CONTINENTE Ao comentar sobre a dificuldade de diferenciar gêneros, gostaria que você opinasse sobre a relação entre a videoarte e o cinema experimental.
YANN BEAUVAIS A oposição não é forte como em 1980. A diferença era o suporte entre a película, do cinema, e a fita magnética, do vídeo. O vídeo era a forma mais imediata de fazer filme. O foco não era analisar os mecanismos cinematográficos, era algo mais voltado ao mundo das galerias. Hoje, com o computador e o digital, tudo pode ser reunido, incorporando a videoarte e o experimental. As causas dos dois são similares: criticar, pensar, dar a voz. O uso da película está mais restrito, ainda cultivado pelos que têm uma fascinação pela produção de sentidos do cinema, como na Hollywood independente.
CONTINENTE O tempo nesse cinema não é o mesmo dos filmes convencionais. Qual a relação entre o tempo e o cinema experimental?
YANN BEAUVAIS Existem, no mínimo, três tempos. O tempo da projeção – o qual o público vive –, o de gravação e edição das imagens, e o tempo que a imagem é absorvida pelo espectador. Diferente do cinema tradicional, não há a necessidade de elucidar uma história, resolvê-la. Há, às vezes, uma narrativa que trabalha com o espontâneo em relação a uma dança ou uma música, como nos videoclipes. Podemos sobrepor os tempos e deixar as regras de lado, colocando o espectador em lugares inesperados. Muitos trabalhos feitos durante os anos 1970 privilegiavam o tempo específico do evento, como nos trabalhos de Hangjun Lee. Andy Warhol trabalhava expandindo o tempo, Paul Sharits contraía ou condensava.
CONTINENTE Na sua opinião, essa arte encara preconceito?
YANN BEAUVAIS Esse cinema tem sido visto como uma prática marginal, devido ao aspecto subversivo, à pluralidade de formas como sua exposição pode ser feita. Foi menosprezado tanto pelo cinema clássico quanto pelo mercado de arte. Até os anos 1990, filmes experimentais eram tidos como uma prática artística burguesa e formalista. Desqualificada, porque lidava com a observação das ferramentas usadas para fazer o filme, logo, não fazia parte do reino das artes. Isso privilegiava a videoarte contra o filme experimental. Hoje, tanto o campo da arte quanto a indústria do cinema incorporam seus próprios valores ao cinema experimental, produzindo novas interpretações.
Andy Warhol. Foto: Reprodução
CONTINENTE Normalmente, alguns veem cinema experimental como uma arte restrita, “para quem entende do assunto”. Por que isso acontece?
YANN BEAUVAIS Primeiro, se uma prática não é dominante, não quer dizer que é elitista. É uma prática singular: um cinema de oposição, resistência e pesquisa. Pesquisar com frequência significa se opor ao comum, ao dominante e renovar o pensamento. Espaços para a investigação são mais do que uma necessidade para a sociedade.
CONTINENTE Ainda nesse mesmo raciocínio, à primeira vista, o experimental e suas vertentes parecem caóticos. Existe lugar para pensamentos organizados nessa arte?
YANN BEAUVAIS Estamos condicionados a certo tipo de filme, tornando difícil o olhar ao diferente. Se não conseguimos nos projetar no mundo retratado pelo evento a que assistimos, sentimo-nos automaticamente perdidos. Filmes podem ser uma experiência de pensamento produzida com elementos com os quais estão em jogo: o negativo do filme, a tela, o projetor, o espaço. Por exemplo, quando a cineasta Maya Deren tenta seguir anacronicamente os sonhos como algo organizado em seus filmes. Isso pode ser feito a partir de uma experiência audiovisual organizada de acordo com a melodia, mas o fato é que nunca é obrigatório que eles estejam uniformes numa mesma narrativa.
CONTINENTE Com quanto de técnica e de poesia podemos nos deparar no cinema experimental?
YANN BEAUVAIS Para muitos cineastas experimentais e videoartistas, a questão da tecnologia é importante porque estimula nosso modo de perceber as coisas. A poética é enfatizada quando a forma de filmar tem a ver com a expressão de uma visão individual. Nesses casos, o lirismo é essencial. Experiências mais recentes dessa tendência são voltadas à preocupação com as minorias e o gênero sexual, que podem ser vistos nas obras de Richard Fung e Isaac Julien. A tecnologia tem a ver justamente com a produção de novos significados. No cinema tradicional, existe diferenciação clara do que é tecnologia e do que não é, mas no nosso campo e na videoarte, o processo, as ferramentas não estão escondidos, mas colocados à mostra e são parte do discurso, seja ele poético ou não.
CONTINENTE Como podemos descrever a interação desse cinema com o público?
YANN BEAUVAIS Para um filme tradicional ou programa de TV, o lugar da audiência é cativo e temos que reagir ao estímulo da “história” retratada. O fazer do cinema experimental é essencial porque tem desafiado essa condição, dando à audiência um espaço para que ela possa se pensar e analisar o que está acontecendo ao transformar a experiência de assistir em atividade e divagação. Por exemplo, o meu filme Tu, sempre, que aborda a problemática da aids, nos faz encarar uma tela rotativa com um espelho de um dos lados, os textos invadem o espaço em que o espelho está, e pessoas que passam por ali acabam se tornando agentes do texto. Nessa instalação, você é potencialmente alguém carregando informações da aids enquanto vive o trabalho.
Foto: Divulgação
CONTINENTE Qual a influência das plataformas digitais na experimentação cinematográfica?
YANN BEAUVAIS Como o cineasta Malcolm Le Grice e o teórico Lev Manovich apontam, a chegada do digital transformou a experimentação do filme e do vídeo. Pode-se dizer que a maioria dos filmes experimentais funcionou desconstruindo o discurso para revelar o mecanismo. Há, agora, com as plataformas digitais, maior facilidade nas possibilidades da multiprojeção, em tornar acontecimentos simultâneos e em espacializar a imagem. É possível imaginar um cinema ao vivo, no qual se usa a chamada RAM (memória de acesso aleatório de sistemas digitais) para produzir, a cada performance, um evento fílmico único para o cineasta e o público.
CONTINENTE O estudioso Gene Youngblood fala do conceito de um cinema experimental chamado “expandido”, que, diferentemente do drama comercial, não tem a necessidade de “contar uma história”. Muitos cineastas como Le Grice defendem essa prática. O que o cinema expandido quer nos contar?
YANN BEAUVAIS É o modo de pensar e fazer um filme que transcende o modo clássico teatral de vê-lo e indaga o limite do que seria o cinema. Um jeito de ligar a sétima arte a outras práticas, como a coreografia. Ou seja, não é um campo único de produção. Os situacionistas, nos anos 1950, já ofereciam experiências inovadoras para um cinema que chamava para contracenar com o filme, ao vivo, a audiência e os performers. É a tentativa de produzir uma sinestesia real.
CONTINENTE O que lhe chamou a atenção para o Brasil, no cinema experimental?
YANN BEAUVAIS O que me trouxe ao país foi a possibilidade de mostrar experiências desconhecidas por aqui. O cinema experimental não é muito forte no Brasil hoje, como já foi com o movimento super-8, nos anos 1970. Algumas figuras importantes emergiram, como José Agrippino de Paula, Arthur Omar, Carlos Adriano. Uma marca do Brasil é que o vídeo sempre foi um campo importante de questionamento, oscilando entre o filme e o vídeo, cinema e galeria. De maneira que, no país, o filme experimental se tornou um elemento diretamente conectado com o cenário artístico contemporâneo.
CONTINENTE Você acredita que algum dia esse cinema poderá ser massificado, comercializado?
YANN BEAUVAIS Ele vem se tornando um importante elemento de valorização. Vários cineastas tradicionais e artistas visuais estão reclamando o rótulo do filme experimental para dar uma aura de importância às suas obras. Há duas décadas se tornou uma questão acadêmica, e assim foi depois incorporado à história do cinema. Tornou-se uma categoria em que o cineasta tem mais liberdade formal. Ele encontra não somente interesse na universidade, mas a nostalgia o torna um objeto de fetiche.
CLARISSA MACAU, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.