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Machado de Assis: Hipóteses para uma metamorfose literária

Em seu mais novo livro, o crítico João Cezar de Castro Rocha fornece subsídios para uma melhor compreensão da impressionante produção da fase madura do autor

TEXTO Eduardo Cesar Maia

01 de Novembro de 2013

Machado de Assis

Machado de Assis

Foto Reprodução

A mais recente obra do crítico e professor de literatura João Cezar de Castro Rocha merece especial atenção por (pelo menos) dois grandes motivos. Em primeiro lugar, Machado de Assis: por uma poética da emulação (Editora Civilização Brasileira) contribui de maneira instigante com um dos debates hermenêuticos mais difíceis e renitentes da literatura brasileira: a conversão do “Machadinho”, autor de obras convencionais e apenas medianas como A mão e a luva, Iaiá Garcia ou Ressurreição, no mais importante e influente escritor brasileiro de seu tempo (e talvez de todos os tempos). Por outro lado, o livro é também uma contribuição à crítica brasileira, num momento importante de redefinição de seus valores, tanto no âmbito acadêmico quanto no jornalístico. Nesta breve resenha, proponho-me a apresentar algumas questões desenvolvidas pelo crítico, embora consciente de que minha perspectiva aqui é limitada diante de obra tão minuciosa e abrangente.

Já em sua Introdução, o autor do livro expõe sem rodeios os objetivos centrais do longo ensaio crítico que irá desenvolver adiante: “Oferecer uma explicação alternativa a um dos dilemas centrais da crítica literária brasileira: a ‘crise dos 40 anos’, vivida por Machado de Assis entre 1878 e 1880, cujo resultado é a escrita de Memórias póstumas de Brás Cubas”, e a partir disso fornecer subsídios e hipóteses para uma melhor compreensão da impressionante produção literária da fase madura do autor.

Para tal, João Cezar adota um método de trabalho que estrategicamente lhe garante um espaço de maior liberdade intelectual e estilística diante do peso que poderia ser a enorme fortuna crítica machadiana produzida até hoje (ainda que, no fim das contas, fique claro, através das epígrafes de cada capítulo, que ele não prescindiu dela em nenhum momento). E qual método seria esse? Basicamente, a leitura meticulosa e cruzada de toda a obra do Bruxo do Cosme Velho, estabelecendo, a partir daí, comparações, analogias, oposições, ambiguidades... A tentativa é, portanto, a de “mapear o sistema literário de Machado de Assis” a partir do retorno efetivo ao texto do escritor, realizando uma “descrição densa”.

MACHADO X EÇA
O ponto central da argumentação do crítico é simples, apesar de polêmico: em certo momento de sua trajetória literária, Machado foi obrigado a rever profundamente os valores éticos e estéticos que orientavam seu ofício de escritor, refundando assim sua literatura a partir de um nível de exigência artístico-intelectual muito superior ao que vinha realizando. O episódio desencadeador de tal transformação – e esta é a hipótese central de João Cezar – teria sido o recrudescimento da rivalidade literária com o português Eça de Queirós, notadamente após o impacto causado por O primo Basílio, publicado em 1878. Machado escreveu duras críticas a respeito da obra, com condenações de ordem estética (estrutural) e moral. O curioso, mostra João Cezar, é que o tipo de reproche feito pelo escritor brasileiro caberia perfeitamente a suas próprias obras futuras, de Memórias póstumas de Brás Cubas (publicado inicialmente como folhetim durante o ano de 1880) em diante.

Sobre a hipótese da transformação através da rivalidade literária, o autor do ensaio esclarece que “Não se trata de questão ‘psicológica’, mas de insatisfação do autor com sua obra; dilema agravado pelo aparecimento do jovem romancista português”. E enfatiza que “em nenhuma circunstância considero o surgimento do romance queirosiano a causa da metamorfose machadiana. Não se trata de fenômeno simples, passível de explicação unívoca, mas de processo de grande complexidade, razão de ser do escritor Machado de Assis”. O fato é que a argumentação do crítico é muito bem-tecida e legitimada através dos trechos de romances, contos, poemas e artigos críticos do próprio Machado, estrategicamente selecionados e encadeados.

O caráter conservador, tradicionalista, excessivamente prudente e convencional do “Machadinho” pré-1980 (o crítico de Eça e autor de Helena) é uma e outra vez cotejado com a escrita do Machado maduro, criador de personagens moralmente ambíguos e psicologicamente complexos como Capitu e Bento Santiago. Dessa maneira, o momento preciso da superação de uma estética engessada e normativa e de um moralismo radical e paralisante vai se tornando cada vez mais claro para nós leitores. João Cezar observa que há, tematicamente, muitas coincidências entre obras das duas “fases”, mas ressalta a radical mudança no tratamento literário dado aos assuntos. Sobre o tema do adultério, por exemplo, que aparece em diversas obras de ambos os períodos, o que mudaria de fato é a visão artística do escritor ao lidar com o assunto: “Em lugar da perspectiva do juiz severo, principia a entrar em cena o observador arguto da instabilidade radical das relações humanas”.

A hipótese de que Machado teria conscientemente adotado uma poética da emulação, um “resgate moderno de práticas retóricas progressivamente abandonadas depois do advento do Romantismo”, é também ponto fundamental no desenvolvimento da argumentação de João Cezar de Castro Rocha. O crítico apresenta a técnica de emulação como “critério de leitura crítica e de escrita inventiva”. Não seria, portanto, simplesmente uma mera repetição, mas a invenção e criação de algo novo a partir de modelos canônicos.

Com sua “explicação alternativa” para o fenômeno da radical mudança na arte de Machado de Assis, João Cezar não propõe um modelo totalizante e peremptório de exegese. Ele reconhece, de antemão, o caráter complexo do tema e trata de apresentar novas perspectivas para a sua compreensão. 

EDUARDO CESAR MAIA, jornalista, crítico literário, professor universitário, mestre e doutor em Teoria Literária.

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