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Iluminação: Para trazer beleza e significação à cena

Recurso técnico é um dos elementos cruciais de construção do discurso cênico, embora ainda existam poucos cursos de formação na área

TEXTO Pollyanna Diniz

01 de Novembro de 2013

O espetáculo da Companhia Brasileira de Teatro de Curitiba teve sua iluminação criada por Nadja Naira

O espetáculo da Companhia Brasileira de Teatro de Curitiba teve sua iluminação criada por Nadja Naira

Foto Alessandro Soave/Divulgação

Na Companhia Brasileira de Teatro, de Curitiba, a criação da iluminação de um espetáculo começa pela palavra. Com perguntas que talvez pareçam muito simples, mas que só de longe dão essa impressão, e acabam por determinar todo o desenrolar da peça: como contar uma história? Estabelecer um diálogo efetivo, uma relação com o público? Para o grupo, um dos mais importantes do país no que se refere à experimentação de uma linguagem contemporânea, inclusive montando textos de dramaturgos pouco conhecidos pelos brasileiros, a luz de um espetáculo não pode ser idealizada depois que todo o resto da encenação já está pronto.

“Tudo acontece ao mesmo tempo, desde o dia em que vamos ler o texto, se for uma dramaturgia pré-existente. Dentro da companhia, não tenho só essa função. Sou atriz, assistente de direção. A gente se apoia e se questiona. Por que estou dizendo o texto daquela forma? Qual a função da luz em determinada cena? As opções estéticas da companhia também são minhas, como de todos os outros”, explica Nadja Naira, atriz, diretora e iluminadora da companhia curitibana.

“Antes de ser iluminadora, a Nadja é uma mulher de teatro, tem um pensamento sobre teatro. O trabalho dela sempre traz uma dimensão dramatúrgica. A luz integra o pensamento de um corpus dramatúrgico, que é o trabalho como um todo, um conjunto de elementos que colocamos em fricção. A luz está no mesmo patamar desses outros elementos, nem maior, nem menor”, explica o diretor Márcio Abreu.


Nadja Naira. Foto: Adriana Marchiori/Divulgação

Do grupo do qual Nadja faz parte, surgiram algumas das montagens mais instigantes e interessantes dos últimos anos, como Vida, que ganhou o Prêmio Bravo! Bradesco Prime de Cultura de melhor espetáculo de 2010; Isso te interessa?, que levou tanto o Prêmio Bravo! quanto o APCA São Paulo de melhor peça em 2012; e, a mais recente, Esta criança, que tem Renata Sorrah no elenco e abocanhou cinco categorias do 25º Prêmio Shell de Teatro do Rio de Janeiro: direção (Márcio Abreu), atriz (Renata Sorrah), cenário (Fernando Marés) e, finalmente, iluminação (Nadja Naira).

No processo de trabalho do Magiluth, grupo pernambucano, a iluminação também é pensada ao mesmo tempo que os outros elementos da encenação. Essa realidade é potencializada porque o diretor Pedro Vilela assina a luz das montagens. “Facilita. Posso conceber a cena já sabendo que todos devem estar na contraluz, por exemplo. A luz muitas vezes resolve determinadas cenas”, avalia.

Uma curiosidade é que Vilela não é um dos fundadores do Magiluth; ele entrou como convidado para fazer a luz de Corra, primeiro espetáculo do grupo, que estreou em 2007. A iluminação da montagem foi premiada no Festival Riocenacontemporânea, no mesmo ano; e no Festival Internacional de Teatro de Blumenau em 2008. “Eu estava morando em Curitiba, quando recebi o convite. Gosto muito da luz desse espetáculo porque foi a primeira, de fato, que eu assinei e porque pedia uma edição cinematográfica. Como dar conta de tantas imagens com poucos recursos?”, diz.


Na peça Aquilo que o meu olhar guardou para você, do grupo Magiluth, a iluminação é toda portátil. Foto: Bernardo Cabral/Divulgação

Desde Corra, todas as concepções de luz do Magiluth são de Vilela, embora pensadas de forma coletiva, como acontece com a dramaturgia, a atuação, o cenário, a música das produções assinadas pelo grupo. Muitas vezes, por conta das condições práticas e operacionais, a luz é vista como um trunfo. “Desde cedo, percebemos a impossibilidade de ter elencos numerosos, cenários grandes. Então, de repente, exploramos com a luz algumas coisas que não conseguimos com o cenário”, afirma Vilela.

Em Aquilo que o meu olhar guardou para você, por exemplo, a iluminação é toda portátil. O grupo não depende dos recursos do teatro que vai abrigar a peça e, ao mesmo tempo, essa proposta dialoga com o discurso cênico do espetáculo. “A luz não é ornamento. É o que espetáculo necessita. Em O canto de Gregório, por exemplo, a iluminação é muito simples. Em Viúva, porém honesta, da mesma forma. Sinto que, neste último, o jogo entre os atores está muito ativo, não preciso fazer muitas elaborações para a luz”, explica.

A possibilidade de construir uma linguagem estética também com relação à iluminação, trabalhando efetivamente dentro de uma produção desde as primeiras decisões sobre a montagem, como acontece com a Companhia Brasileira de Teatro e o Magiluth, nem de longe é método, ou melhor, rotina de trabalho dos iluminadores no Brasil, mesmo daqueles já consagrados. O carioca Aurélio de Simoni tem 21 prêmios ao longo de 37 anos de carreira. Assinou a iluminação de mais de 600 espetáculos. “A luz é, geralmente, o último elemento que entra no espetáculo. De todos esses trabalhos que fiz, conto nos dedos aqueles em que fui chamado desde a primeira leitura do texto. Até com as produções de grupos, também funciona desse modo”, revela.


Em Corpo-massa: pele e ossos, Saulo Uchôa utiliza o aparato para iluminar a cena.
Foto: Breno César/Divulgação

Ainda assim, Aurélio de Simoni mantém um relacionamento estreito com diversos grupos e criadores, entre eles a Cia. Atores de Laura e o diretor Moacir Chaves. “São parcerias que vão se efetivando ao longo dos anos e de muitas criações”, explica. É de Simoni, por exemplo, a iluminação de Duas mulheres em preto e branco, peça dirigida por Chaves, e que tem no elenco a pernambucana Paula de Renor e a gaúcha Sandra Possani. “O próprio Moacir já me dá algumas ideias e eu sei que tenho a responsabilidade de materializar isso com minha técnica e sensibilidade de criação”, explica.

GERAÇÕES
Um dos pioneiros da iluminação cênica moderna no Brasil é o carioca Jorginho de Carvalho, que tem 50 anos de atuação e mais de mil espetáculos no currículo. Quando ele começou, a função de iluminador era delegada aos eletricistas. “Jorginho foi o bandeirante. Algo do tipo: ‘Sigam-me os bons que querem trabalhar com luz’ ”, brinca Simoni. “Eu já sou da terceira geração. Não pela idade, mas pelo tempo de trabalho. Aprendi com ele e com Luiz Paulo Neném”, complementa.

Jorginho começou a carreira no Tablado, em 1964. “Ele usava e ainda usa todo o potencial da iluminação, em todas as suas funções; não só para revelação de formas, mas, para ajudar a contar uma história, pensa a luz também como cenário. A precisão e a simplicidade são características fortes no trabalho dele. Não há malabarismos. É a luz a serviço do drama, da obra”, explica o professor João Denys, que leciona na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e é também diretor, dramaturgo, iluminador e cenógrafo.


Chico Pelúcio assina a iluminação de Os gigantes da montanha, peça mais recente do grupo Galpão. Foto: Guto Muniz/Divulgação

O carioca influenciou iluminadores espalhados por todo o país. Em 1990, por exemplo, estava na ficha técnica de Álbum de família, montagem do Grupo Galpão, de Belo Horizonte, dirigida por Eid Ribeiro. “Na vida de grupo, somos obrigados a entender um pouco de tudo: cenário, figurino, iluminação. Depois que Jorginho criou a luz de Álbum, fiquei como responsável, porque ele não podia estar conosco no dia a dia. Acabei me apaixonando”, conta Chico Pelúcio, ator, diretor, iluminador e coordenador do Galpão Cine Horto, centro cultural fundado e dirigido pelo grupo mineiro.

Desde então, Pelúcio assinou algumas iluminações para o Galpão, mas sempre em parcerias. “Diria que sou um iluminador dependente”, ri. “Faz parte da filosofia do teatro de grupo, das atividades compartilhadas”, explicita. A iluminação de Os gigantes da montanha, peça mais recente do Galpão, Chico idealizou com Wladimir Medeiros. “Com o Gabriel (Villela, diretor da peça), você acompanha os ensaios, o processo, e já vai batendo uma bola com ele. Temos a vantagem de poder experimentar a luz bem antes, nos ensaios no Cine Horto e, nesse caso, fizemos também na rua, aqui perto da sede”, diz.

AUTODIDATISMO
Eron Villar, diretor e iluminador pernambucano, também foi influenciado por Jorginho de Carvalho. Na década de 1990, numa das viagens com o Mamulengo Só-Riso, já trabalhando com iluminação, Villar conseguiu fazer uma oficina com o mestre carioca. A profissionalização dos iluminadores se dá muito através de cursos rápidos e do próprio cotidiano de trabalho.

Espetáculos de dança também precisam de uma boa programação de luz, a exemplo do trabalho de Cleison Ramos, em Para Josefina. Foto: Divulgação

Mas a formação vai além do entendimento sobre eletricidade, física óptica, teoria das cores. “O iluminador precisa ter formação técnica, mas também estética. Não é só conhecer os equipamentos, mas é o pensamento estético o que norteia o espetáculo, as relações com outras linguagens”, avalia Vilar, que terminou, recentemente, de ministrar a disciplina de iluminação para os alunos do Curso Regular de Teatro do Sesc Piedade, em Jaboatão dos Guararapes.

No curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Pernambuco, apenas uma disciplina dá conta de iluminação. “O objetivo da disciplina é apenas para que o futuro professor possa tomar ciência de mais um elemento da cena, assim como indumentária e cenografia. Por isso os cursos de extensão, as oficinas, são tão importantes”, explica João Denys. Este ano, 15 pessoas participaram de um curso de iluminação apoiado pela Pró-Reitoria de Extensão da UFPE. As aulas foram ministradas por Cleison Ramos, sob orientação de Denys.

“A formação de um iluminador vai depender muito do próprio interesse dele em pesquisar, em se atualizar, em trocar com os outros. E a experiência, se não engessar o profissional, também é fundamental. Em sete anos de iluminação, já fiz vários cursos e tenho que continuar nesse caminho. Senão, você para no tempo, acaba resvalando no automatismo da iluminação, quando o ser humano termina servindo à tecnologia e não o contrário”, defende Cleison Ramos, responsável por diversas iluminações de espetáculos de teatro e também de dança, como Para Josefina, do grupo Acaso.


Aurélio de Simoni, que tem mais de 600 peças no currículo, é responsavel pela luz de Duas mulheres em preto e branco. Foto: Divulgação

Mesmo quando há formação técnica e estética, muitas vezes a criação do iluminador esbarra na falta de condições financeiras dos grupos e no sucateamento de vários teatros, que não possuem equipamentos adequados. “Quando chegamos ao teatro, deparamo-nos com a realidade. E aí o grupo precisa comprar equipamentos, fazer locações. Só que 90% das produções não têm orçamento destinado para isso”, revela Saulo Uchôa, iluminador e bailarino. “Muitos teatros sofrem, por exemplo, com a falta de lâmpadas. Os equipamentos estão lá, mas não têm lâmpadas. É descaso e falta de gestão”, denuncia Uchôa.

Uma das criações mais importantes de Saulo Uchôa, por acaso, Corpo-massa: pele e ossos, trabalho da Cia. Etc pensado como uma exposição coreográfica, não depende do aparato técnico dos teatros. “Nós usávamos cinco lanternas de led e eu operava em cena. Acabava que a iluminação, apesar das nossas marcações, determinava muito a performance. E o público também tinha a chance de determinar o espetáculo porque, em alguns momentos, também operava as lanternas”, conta.

As lâmpadas de led são consideradas uma tendência em iluminação cênica. Em Os gigantes da montanha, elas permitem que o grupo consiga as referências ao circo que o diretor propõe. “É um espetáculo muito colorido, que passa de certa forma pelo brega, pelo clichê. Compramos refletores de led para conseguir 12 cores. Tivemos que correr atrás da tecnologia, senão a ideia seria inviabilizada pelo próprio fato de o espetáculo ser de rua”, revela Chico Pelúcio. “Em última instância, o investimento se justifica pela paixão pela luz, que dá a possibilidade de levar o olhar do espectador para o espetáculo”, opina. 

POLLYANNA DINIZ, jornalista, crítica de teatro e colaboradora do blog Satisfeita, Yolanda?.

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