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Montagem: Quando duas imagens são três

A complexa técnica de juntar o quebra-cabeça de cenas é o principal pilar de um filme, mas sua importância quase sempre passa despercebida pelo grande público de cinema

TEXTO Marcelo Pedroso

01 de Novembro de 2013

Imagem Montagem a partir de fotos de divulgação

Muitos são os teóricos e as teorias da montagem. Entram frequentemente em choque, filiam-se a espectros ideológicos antagônicos, movidos por fundamentos estéticos, políticos, os mais diversos. Em meio aos arames farpados dessas trincheiras, vem-nos de Jean-Luc Godard, numa conversa que manteve com Régis Debray para a Cahiers du Cinéma, uma sucinta consideração sobre este que é um dos princípios elementares do cinema: “Não há imagem, há imagens. E há, sim, uma certa forma de organização das imagens: sempre que há duas, há três. É o fundamento do cinema”, afirmou o realizador francês, numa tradução livre.

É justamente essa terceira imagem de Godard que nos interessa: a imagem que nasce quando duas outras se juntam. Pois não se trata propriamente de uma imagem – ou, ao menos, não de uma imagem com dimensão material, que tenha corpo físico no mundo como as duas anteriores a que ele se referiu. Uma imagem mental, então? Talvez, mas poderíamos falar também de um efeito de imagem: da terceira imagem enquanto elemento intangível que não vemos objetivamente, mas que, de alguma forma, se faz ver.

Trata-se de descortinar, via Godard, o princípio propriamente estético da montagem, ligado à nossa faculdade de perceber, de sentir. Pois é somente dessa forma que nos é dada a possibilidade de enxergar a terceira imagem, aquela que nasce da colisão, como num choque entre partículas.

Assim, Béla Balázs (1930) se refere à montagem como um artifício “graças ao qual apreendemos coisas que as imagens não mostram”. De seu lado, Jean Mitry (1963) fala de uma “associação, arbitrária ou não, de duas imagens que, relacionadas uma com a outra, determinam na consciência que as percebe uma ideia, uma emoção, um sentimento estranho a cada uma delas isoladamente”.

Esse sentimento estranho a cada uma das imagens isoladamente guarda ligação direta com o pressuposto da terceira imagem godardiana. Refere-se também a um entendimento de montagem que começou a ser posto em prática – e concomitantemente teorizado – por cineastas e pensadores da vanguarda russa, muito atuantes na década de 1920. Podemos observá-lo, por exemplo, num dos mais famosos experimentos de montagem, que resultou no chamado “efeito Kuleshov”.

O experimento consistia numa sucessão simples de cortes. Uma mesma imagem, em que se via o rosto de um ator com expressão relativamente neutra – ou talvez simplesmente curioso, interessado – era alternada com outros planos: o de um caixão com uma criança, o de um prato de sopa e o de uma mulher bonita deitada sobre um divã. Apesar de o quadro do rosto do ator permanecer rigorosamente inalterado (tratava-se efetivamente do mesmo take, com a mesma duração), sempre que ele era posto em contato com outra imagem, o rosto parecia se transfigurar e adotar uma expressão ligada à situação hipoteticamente observada pelo ator.

Dessa forma, quando o rosto do ator olhava para o prato de sopa, tinha-se a impressão de que ele apresentava uma expressão de fome. Assim como, ao olhar para o caixão da criança, parecia se entristecer e, finalmente, demonstrava desejo ao observar a mulher deitada no divã.

O experimento, que foi conduzido pelo cineasta Lev Kuleshov, baseia-se numa sintaxe elementar da montagem, que é a noção do plano subjetivo confrontado ao reaction shot. Trata-se de mostrar uma imagem em que assumimos o ponto de vista do personagem (o tal plano subjetivo: no caso aqui uma criança morta, um prato de comida e uma mulher sensual) e, em seguida, cortar para a imagem do personagem que observa aquela cena ou objeto (o reaction shot).

O que o cineasta russo conseguiu demonstrar é que as imagens, quando postas em contato, têm a curiosa propriedade de se contaminarem mutuamente. Significa que são capazes de criar uma zona de interseção que não está localizada na materialidade da tela, mas na percepção que temos delas. Assim, a imagem deixa uma espécie de rastro sobre a outra, untando-a de um tipo particular de verniz que transforma e afeta sensivelmente sua natureza.

QUASE ALQUIMIA
Discorrendo sobre montagem, o cineasta Robert Bresson refere-se justamente a isso. Ele fala de uma arte graças à qual “uma imagem se transforma ao contato de outra, como uma cor quando em contato com outras cores”. Pois parece tratar-se bem de um processo quase alquímico de transformação. Como um pintor que seleciona as matrizes cromáticas que vai misturar para obter o exato tom de cor que deseja, o montador organiza a intensidade das imagens que manipula, justapondo-as, separando-as, confrontando-as.

São muitas, aliás, as possibilidades de analogia da montagem com outras artes. Serguei Eisenstein, cineasta notável não apenas por seus filmes, mas também por suas reflexões teóricas sobre o cinema, desenvolveu um protótipo de classificação dos tipos de montagem segundo um arcabouço de parâmetros quase inteiramente baseados em princípios musicais. Assim, ele distingue, por exemplo, a montagem rítmica da tonal, descrevendo modos de se combinar fragmentos de filmes orientado pela percepção da narrativa fílmica com base na estrutura de uma composição musical, levando em conta aspectos como ritmo e tom, próprios da música, que são transportados para as imagens.

Eisenstein, um dos defensores da proeminência da montagem sobre outros recursos do cinema, foi pródigo em criar analogias para descrever o método de associação de imagens dentro de um filme. Em outra delas, ele compara a montagem a um motor movido à explosão: assim como os choques entre as partículas de combustível provocam a expansão do pistão, que faz girar o eixo e que, por sua vez, dá movimento ao carro, seria o choque entre as imagens no interior da narrativa que impulsionaria o funcionamento de todo o filme.

Acontece que, no fluxo do cinema, em que há centenas ou às vezes até milhares de cortes e de imagens, nós, muitas vezes, não percebemos racionalmente a montagem. Embora ela possa ser considerada, ainda segundo Eisenstein, o “nervo” do filme, muitas vezes se deixa – até intencionalmente – apagar, tornando-se invisível. Isso acontece, na verdade, não apenas com a montagem, mas também com outros elementos que compõem a narrativa fílmica.

Existe, por exemplo, um postulado comumente evocado segundo o qual uma trilha sonora boa é uma trilha que não escutamos. Segundo essa atitude, uma trilha bem- resolvida deveria estar tão organicamente associada ao filme, tão harmoniosamente cúmplice da narrativa e compondo de maneira tão eficiente as atmosferas dos diferentes momentos, em diálogo com os personagens e as situações, que nós não a notaríamos. Ou, dizendo de outra forma, que se acontecesse de chegarmos a um estado perceptivo em que, de tão absorvidos pelo filme, não notássemos a trilha sonora, isso significaria que ela teria cumprido da forma mais bem-acabada seu papel dentro da narrativa, apagando-se em favor do filme.

Seria esse mesmo princípio aplicável à montagem? Não gosto muito de pensar assim – aliás, nem para uma coisa nem para outra. Entendo a reivindicação da “invisibilidade” dos recursos do cinema – seja a música, a montagem, fotografia, atuação etc. – como uma tentativa de combater excessos indesejáveis – e até bastante comuns – em que os elementos do filme parecem brigar entre si, querendo se sobrepor aos demais, chamando mais a atenção. Nesse sentido, torna-se algo bastante apropriado e até desafiador conceber que os elementos podem, justamente ao desaparecer, atingir um regime de perfeição.

Porém, de um modo geral, quando não se trata de uma disputa ruidosa, parece-me aceitável que trilha sonora, montagem ou qualquer outro recurso ganhe mais relevo em determinado momento do filme, contanto que aquilo faça sentido para a narrativa. Um pouco como, pegando carona nas metáforas musicais de Eisenstein, uma orquestra sinfônica executa uma composição alternando momentos em que uns ou outros instrumentos protagonizam calculadamente cada trecho do conjunto.

Mas o curioso é que o debate específico sobre uma montagem mais ou menos “invisível” se liga diretamente a uma dicotomia que marcou os estudos sobre cinema e se intensificou nos anos 1970, que se refere à oposição da opacidade e da transparência. As duas lógicas se enfrentam justamente numa concepção de representação mais ou menos declarada ou evidente – e a montagem atua fortemente na construção desses efeitos.

No cinema que se reconhece enquanto artifício, enquanto discurso e construção assumidamente ideológica, o da opacidade, a montagem tende a se destacar, a encampar o conflito, permitindo-se manobras de descontinuidades, de ruptura, reconhecendo-se – e se mostrando –, abertamente, como instância reguladora e organizadora das imagens e sons. Bem diferente do cinema da transparência, aquele do ilusionismo, que se coloca como uma espécie de extensão não mediada do mundo, com o qual reivindica uma continuidade pura e natural: nele, a montagem precisa ser discreta, quase oculta.

Ver e dar a ver, mostrar e se mostrar. São equações essenciais ao cinema, esse instrumento permanente de negociação de visibilidades que tem na montagem um de seus grandes aliados. E Godard não diz outra coisa: “a montagem é aquilo que faz ver, aquilo que torna a imagem dialética”, afirma, ainda em sua conversa com Debray.

MONTO, LOGO EXISTO
Recife e Brasília sediaram, neste segundo semestre, a Mostra de Cinema de Montagem: uma preciosa seleção de filmes e debates que motivou algumas das reflexões trazidas nesta matéria. O evento foi organizado pela edt. – Associação de Profissionais de Edição Audiovisual.

Fundada no Rio de Janeiro, a entidade é uma iniciativa voltada para a representação dos interesses da categoria, principalmente ligados à melhoria das condições de trabalho, e já conta com mais de 170 associados.

No Recife, uma iniciativa semelhante começou a tomar corpo há cerca de dois anos, mas ainda não resultou na formalização de uma entidade. O grupo pretende fundar uma entidade semelhante à edt. do Rio.

Em sintonia com o esforço dos montadores pernambucanos de se agrupar numa representação, convidamos profissionais para falar sobre sua atividade.



“Durante a filmagem de Cinema, aspirinas e urubus, Marcelo Gomes me chamou para a locação, no interior do sertão paraibano, me trancou num quarto de hotel e me fez assistir a 28 horas de material bruto. Depois de algumas horas, nas quais eu só tinha visto cenas de interior do caminhão, ele queria saber se o filme montava. Fiquei insegura, mas disse que sim, o filme montava. Algum jeito haveria de ter. Lembro que, na ilha de edição, ficamos procurando o início do filme durante muito tempo. Experimentamos várias coisas. Quando o início finalmente apareceu, junto com a música, a impressão era de que ele sempre esteve ali, que não podia ser de outra forma, era parte orgânica do filme. Mas, por algumas semanas, o plano inicial tinha sido descartado e o filme o chamou de volta.”
KAREN HARLEY, sobre Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes, 2005)

“A primeira sequência de Tchau e bênção se encerra com um plano muito próximo do homem tomando banho (plano 1). Ele está imóvel e deixa a água cair sobre o corpo. A segunda se inicia com o plano também fechado de uma roda de carro em movimento (plano 2). Se, no plano 1, o homem está virado para a esquerda, no plano 2, a roda em movimento corre para a direita: o carro está a caminho do homem. O corte seco sugere um encontro nada agradável: o som de água caindo dá lugar ao do pneu sobre o asfalto e os sons da cidade. Tentando traduzir esse corte para o português: esse homem está se preparando para um conflito duro. É um conflito inglório e implacável, e é apenas uma questão de tempo para que ele o encare. A natureza do conflito será esclarecida logo a seguir, numa escalada de informações em que cada novo corte terá sua função.”
DANIEL BANDEIRA, sobre Tchau e bênção, que dirigiu e montou em 2009


“O material bruto do Acercadacana era cheio de planos longos, em que o inesperado sempre aparecia, ‘intensificando’ a imagem do documentário. Em um desses takes, eu e Felipe Peres estávamos com uma grande dúvida: como e onde cortar a sequência, um embate entre dona Francisca e os seguranças da usina. Assistimos várias vezes e decidimos o momento ideal: dona Francisca perguntando onde estava a imagem, com os vigias apontando armas de fogo, que registrava as ameaças que ela vinha sofrendo. Pronto! Daí, cortamos e abrimos uma sequência que indicava a última escala do isolamento vivido por aquela senhora, em uma casa rodeada por canaviais: um take em que até o céu, única informação na imagem que conseguimos ver por cima da barreira de cana, não parece apontar para um novo horizonte.”
PAULO SANO, sobre Acercadacana (Felipe Peres Calheiros, 2010)


“Desde a primeira vez que vi o material, senti a necessidade de juntar esses planos. Sérgio, empregado que mora na casa de uma família e que não vê o filho faz anos, não esconde a sua ansiedade com a proximidade do Natal. Nós vemos a família da patroa pulando em volta do nosso personagem, e cortamos para Sérgio, comendo em pé, fora da mesa da família. Não suportando a pressão da câmera filmada pela adolescente, ele sai pra tentar um pouco de privacidade no quintal. A justaposição evidencia uma falsa esperança de felicidade através do afeto, para a realidade dura de não pertencer àquela família. Esse corte representa bem a montagem de Doméstica, em que parte da nossa experiência afetiva pessoal nos faz rir das excentricidades familiares, mas é desmascarada pela consciência do poder de quem segura a câmera. E essa justaposição de emoções, ao invés de nos prender no filme, nos faz refletir sobre o que vemos decorrer na tela.”
EDUARDO SERRANO, sobre Doméstica (Gabriel Mascaro, 2012)


“No curso de Artes Cênicas aprendi a reconhecer as sutilezas no trabalho do ator, não por simples ‘achismo intuitivo’, mas fundamentado em Stanislavski e seus pares. Somente quando estive em um set de filmagem pela primeira vez, entendi que não era ali o meu lugar. Eram muitos músicos e instrumentos para este não maestro. No jargão do teatro, quando um espetáculo vai ser realizado, diz-se que vai se montar uma peça. Encontrei aí o elo que me fez estar hoje montador de filmes. Por isso exerço meu ofício defendendo com afinco a melhor atuação. Por exemplo, no filme Quinha, escolhemos usar um plano no qual o foco está doce, porque temos certeza de que esse é o melhor da atriz. Não me incomoda se o movimento da câmera não está retilíneo, linear, uniforme, desde que o ator esteja orgânico e visceral. O público deseja crer. E é para o deleite deste, no qual me incluo, que trabalho.”
JOÃO MARIA, sobre Quinha (Caroline Oliveira, 2013) 

MARCELO PEDROSO, cineasta, membro da Símio Filmes e mestrando em Cinema pela UFPE.

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