O ponto central da argumentação do crítico é simples, apesar de polêmico: em certo momento de sua trajetória literária, Machado foi obrigado a rever profundamente os valores éticos e estéticos que orientavam seu ofício de escritor, refundando assim sua literatura a partir de um nível de exigência artístico-intelectual muito superior ao que vinha realizando. O episódio desencadeador de tal transformação – e esta é a hipótese central de João Cezar – teria sido o recrudescimento da rivalidade literária com o português Eça de Queirós, notadamente após o impacto causado por O primo Basílio, publicado em 1878. Machado escreveu duras críticas a respeito da obra, com condenações de ordem estética (estrutural) e moral. O curioso, mostra João Cezar, é que o tipo de reproche feito pelo escritor brasileiro caberia perfeitamente a suas próprias obras futuras, de Memórias póstumas de Brás Cubas (publicado inicialmente como folhetim durante o ano de 1880) em diante.
Sobre a hipótese da transformação através da rivalidade literária, o autor do ensaio esclarece que “Não se trata de questão ‘psicológica’, mas de insatisfação do autor com sua obra; dilema agravado pelo aparecimento do jovem romancista português”. E enfatiza que “em nenhuma circunstância considero o surgimento do romance queirosiano a causa da metamorfose machadiana. Não se trata de fenômeno simples, passível de explicação unívoca, mas de processo de grande complexidade, razão de ser do escritor Machado de Assis”. O fato é que a argumentação do crítico é muito bem-tecida e legitimada através dos trechos de romances, contos, poemas e artigos críticos do próprio Machado, estrategicamente selecionados e encadeados.
O caráter conservador, tradicionalista, excessivamente prudente e convencional do “Machadinho” pré-1980 (o crítico de Eça e autor de Helena) é uma e outra vez cotejado com a escrita do Machado maduro, criador de personagens moralmente ambíguos e psicologicamente complexos como Capitu e Bento Santiago. Dessa maneira, o momento preciso da superação de uma estética engessada e normativa e de um moralismo radical e paralisante vai se tornando cada vez mais claro para nós leitores. João Cezar observa que há, tematicamente, muitas coincidências entre obras das duas “fases”, mas ressalta a radical mudança no tratamento literário dado aos assuntos. Sobre o tema do adultério, por exemplo, que aparece em diversas obras de ambos os períodos, o que mudaria de fato é a visão artística do escritor ao lidar com o assunto: “Em lugar da perspectiva do juiz severo, principia a entrar em cena o observador arguto da instabilidade radical das relações humanas”.
A hipótese de que Machado teria conscientemente adotado uma poética da emulação, um “resgate moderno de práticas retóricas progressivamente abandonadas depois do advento do Romantismo”, é também ponto fundamental no desenvolvimento da argumentação de João Cezar de Castro Rocha. O crítico apresenta a técnica de emulação como “critério de leitura crítica e de escrita inventiva”. Não seria, portanto, simplesmente uma mera repetição, mas a invenção e criação de algo novo a partir de modelos canônicos.
Com sua “explicação alternativa” para o fenômeno da radical mudança na arte de Machado de Assis, João Cezar não propõe um modelo totalizante e peremptório de exegese. Ele reconhece, de antemão, o caráter complexo do tema e trata de apresentar novas perspectivas para a sua compreensão.
EDUARDO CESAR MAIA, jornalista, crítico literário, professor universitário, mestre e doutor em Teoria Literária.