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Cidades: Paisagens de vidro

Voltado à máxima ocupação dos espaços e às ideias de consumo e luxo, o avanço imobiliário tem desprezado as relações históricas e afetivas do sujeito com o ambiente

TEXTO Camilo Soares

01 de Novembro de 2013

Cidades em crescimento acelerado como o Recife estão sendo rapidamente ocupadas por torres espelhadas

Cidades em crescimento acelerado como o Recife estão sendo rapidamente ocupadas por torres espelhadas

Foto Leo Caldas

Alguns eventos relacionados ao avanço imobiliário e a projetos de urbanismo para o Recife vêm provocando debates fervorosos entre a sociedade civil e órgãos competentes em jornais, audiências públicas e, sobretudo, na internet. A demolição do Edifício Caiçara (erguido na década de 1940), sem autorização legal, o projeto do Novo Recife, que propõe construir mais de uma dezena de arranha-céus no Cais José Estelita, ou a dos viadutos sobre a Avenida Agamenon Magalhães (que liga Olinda ao Recife) foram alvos de discussões que, comumente, simplificam o embate em dois lados rivais: os progressistas que defendem a modernização da cidade versus os conservadores com a bandeira da preservação da identidade e memória. O problema é que tal dicotomia afasta mais o foco da discussão do que a amadurece, pois nem sempre tais perspectivas são tão antagônicos.

A cidade é constituída por diversos atores, que a vivenciam e a modificam, sendo os pontos de vista incompatíveis parte dessa realidade. Ela não para de se construir, e isso não se refere apenas à sua transformação material, mas à contínua composição mental. O que se está colocando em xeque não é simplesmente a construção de um prédio ou a demolição de um armazém abandonado, mas a construção imaterial e afetiva da cidade por aqueles que a utilizam e a compõem.

Diante dessa ambivalência entre a objetividade com a qual nos deparamos cotidianamente e a subjetividade que a interpreta, forma-se uma imagem do real, mas que, ao mesmo tempo, impõe-se independentemente dele. É aí que a noção de paisagem aparece como um bom guia para nos levar à luz da questão.

Originalmente, o termo paisagem indicava apenas um pedaço do país visto de uma tacada só, com uma conotação rural. Essa ligação com o lugar, como lembra Alain Roger, está presente na maioria das línguas ocidentais, como land-landscape (inglês), land-landschaft (alemão), landschap (holandês), landskap (sueco), landskal (dinamarquês), pais-paisaje (espanhol), paese-paesaggio (italiano) e pays-paysage (francês), além do grego topos-topio. Para o filósofo francês, a ligação entre esses dois termos é feita graças à mediação da arte. Diferentemente de noções geográficas, como mapa, ou políticas, como território, ou sociológicas, como nação, paisagem parte de uma conotação estética, relacionando, assim, uma descrição concreta do mundo a um olhar íntimo sobre o real.

A palavra surgiu no Ocidente, em meados do século 15, na Holanda, e não designava um lugar natural, mas “pedaços do país” pintados por mestres como Van Eyck, mesmo que ainda no fundo da tela, e que se tornou um gênero em si em pintores como Jan Van Goyen, entre o século 16 e 17. Na Idade Média, não se tem registro dessa relação contemplativa com o ambiente e sua consequente expressão. Esse espaço do mundo sensível que percebemos com a paisagem é, para Augustin Berque, uma semente de ruptura com o que ele chama de POMC (Paradigma Ocidental Moderno-Clássico) e seu espaço puramente objetivo de coordenadas cartesianas representando a crença absoluta na objetividade e a separação entre o eu e o mundo.


Paisagens chinesas, como esta de Zhang
Daqian, antes de representarem “o real”,
buscam transcendê-lo por sua idealização.
Imagem: Reprodução

O termo já era conhecido na China mais de mil anos antes, entre os séculos 4 e 5, primeiro na poesia e, em seguida, na pintura, já que a cultura oriental sempre desprezou essa ânsia de realismo, de coesão e completude, privilegiando a impermanência e o vazio. Sendo o termo em chinês formado pela junção das palavras montanha (shan) e água (shui), paisagem adquire uma noção que supera os limites da materialidade, dando margem à subjetividade do observador, num estado ambíguo de transformação constante e mútua entre a dureza da rocha e a volatilidade do líquido-vapor. O pintor Zong Bing escreveu, em 440, o que é hoje considerado o primeiro tratado sobre o tema, Hua shanshui xu (Introdução à pintura de paisagem), no qual revela que “quanto à paisagem, mesmo tendo substância, ela tende para o espírito”.

Daí a pintura chinesa não ter fixado seus esforços na semelhança realista de suas representações, já que nunca visou ser um substituto da experiência real. Sua intenção é sugerir que cada um veja por si mesmo o universo. Por isso tal tradição pictórica, que conheceu o ápice na dinastia Sung (960-1279), era permeada por espaços vazios e um inusitado branco no centro das telas, o que Alan Watts vê como uma fabulosa reticência que gera curiosidade: “Eles levantam apenas a ponta do véu, para estimularem as pessoas a encontrarem por si mesmas o que está além”.

NATUREZA URBANA
Quanto às cidades, foi após a Revolução Industrial que o urbano encontrou sua vez na paisagem. Na época, toda destruição de bens naturais ou históricos passou a ser justificável em nome da evolução técnica e material do homem, e a cidade passou a ser o grande símbolo disso. A objetividade materialista prevalecia sobre questões subjetivas como o belo, o estético, o agradável, colocadas em segundo plano pelos poderosos.

A volta à natureza pelos românticos foi uma nítida reação contra essa separação entre homem e mundo, incorporando à paisagem desdobramentos psicológicos do observador-pintor. A naturphilosophie alemã, surgida nos fins do século 18 e encabeçada por Schelling, não foi apenas um movimento artístico, mas se ramificou pela ciência, como no trabalho de percepção das cores escrito por Goethe, para quem a óptica puramente geométrica de Newton não levava em conta a realidade da percepção humana.

A representação do mundo pela percepção do eu ressurge até nos momentos em que a objetividade reina nas esferas artísticas. Mesmo o espaço equilibrado do Renascimento era, segundo Pierre Francastel, em seu Études de sociologie de l’art, “uma mistura entre geometria e invenções míticas”. A ilusão da perspectiva dava a sensação de realismo tal qual alguns sonhos nos dão.

Um exemplo disso está nas telas do pintor Albert Eckhout, retratando Pernambuco entre 1637 e 1644, quando participou da comitiva trazida pelo conde Maurício de Nassau durante a ocupação holandesa. Suas representações realistas dos tipos humanos e da botânica locais eram cercadas por um cinzento céu, mais parecido com o norte da Europa do que com o nordeste do Brasil. Mesmo que os esboços de pessoas e plantas tenham sido executados in loco, as telas eram pintadas na calma do ateliê, de acordo com as referências pictóricas e lembranças do artista, sobretudo os elementos do fundo que não estavam no estudo original.


Na Paris do final do século 19, o panorama registrado por Charles Marville é o das margens das cidades. Foto: Reprodução

Já no século 19, com o advento da fotografia e a reprodutibilidade técnica da paisagem, os pintores ficaram cientes das qualidades espaciais das cores e seus desdobramentos psicológicos que libertariam a pintura do traço realista. Concomitantemente, fotografia e pintura se voltavam para a cidade, acompanhando a mudança de paradigma visual trazido pelos novos tempos. Charles Marville (1813-1879) já registrava as reformas do barão de Haussmann na Paris do século 19, em seus negativos em vidro.

No final do mesmo século, os pintores impressionistas observavam as mudanças de luz nas margens industriais dos grandes centros. A crescente necessidade de iconografia das cidades aproximou a noção de paisagem ao urbano, pois havia a urgência de interpretar e representar esses espaços.

Um pouco mais tarde, no começo do século 20, a Escola de Quioto, a partir de Nishida (1870-1945), propunha a experiência do mundo a partir da tradição zen-budista. Nishida pretendia “unir num campo originário o que a modernidade separou: o sujeito e o objeto, a matéria e o espírito, o eu e o universo”, subvertendo a divisão descartiana do eu pensante do mundo sensível.

Essa ligação inexorável entre ser humano e mundo exterior tomou amplitude oficial na Conferência de Estocolmo de 1972, através da noção de ecologia, que não só uniria conceitualmente homem e meio ambiente como também atualizaria a agenda política para normas menos imediatistas e racionais, colocando em questão o progresso material e repensando o valor de felicidade pessoal e coletiva. As novas paisagens deveriam, a partir de então, não apenas respeitar a exterioridade da natureza, mas também a subjetividade de seus habitantes.

Décadas mais tarde, a importância da interpretação afetiva do ambiente de convivência ressurge com força, agora num debate urbano, quando centenas de carros foram incendiados durante manifestações na periferia parisiense, em 2005. Na ocasião, a noção de percepção subjetiva do hábitat humano esteve bastante presente nas análises de urbanistas e filósofos. Muitos deles afirmavam que, apesar de viverem fisiologicamente de forma satisfatória, tais massas suburbanas, em maioria jovens oriundos da imigração, sentiam-se discriminadas por morar em lugares sem identidade, sem opções de cultura e lazer e longe do imaginário que suscita uma cidade como Paris.


Edifício histórico, Caiçara “atrapalhava” a especulação imobiliária
em área nobre e foi parcialmente demolido. Foto: Leo Caldas

E isso não surgiu de uma hora para outra. Já em 1975, o arquiteto francês Émile Aillaud (1902-1988) previra o mal, ao descrever as torres dos conjuntos habitacionais populares como “grandes casernas separatistas onde ninguém quer morar”. Aillaud observava que a lógica funcional dessas construções não prestigia a carga psicológica da ocupação humana, um certo calor humano, e limita a vida das pessoas a um caráter sanitarista. Com os carros, o próprio ideal moderno de sociedade fora também posto em chamas nas periferias.

CINEMA E VIDRO
Essa relação entre ocupação territorial na cidade e estruturas de representação de poder em um sistema calcado em automóveis, arranha-céus e shopping centers, está permeando a produção recente do cinema pernambucano. O documentário Um lugar ao sol (2009), de Gabriel Mascaro, coloca em questão o desejo pela verticalização das cidades a partir do olhar dos moradores de coberturas. Recife frio (2009), de Kleber Mendonça Filho, faz um bem-humorado paralelo entre as inexplicáveis baixas temperaturas que teriam chegado à cidade com a frieza social da vida em torno de altos prédios e centros comerciais. Mendonça também é autor do longa O som ao redor (2012), que sugere que a paisagem do presente urbano de Pernambuco reflete o passado rural escravocrata da região. Um coletivo de cineastas lançou, em 2011, o filme [projetotorresgêmeas] sob o mote das duas torres de luxo construídas num bairro histórico do Recife, sem interação com o entorno, simbolizando o violento processo de avanço imobiliário em curso. Vale ressaltar ainda os filmes-pílulas do site Vurto, e os curtas O Menino Aranha (Mariana Lacerda), Praça Walt Disney (Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira) e Velho Recife novo (coletivo Contravento).

Na arquitetura, um dos elementos-chaves dessa discusão é a utilização do vidro como material privilegiado nessas torres de luxo. Material versátil na forma e admirado pela transparência, o vidro é, no entanto, incapaz de amenizar a temperatura do sol bravio da região. O resultado é o aumento do calor nas grandes áreas envidraçadas, que demanda equipamentos de refrigeração potentes e um consumo de energia incompatível com os atuais valores ambientais: “O vidro é melhor para a vista e para o conforto. Só não o coloca quem não tem dinheiro”, defende (em reportagem do Diario de Pernambuco, de 2010) o arquiteto Jerônimo da Cunha Lima, que assina o projeto das torres gêmeas e outros grandes empreendimentos da cidade. Involuntariamente, o arquiteto nos coloca outra questão fundamental: a formação da paisagem, sobretudo numa cidade como o Recife, não é só simplesmente pessoal, subjetiva e estética; é também social. O dinheiro paga a bela vista sobre o mar azul, os vidros, o ar-condicionado, os altos muros e o carro importado, em detrimento de uma lógica mais sustentável de cidade.

Em sua história, a arquitetura local buscou respostas mais compatíveis com o clima tropical: “Criar sombras, recuar paredes, vazar muros (colocar cobogós, elementos que permitem a iluminação e a circulação do ar), proteger as janelas com beirais, abrir as portas, continuar os espaços e permitir a convivência com a natureza são alguns dos ensinamentos da antiga Escola Pernambucana de Arquitetura, hoje praticamente em desuso”, lamenta a jornalista Tânia Passos, na mesma reportagem.

Delfim Amorim e Acácio Gil Borsoi estão entre os nomes de frente da Escola Pernambucana de Arquitetura, que há 50 anos encontraram soluções de ventilação e iluminação para os projetos desenvolvidos no Recife, capazes de adaptar princípios da modernização à realidade local. “Trabalhemos no sentido de uma arquitetura livre e espontânea, que seja uma clara expressão da nossa cultura e revele uma sensível apropriação de nosso espaço; trabalhemos no sentido de uma arquitetura sombreada, aberta, contínua, vigorosa, acolhedora e envolvente, que, ao nos colocar em harmonia com o ambiente tropical, incite-nos a nele viver integralmente”, defende Armando de Holanda, em seu livro Roteiro para construir no Nordeste, sobre a corrente recifense da arquitetura moderna.

ESPAÇOS DE LAZER
O problema é que as mesmas tendências do mercado imobiliário dirigidas a esse público que “pode pagar pelo ar-condicionado” também definem as diretrizes urbanísticas das cidades. São as construtoras que ditam as regras, atropelando planos diretores e leis ambientais, projetando a cidade para atender apenas tendências de mercado. O resultado disso é um visível descaso com os espaços públicos pelos órgãos responsáveis e a consequente desvalorização desses lugares pela população. Quando tais espaços não apresentam qualidade, como manutenção, segurança, estética, boas condições de uso e harmonia ambiental, a população não vê aquele lugar pouco convidativo como seu, pois sua percepção dele carece de vínculo afetivo inerente à representação mental do ambiente por onde transitamos. Por isso, não luta por ele.


Torres gêmeas contrastam com a escala do bairro em que se instalaram, em projeto executado à revelia da opinião pública. Foto: Leo Caldas

Para o urbanista Kevin Lynch, essa identidade afetiva com a imagem de cidade nos liga mais uma vez ao conceito de paisagem, pelo processo mental de interação do indivíduo com o meio ambiente, que se dá através de mecanismos perceptivos e cognitivos. Para ele, paisagem está inerentemente ligada ao bem-estar do homem, por sua qualidade visual de legibilidade, imaginabilidade (capacidade de provocar forte impressão sobre o observador) e, finalmente, identidade.

Tais efeitos emocionais também são explorados pelo arquiteto inglês Gordon Cullen, que aponta que a paisagem é construída a partir das experiências do observador, levando em consideração as sensações óticas e estéticas em movimento durante os deslocamentos, provocando emoções diferentes a partir da posição física e mental do observador em relação ao ambiente.

Sentimentos como pertencimento, proteção, territorialidade e domínio foram também levados atualmente à tona pelas manifestações de Ocupação (Occupy) em diversas cidades do mundo, tendo no Recife o #ocupe estelita, contra o projeto Novo Recife, como exemplo mais significativo. Os manifestantes apontam o dedo contra tal megaempreendimento numa área de cerca de 10 hectares no coração da cidade, que representa tendência de privatização de um espaço de grande interesse público, além de marcar claramente mais uma fronteira na cidade ou, como diz Lynch, um limite visual desagregador na área. Um paredão de 13 torres de 40 andares tornará o bairro histórico de São José em simples pano de fundo, dificultando sua percepção e atratividade.

Diante da expansão imobiliária, fenômeno normal no mundo inteiro e em todas as épocas, não se deve apenas ater-se ao impacto material que ele deflagra, mas também na possível destruição de valores afetivos que delineiam a leitura da cidade por seus usuários. A identidade e o patrimônio de um povo não se encontram apenas nas paredes de suas ruínas, mas no olhar que se renova a cada esquina, na construção contínua da paisagem entre o espaço físico e o mental.

Derrubar um galpão já sem uso talvez não seja um grande problema, se for para surgir em seu lugar um espaço capaz de criar condições agregadoras para que a população o tome para si, numa espécie de posse subjetiva e visual que une cidade e identidade. Prédios podem conviver com parques, bibliotecas, comércio de proximidade. O espaço futuro pode ser construído de forma equilibrada, tomando em consideração necessidades objetivas e subjetivas de todos aqueles que olham para o horizonte. 

CAMILO SOARES, fotógrafo, professor e doutorando na Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne.

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