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Augusto Rodrigues: O repórter do traço

Chargista, que agora faria 100 anos, expressou sua opinião de maneira original e criativa, legando aos leitores um retrato em preto e branco do tempo em que viveu

TEXTO Laílson de Holanda Cavalcanti

01 de Dezembro de 2013

Charge com Stalin e Hitler foi uma das que trouxeram a opinião do artista sobre os líderes do conflito

Charge com Stalin e Hitler foi uma das que trouxeram a opinião do artista sobre os líderes do conflito

Imagem Arquivo Laílson de Holanda/Reprodução

Em um campo florido, um espantalho com a face do líder nazista Adolf Hitler balança ao vento enquanto é bicado por três pombas brancas, tendo como legenda a frase: “O espantalho desmoralizado”. A imagem, de 1942, é uma das muitas que o cartunista Augusto Rodrigues deixou registradas em sua carreira como chargista na Agência Meridional, grupo distribuidor de conteúdo dos Diários Associados de Assis Chateaubriand.

A importância de Augusto Rodrigues para o desenvolvimento das artes plásticas no Brasil é bastante conhecida, porém, sua contribuição como artista do humor gráfico é pouco mencionada e analisada, apesar dessa faceta do seu trabalho nada ficar a dever às suas obras voltadas para uma expressão estética mais aceita como expressão plástica.

Desde os 18 anos que o artista participava dos movimentos artísticos que se processavam no Recife e, aos 22 anos, fixou residência no Rio de Janeiro onde, de fato, realizou sua carreira profissional.

Iniciando-se na imprensa carioca no D. Casmurro, em poucos anos, Rodrigues tornou-se um dos nomes mais solicitados na imprensa da capital, fazendo charges, ilustrações e caricaturas para as revistas Vamos Ler, Fon-Fon, Diretrizes e também a mais importante de todas, a revista semanal O Cruzeiro, do Grupo Associados.

A censura à imprensa na época, promovida pela ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, limitava tremendamente a livre expressão do pensamento e, no início da Segunda Guerra Mundial, deixava claras as tendências políticas do regime brasileiro.

Charges favoráveis a Mussolini, publicadas originalmente no Popolo di Roma, eram republicadas na imprensa brasileira, principalmente em relação à invasão da Abissínia pelo exército fascista italiano, retratando de maneira racista e preconceituosa o líder africano Hailé Sélassié.


Critica ao francês Pierre Laval, que colaborou com os nazistas.
Imagem: Arquivo Laílson de Holanda/Reprodução

A partir de dezembro de 1941, com a entrada dos Estados Unidos da América no conflito mundial, e com a subsequente negociação com o governo federal para que o Brasil formasse aliança com o Bloco dos Aliados no ano seguinte, é que as charges brasileiras passaram a expressar uma visão de contestação à opressão nazifascista.

O humor gráfico tem como sua principal característica enfrentar o terror provocado pelos regimes de força através de uma visão crítica que provoca a reflexão e o riso. Tem sido assim desde os tempos de William Hogarth, na Inglaterra do século 18, e na França e no Brasil do século 19, com Honoré Daumier e Angelo Agostini.

CRÍTICA E CRIATIVIDADE
No Brasil do século 20, esse desassombro diante da ameaça nazista é muito bem-demonstrado pelo chargista Belmonte na imprensa paulista, e por Augusto Rodrigues, que tem seus desenhos distribuídos nacionalmente através da Agência Meridional, para diversos jornais.

Enquanto Belmonte procurava fazer um registro do desenrolar dos acontecimentos do combate mundial, quase que como um quadro a quadro da História, Rodrigues preocupava-se em dar uma opinião pessoal sobre os diferentes aspectos do conflito, ridicularizando com trabalhos contundentes e impiedosos os líderes do Eixo e aqueles que com eles compactuavam.

Suas charges traziam em si um fino e sutil humor que traduziam a qualidade crítica e criativa do autor, apresentando desenhos que se destacam dos seus contemporâneos pela forma modernista como foram feitos. Suas figuras e caricaturas são estilizações gráficas e interpretativas dos personagens visados, recriando-os à sua própria maneira.

Pierre Laval, por exemplo, colaboracionista francês que apoiou os nazistas na ocupação da França, é caricaturado por Augusto Rodrigues em uma charge de três tempos em que, no primeiro quadro, aparece ao lado de um soldado nazista que passeia com um cão bassê na coleira; no segundo quadro, Laval é o garçom que serve o mesmo cão como almoço para o nazista; e, no quadro final, Laval agora é o cachorro levado na coleira pelo nazista.

Na charge intitulada Voluntários de Vichy, o cartunista retrata novamente Laval, desta vez, acompanhado pelos líderes alemães Adolf Hitler e Hermann Göring, que, com armas nas mãos, mandam os soldados franceses lutar contra os aliados.


Olhar sobre a política “café com leite”, que buscava controlar a economia do país. 
Imagem: Arquivo Laílson de Holanda/Reprodução

Sua análise da posição do ditador espanhol Francisco Franco é feita de maneira mordaz, com o general escondendo uma foto do “Führer”, atrás, enquanto é observado pelos líderes aliados Winston Churchill e Franklin Roosevelt.

A contrapropaganda japonesa é satirizada pelo artista através do diálogo entre dois oficiais japoneses, com braçadeiras suásticas, em que o oficial mais graduado determina: “Escreva que dominamos na Birmânia”. Ao que o outro responde, espantado: “Mas não é verdade!”. E o primeiro conclui: “Que tem isso?”

Mas é o líder comunista Joseph Stalin que representa, para Augusto Rodrigues, o verdadeiro opositor ao perigo nazifascista, retratando-o como um gigante prestes a devorar o líder nazista ou um enorme boneco de neve que assusta o ditador alemão. Em outras charges, Stalin salta sobre Hitler e o imobiliza, ou usa o laço de uma forca para prender o governante germânico.

O cenário da guerra é um bom palco para Augusto Rodrigues provocar no leitor brasileiro a reflexão sobre os cerceamentos da liberdade promovidos pelos estados nazifascistas, sutilmente comparando-os à ditadura de Vargas no Brasil, sem, no entanto, incorrer numa afronta aberta ao regime brasileiro.

A derrota alemã pelas tropas aliadas e a rendição do Japão, após os ataques atômicos realizados pelos norte-americanos em Hiroshima e Nagasaki, fazem surgir um novo equilíbrio político, e as tropas expedicionárias brasileiras que retornam ao país questionam a manutenção do apoio a um governo cujo chefe, no comando do Brasil, assemelha-se aos ditadores europeus derrotados.

Com a deposição de Getúlio Vargas e a eleição do general Eurico Gaspar Dutra para presidente do Brasil, as charges de Augusto Rodrigues tomam um novo rumo, buscando opinar sobre a redemocratização do país e sobre a ciranda política dos novos partidos e novos líderes que surgem.



José Lins do Rego e Manuel Bandeira estão entre os seus caricaturados.
Imagem: Arquivo Laílson de Holanda/Reprodução

Com seu traço modernista, o cartunista retrata esses novos atores da cena política, deixando registradas as imagens de Nereu Ramos, Dutra, Getúlio Vargas, Adhemar de Barros, Plínio Salgado, João Mangabeira, Tenório Cavalcanti, Agamenon Magalhães e muitos outros.

AUTOCARICATURA
O próprio Augusto Rodrigues torna-se personagem das suas charges na figura do Repórter, uma autocaricatura em que se apresenta com o topete caído sobre a testa, um sorriso matreiro sob o fino bigode, a barba por fazer, um ar sempre desleixado e um eterno cigarro pendurado nos lábios. O personagem faz sugestões aos figurões da política que aparecem em diversas situações.

O texto de Rodrigues é bem- estruturado e criativo, mas seu traço é muito superior no conjunto do seu trabalho. O texto procura expressar mais claramente seu posicionamento político diante dos fatos, enquanto os desenhos ressaltam a sua visão dos personagens envolvidos.

Durante todo esse período, suas charges formam uma excelente fonte iconográfica para o acompanhamento e compreensão do desenrolar dos fatos políticos que culminam com a volta de Vargas ao poder em 1950.

O uso de trocadilhos em seus textos é muito explorado, como na charge onde o Repórter conversa com o marechal Dutra, perguntando ao presidente: “Então vossa excelência recusou o convite de Adhemar sobre a mesa redonda de conservação do solo?” Ao que o marechal responde: “Meu caro, o Adhemar não quer conservar o solo. Ele quer é ganhar terreno para a sucessão”.

O citado Adhemar aparece em uma charge vestido de garçom, servindo um café ao presidente Dutra, que diz: “Estou com a faca e o queijo na mão”. E o político paulista pergunta: “E que tal um cafezinho, excelência?”. Nessa síntese humorística, Rodrigues satiriza as conchamblanças políticas na articulação da política do café com leite entre Minas (queijo) e São Paulo (café), que buscavam controlar a política e a economia do país.


Artista dividia o tempo entre o ensino, o humor e as artes plásticas.
Foto: Arquivo Laílson de Holanda/Reprodução

Augusto Rodrigues coloca seus personagens em diferentes cenários, como um campo de futebol, onde Dutra faz embaixadas diante de Getúlio e Adhemar; ou um teatro, onde o mesmo Dutra rege um coral de todos os candidatos à sua sucessão.

Na charge No jogo da sucessão, o marechal Dutra aproxima-se de uma mesa na qual jogam cartas Adhemar de Barros e Nereu Ramos, e onde Getúlio Vargas – transformado em peru – está empoleirado. Abrindo os braços, Dutra declara: “Agora que tem peru no jogo, eu entro”.

Em 1951, com a posse de Vargas, que retorna à presidência pelo voto popular, Augusto Rodrigues mais uma vez se autorretrata numa charge, desenhando numa prancheta a caricatura do presidente recém-empossado, que tem atrás de si seu imenso guarda-costas, Gregório Fortunato.

O repórter, enquanto desenha, pergunta: “Posso trabalhar com liberdade, presidente?”, numa clara alusão à censura imposta à imprensa por Vargas durante o Estado Novo.

As novas situações políticas não são mais uma fonte de inspiração para Augusto Rodrigues, que passa a desenvolver sua linha de artista plástico, sem, no entanto, abandonar a caricatura, arte que ainda pratica por vários anos, retratando importantes figuras da cena intelectual e artística do país nos anos 1950 e 1960.

Sua representação de Dorival Caymmi numa roda de samba, em 1958, é de uma expressão plástica excelente, com as figuras que compõem o cenário expressas em traços extremamente modernos e perfeitamente compostos.

Di Cavalcanti, Carlos Drummond de Andrade, José Lins do Rego, Manuel Bandeira, todos foram imortalizados nos traços rápidos e precisos de Augusto Rodrigues.

Um artista que, em suas próprias palavras, acreditava “ser a caricatura instrumento direto para atingir fins políticos e humanos, ajudando a preservar a dignidade do homem e a liberdade da arte”. E que expressou sua opinião e seu talento de maneira original e criativa, deixando para os leitores do seu tempo e dos tempos futuros um retrato em preto e branco definido e claro dos tempos em que viveu. 

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