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Rock Santeiro: O escultor de boa conversa

Integrante da Oficina do Artesão Mestre Quincas, ele mantém inspiração e ritmo de trabalho até enquanto recepciona visitantes, com suas assertivas engajadas

TEXTO CARLOS EDUARDO AMARAL
FOTOS LEO CALDAS

01 de Novembro de 2013

Foto Leo Caldas

Reagir à depreciação durante a negociação com os lojistas. Essa foi o que motivou artesãos petrolinenses a se mobilizarem em defesa do valor artístico de suas obras, antes compradas por comerciantes a preços módicos para serem revendidas a apreciadores e colecionadores de todo o país por cifras vultosas. Como reação, portanto, foi fundada a Oficina do Artesão Mestre Quincas, em 1989, espaço que abriga ateliê, loja de artigos e depósito de matéria-prima, geridos pelos próprios artesãos.

Conforme conta Roque Gomes da Silva, mais conhecido como Rock Santeiro, duas entidades de classe estão estabelecidas na oficina: a Associação dos Artífices de Petrolina (Assape), que agrega os confeccionadores de peças em geral (em cerâmica, tecido, barro etc.) e possui cerca de 70 membros, e a Associação dos Escultores de Petrolina (Assespe), exclusiva para essa categoria, com apenas 15 integrantes. Tanto escultores quanto artífices, por sinal, até hoje aguardam que a regulamentação do ofício de artesão seja aprovada no Congresso Nacional.

Depois das perguntas quebra-gelo, uma pausa para um cigarro serve de senha para uma aproximação mais pessoal com Rock Santeiro, que acabou nos persuadindo a mudar o objeto da reportagem para ele próprio. Após puxar-nos uma cadeira, para que ficasse próxima à área onde trabalhava sentado no chão desbastando toras de madeira – ou melhor, dando a elas as feições que já lhe estão claras na cabeça, como fez questão de frisar – Rock começou a perfilar suas teses artísticas, adicionando outras informações sobre a Oficina do Artesão, local no qual construiu toda a sua carreira.

As paredes do ateliê – aberto aos associados da Assape e da Assespe, mas que só comporta nove pessoas, que residem mais próximos ao local – traduzem o pensamento do santeiro: tomadas por fotos e certificados até certa altura, registram num canto à parte, perto ao teto, frases de estímulo, rudimentos sobre o fazer artístico e lendas sobre as carrancas. Por falar nelas, vale dizer que não reinam isoladas. Pelo contrário, a arte sacra tem boa acolhida entre todos os artesãos que encontramos durante nossa visita e parece satisfazê-los mais existencialmente, ao passo que as citadas carrancas são esculpidas segundo uma fórmula definida, sem segredos. O próprio Rock atesta que era assim que todos encaravam as duas facetas.


Entre as peças produzidas no local estão variações da carranca

Ao nosso redor, por exemplo, Karina era a única mulher do grupo que talhava sucessivas carrancas, de todos os tamanhos. Noutro canto, Biu, invocou o nome de batismo – Gabriel – para justificar sua inclinação: “Trabalhei 10 anos com carrancas, mas senti que devia me reciclar e aí me voltei para o Barroco”. Na edição 117 da Continente, de setembro de 2010, já havíamos apresentado a vocação dos artesãos interioranos para a arte sacra neobarroca em madeira, na cidade de Ibimirim, e agora constatamos como ela se dá também em Petrolina.

Não foram muito além nossas novas tentativas de diálogo após uma pausa para um novo cigarro e uma circulada no ateliê: loquaz, só Rock, que joga aberto quando algo lhe incomoda, como bom artista e sertanejo. “Não é pra fins políticos não, né? Não tenho partido, candidato, nada. O artista tem de ser do povo”, disparou. Certeza adquirida, o escultor tenta localizar um exemplar da Continente Turismo n° 3, de 2005, em que havia sido mencionado, mas a tentativa foi frustrada. Voltamos, então, a conversar sentados, pois ele tinha um São Jorge a concluir.

Bem informado, o santeiro falou de sua expectativa sobre a Central do Artesanato de Pernambuco, inaugurada em setembro de 2012, no Recife Antigo: “O artesão que não tem onde escoar sua produção terá uma boa oportunidade nesse local”. Ele cita uma experiência, comum a seus colegas de ofício, que o fez engajar-se junto a eles e defender os direitos da classe profissional. Em tal episódio, Rock voltava para casa com uma de suas peças debaixo do braço, após ser-lhe oferecido um preço irrisório por ela, então um anjo teria dito que ele nunca mais comercializaria seu trabalho com lojistas. Tais narrativas fantásticas fazem parte da personalidade dos bons contadores de história, Rock não precisa mais de intermediários. “Mas muitos artesãos ainda não conhecem essa liberdade”, acrescenta.

PASSO NATURAL
Natural de Afrânio, cidade mais ocidental de Pernambuco e vizinha ao Piauí, Rock Santeiro chegou bem jovem a Petrolina e lá conheceu a arte dos mestres carranqueiros aos 10 anos de idade. Para tornar-se escultor de santos, foi um passo natural: detalhando sobre o que nos dissera uma hora antes, reitera que a escultura de carrancas é “um mundo pequeno” e por isso o ofício de santeiro lhe proporcionou mais liberdade, considerando que mesmo na hagiografia popular – isto é, na lista de santos conhecidos pelo povo – a variedade de representações é ampla, em contraste com as monotemáticas figuras lendárias do Rio São Francisco.


O espaço da associação abriga ateliê, loja e depósito de material e é gerido pelos artesãos

Rock, que revezava sua atenção entre São Jorge e o Dragão sob a mira da lança do santo, confessa ainda que não está dando conta das encomendas e, saindo do prosaico tema, volta a divagar com a mesma oratória, clara e resoluta. Defende que um artesão e um artista se diferem em poucos pontos e externa um sentimento comum a ambos: “É uma profissão tão gostosa, mas tem um lado negativo. Você pode ter alguns ajudantes para lhe auxiliar com o material bruto, mas na hora de esculpir é sozinho, porque parte de você. Pelo menos está fazendo o que gosta”. E as preocupações ecológicas não são ignoradas pelos artesãos com quem divide o ateliê: segundo Rock Santeiro, seus colegas que lidam com madeira (há os que utilizam pedra-sabão e os que pintam tecidos) só trabalham com árvores de áreas tombadas pelo governo e estocadas na área externa da oficina.

O tino de Rock para descobrir novos talentos em nada difere dos renascentistas: “A madeira já tem meio caminho andado, você só tem de retirar os excessos, pois a peça já está lá”. O teste prático que ele aplica aos novos aprendizes é o de esculpir um cachorro com estilete a partir de um sabonete. Daí, ele pega uma castanha de caju e, mediante oito pequenas incisões nela, dá-lhe as feições de um macaco, sem tirar uma única lasca, e nos mostra o que espera que os novatos revelem: aptidão.

Como exemplo de talentos descobertos na Oficina do Artesão Mestre Quincas, ele aponta os trabalhos de Pintor, grafiteiro que passou à arte sacra ao descobrir a vocação por lá, e Luz Divina, cega de nascença que ficou conhecida por talhar golfinhos – animal que sequer existe no São Francisco, para ser tomado como referência – mas que, inesperadamente, deixou a função após converter-se a uma igreja evangélica.

Chamado vez ou outra a ministrar aulas pelo estado, o escultor não esconde que prefere prestar orientação individual. “Meus alunos são exclusivos. Não adianta me botar 20 alunos num curso ou oficina para me ver: basta um ao meu lado, com 100% de atenção. Assim, ele vai trabalhar de verdade, não vai copiar o que faço”. Rock Santeiro, que eventualmente viaja ao Recife para vender seus trabalhos e já esteve na Argentina e no Uruguai, parece só guardar uma queixa: “Se tem um mundo que não vou conhecer é o dos gregos. Queria estar lá só pra sentir a energia daquela perfeição clássica”. 

CARLOS EDUARDO AMARAL, jornalista, crítico musical e mestre em Comunicação pela UFPE.
LEO CALDAS, fotógrafo.

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