incluem conhaques, licores, vinhos do Porto e de colheita tardia

TEXTO LUCIANA VERAS
FOTOS RAFAEL MEDEIROS

01 de Dezembro de 2013

De acordo com especialistas, vinho do Porto combina com bolo Souza Leão

De acordo com especialistas, vinho do Porto combina com bolo Souza Leão

Foto Rafael Medeiros

Os que gostam de comer, e apreciam os rituais etílicos, sensoriais e gastronômicos que envolvem um banquete, adoram abrir suas casas para receber amigos e se esmeram em preparar iguarias, compartilham uma certeza: toda refeição que se preze pede um grand finale. Mas como superar o ápice a que se destina o prato principal? Uma das respostas possíveis e mais difundidas é o binômio sobremesa e “digestivo”, adjetivo que veio a congregar o conjunto de bebidas tradicionalmente servidas ao término de almoços, jantares e afins.

Jogam nesse escrete os vinhos do Porto, de colheita tardia (late harvest), os brancos de sobremesa (como o francês Sauternes), os conhaques e, claro, os licores. Afinal, não são poucas as vezes em que se ouve, em restaurantes lotados nas tardes de domingo, a singela frase endereçada ao garçom: “A sobremesa, um café, um Cointreau e a conta”. Esses são os craques do time, aqueles para quem nunca faltam oportunidades de arrematar um encontro festivo. Não estão sós, porém: champanhe, espumante, cachaça e até mesmo uísque podem ser escalados. Ainda mais no Brasil, país em que costumes se incorporam à rotina na mesma velocidade com que são modificados.

“O brasileiro é um povo festivo, que gosta de estar à mesa, de preparar, de receber, e que sempre aprende rápido. Começou a perceber que o final de uma refeição também tinha que ter uma bebida para se servir, mas não uma bebida qualquer, e, sim, uma que fosse compatível com a sobremesa”, situa a chef carioca Flávia Quaresma. “Absorvemos a cultura do digestivo após a sobremesa. É só ver as nossas cachaças envelhecidas, os nossos licores, o casamento final que damos com os vinhos”, acrescenta ela, que é autora dos livros Água na boca – o Brasil e seus sabores, e Saboreando mudanças: o poder terapêutico dos alimentos.


Para a chef Flávia Quaresma, o digestivo deve ser compatível com a sobremesa.
Foto: André Wanderley/Divulgação

Quaresma afirma que é preciso observar as especificidades de cada um. “A combinação pode ser por aproximação ou por contraste. Pegue o chocolate, por exemplo. Tem personalidade forte, é doce e tem muita gordura. Então, você apela para o vinho do Porto, e sabe que dará certo. Se quer usar um vinho branco, como um Sauternes, pode optar por uma torta musse de chocolate amargo. A gente brinca, ainda, com a acidez das frutas. Uma goiabada com queijo combina com um Porto”, ensina. O segredo, portanto, é a harmonização. Esse conceito, tão disseminado como o casamento ideal entre comes e bebes à mesa, é utilizado também para determinar se vai ser o vinho doce Tokaji húngaro, um Porto do rótulo Real Companhia Velha Vintage, um licor Bailey’s ou o conhaque Hennessy, que os comensais bebericarão enquanto se servem de bolos, sorvetes e compotas.

O açúcar, aliás, desempenha função essencial no balanceamento dessa equação. Sempre foi assim, como explica Robson Rodrigues, gerente de bebidas e sommelier das duas lojas do Barchef Mercado Gourmet. “Os licores datam da antiguidade. Na Itália do século 16, na época de Catarina de Médici, aparecem como uma bebida medicinal, feita de açúcar, álcool de cereais e frutas. Quando ela vai para a França, leva o remédio para lá e acha fórmulas para dar mais prazer no consumo daquilo que era visto como um elixir. Ao torná-lo mais aprazível, acrescentando mel, cacau, especiarias, começa a popularizar o consumo do licor”, contextualiza.


Lea Wanderley diversifica o cardápio de bebidas de acordo com a ocasião social

Rodrigues explica que o teor alcoólico mais elevado dos licores, dos vinhos fortificados como o Porto (após a fermentação, acrescenta-se álcool na forma de uma aguardente vínica, o que o torna literalmente mais forte) e do conhaque os credencia para a fruição pós-prandial: “O Porto tem entre 16% e 22%. O licor varia de 20% a 28%, enquanto o conhaque chega a 40%. O alto teor de álcool dá a sensação de prazer, de alívio e de conforto. Se você junta a isso o doce da sobremesa, chega a uma carga de açúcar que vai ajudar na digestão”. Em uma região como o Nordeste brasileiro, onde álcool e açúcar compuseram, por séculos, o esteio da economia e da culinária, seria irracional supor que a mania de mergulhar numa doce embriaguez não se massificaria.

“Entre os séculos 16 e 17, fomos os maiores produtores de açúcar do mundo. Nossos doces são extremamente doces e hoje somos um mercado que consome muito vinho e que tem até produção de vinho regional de sobremesa”, aponta o professor, chef e antropólogo da alimentação Erick Buarque, especializado em cozinha pernambucana.

“Aqui, é difícil não termos uma sobremesa muito doce, então, buscar o equilíbrio na hora de conjugar com a bebida é importante”, emenda Buarque. À Continente, ele sugere o alinhamento de dois clássicos – os bolos de rolo e Souza Leão – com dois líquidos legendários: o vinho de colheita tardia e o Porto, respectivamente. “Doce com doce seria a referência da cozinha clássica e a nossa tradição de açúcar comporta isso”, sustenta.


Elaboração do Pruneaux conta com ameixas maceradas dentro do álcool

APRECIADORES
Na hora de montar o menu, opções não são escassas. O Porto pode ser rubyvintage ou tawny, da casa Ferreira, da Real Companhia Velha ou da Quinta de la Rosa. Fortificado como o Porto são o Madeira, o Marsala, o sherry e o espanhol jerez. Os licores se dividem entre os que são à base de frutas (Cointreau, Mandarine, Ginja de Óbibos), de ervas, plantas ou frutas secas (43, Bénédictine, Frangelico, Amarguinha) e os cremosos (Bailey’s, Amarula, Sheridan’s). Conhaque e brandy são o mesmo líquido, mas o conhaque se denomina assim a partir da região de Cognac, na França. Os rótulos mais famosos são o Rêmy Martin e o Hennessy.

Várias dessas garrafas acham guarida na casa de Lea e Antônio Henrique Wanderley, na orla do Pina, zona sul do Recife. Os dois gostam de cozinhar, receber, comer e beber. Nas viagens, preocupam-se mais em seguir à risca o roteiro gastronômico e garimpar mais rótulos para as adegas do que comprar outros itens. “Cozinho, adoro ler, anoto as harmonizações que os chefs fazem nos restaurantes aonde vamos para depois tentar fazer aqui. A casa sempre viveu cheia de amigos nossos e dos nossos dois filhos”, diz Lea, auditora fiscal recém-aposentada que é fã do Sauternes, do Porto e de diversos licores.


Na Licoteria, são servidos licores artesanais

É de sua lavra um tuille de amêndoas (biscoito crocante que é levado ao forno), servido com sorvete de limão siciliano ou de vinho do Porto, acompanhado por uma redução do Porto (“bota uma garrafa no forno e deixa reduzir até a metade”). Para acompanhar, ele de novo, o Porto. “Fica uma delícia”, garante Lea. Difícil duvidar.

Suas descobertas transcendem fronteiras. “Como minha filha mora na França, sempre trazemos de lá o Pruneaux, que é da região de Bordeaux. As ameixas maceradas são engarrafadas dentro do álcool; você abre e come a sobremesa e toma o licor ao mesmo tempo. Uma delícia”, comenta Lea, que também oferece o vinho doce Tokaji, da Hungria, tão famoso em seu país, que figura até na letra do hino nacional (“mas agora mesmo só temos uma garrafa, é tão bom, que nunca dura muito”). Ela e o marido diversificam o cardápio de acordo com a ocasião: ora o desfecho é com Porto, ora com um tinto, ora com Moscatel de Setúbal e, às vezes, até com champanhe. “Champanhe ou espumante com sobremesa muito doce casa bem demais. Sempre tivemos a rotina de tomar um digestivo aqui, então gosto de pesquisar para achar outras combinações”, resume.

Foi uma tia de Lea, Maria do Socorro, que nela inoculou o gosto pela culinária. “Fui criada com minha tia fazendo licor de jenipapo”, recorda.

RECEITA DE VÓ
A mesma origem familiar lastreia a Licoteria Noctivagos, em Olinda, “a única do Brasil”, informa Fernando Guimarães, o seu Fernando. Sua avó, Maria de Lourdes Vasconcelos Guimarães, aprendeu com a sogra portuguesa e começou a fazer licores de jenipapo, pitanga e limão. “Ela deixava em álcool puro, comprado em um engenho de cana-de-açúcar, em recipientes de vidro. Passavam seis meses, um ano ali dentro. Hoje, cada licor passa 15 meses marinando”, conta. Há 13 verões, a Noctivagos abre de quinta a domingo, na esquina da 13 de Maio com São Bento, uma das mais animadas da Cidade Alta de Olinda. Com álcool de milho que manda vir dos Estados Unidos, seu Fernando e o sobrinho Orimar Ramos Neto produzem 150 litros de licor por mês, comercializados em 21 sabores, em doses, ou embalagens de 50ml, 150ml, 335ml, 500ml ou 750ml.


Dono de licoteria produz a partir de receitas de família

Os campeões de pedidos são os de café, rosas, leite, jenipapo e menta. Cada garrafa é obtida a partir de receita mantida sob sigilo. O mistério, segundo seu Fernando, é a chave do processo que caracteriza sua produção: “Não consigo tirar muitas garrafas de cada um. É algo artesanal mesmo, que vem desde o tempo da minha avó, que fazia porque gostava e para consumo da própria família”.

Os sabores de pitanga, cajá e tamarindo, frutas típicas do Nordeste, fazem a festa dos turistas que chegam lá, encantados com o digestivo. “Muitos passam aqui depois de almoçar nos restaurantes da Cidade Alta, compram para levar para casa, tiram fotos para mostrar para os amigos e depois voltam dizendo que as pessoas adoraram”, alegra-se ele, feliz por perpetuar uma tradição que, no seu caso, alia os laços de família a um hábito que virou praxe nacional. 

LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.
RAFAEL MEDEIROS, fotógrafo.

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