BRINCANTES
No enredo, o casal Maria (a que vive de joelhos) e José (o descrente) encontra uma imagem de Santo Amaro e depositam-na em uma humilde capela. A fama de milagreiro desperta o interesse de alguns poderosos, que transferem a estátua para uma grande igreja dourada. Mas o santo personificado acaba fugindo e, no caminho, vai encontrando personagens das brincadeiras populares, como dois palhaços bêbados de um circo sem lona, alguns mamulengos, duas velhas despudoradas do cavalo-marinho e uma turma de saltimbancos. Nessa fantasia, discute-se o mau uso da fé, a ostentação da Igreja, o abuso de poder e a importância do brincar. “É um espetáculo híbrido, que mistura estéticas diversas”, lembra Samuel.
William Smith interpreta o protagonista. “É um desafio imenso fazer uma personagem múltipla sendo 10 numa só. Esse santo é Mateus, Cancão, João Grilo, Trupizupe, Bastião, Macunaíma... Uma confusão deliciosa dentro de mim”, atesta. Se a trama e a estética são tão parecidas com o caminho trilhado por Vital para o Grupo Feira, qual a diferença que dá Samuel a essa montagem? “O uso de técnicas contemporâneas na nossa preparação. Samuel trouxe a possibilidade do quanto é infinda a pesquisa no universo artístico, um estudo físico e mental. É transpiração e conhecimento”, define o ator.
Com trabalho corporal de Helder Vasconcelos, direção de arte de Java Araújo e iluminação de O Poste Soluções Luminosas, A lenda do Santo Fujão estreará na programação do 23º Feteag (Festival de Teatro do Agreste), no dia 25 de outubro, no Teatro João Lyra Filho, em Caruaru, cumprindo temporada até final de novembro. O elenco conta ainda com Iva Araújo, Nadja Moraes, Marcelo Francisco, Gilmar Teixeira, Adeilza Monteiro, Jailton Araújo, Zi Rodrigues e Jô Albuquerque, além dos músicos Jadilson Lourenço, Vinícius Leite, Felipe Magoo, Carlinhos Aril e João Vitor.
MAMBEMBÃO
O Grupo de Cultura Teatral, como inicialmente se chamava o Grupo Feira de Teatro Popular, foi o coletivo pernambucano que mais circulou pelo país nas décadas de 1970 e 1980, graças ao Projeto Mambembão. Desde a estreia com Feira de Caruaru, a naturalidade dos artistas em cena chamou a atenção, com gente “do povo” compondo os elencos. O dramaturgo e diretor Vital Santos soube tirar proveito dos tipos e sotaques, em montagens que primavam pela inventividade do palco quase sempre nu, transformado em ambientes variados pelo mínimo de adereços e luz, valorizando os intérpretes pelo seu conjunto.
A árvore dos mamulengos critica a ditadura militar.
Foto: Arquivo Projeto Memórias da Cena Pernambucana/Divulgação
A música ao vivo sempre se fez presente. Compositores como Onildo Almeida, Josias Albuquerque e Jadilson Lourenço, este último na direção musical de A lenda do Santo Fujão, foram parceiros imprescindíveis para a maior identificação das plateias. Em sua escrita,Vital Santos – além de abordar quase sempre a miséria humana, mas com humor e poesia – nunca esqueceu de pontuar questões político-sociais. Foi assim em A menor pausa, quando usou a menstruação como metáfora do sangue derramado no país em plena ditadura; ou n’Árvore dos mamulengos, em que desbanca a autoridade militar pela esperteza popular.
Ou ainda em A noite dos tambores silenciosos, tratando das Ligas Camponesas e do direito do trabalhador ter seu chão. Mas foi com Auto das sete luas de barro que Vital ganhou notoriedade no país inteiro, ao criar uma fantasia musical sobre a vida do Mestre Vitalino, denunciando a miséria do ceramista e, consequentemente, do próprio artista brasileiro. Hermilo Borba Filho o reconheceu como o “Molière do Sertão” e não lhe faltaram prêmios Brasil afora.
Mas Vital não ficou preso apenas ao seu grupo caruaruense. Sua mais recente experiência foi com Cantigas do sol – Dom Quixote de cordel, de 2009, teatralização da vida de Luiz Gonzaga a partir de suas canções, parceria da Dramart Produções com o produtor Edgar Albuquerque. Hoje, Vital recupera-se de um problema na coluna, mas ainda com planos para novas obras.
O SEBA
O espetáculo A lenda do Santo Fujão presta homenagem a um dos mais conhecidos integrantes do Grupo Feira de Teatro Popular, o ator, mamulengueiro e produtor Sebastião Alves, o Seba. Ausente da cena por problemas de saúde, sua trajetória de vida daria não só uma peça de teatro, algo que já aconteceu na história da equipe caruaruense, mas um grande filme.
Natural de Sertânia, desde pequeno trabalhou como catador de algodão, padeiro e entregador de pães. Não conhecia teatro, mas sabia que queria ser artista. “De tela grande”, lembra. Partiu para o Rio de Janeiro, mas só conseguiu emprego nas obras do metrô, como marteleteiro. Um dia antes de deixar o Rio para ir a Caruaru, dirigindo-se a uma praça conhecida como point de celebridades, foi atropelado por uma ambulância. “Queria ter certeza de que aqueles artistas eram reais”, recorda.
Elementos da farsa e do circo estão em espetáculos como Rua do Lixo, 24.
Foto: Hans Von Manteuffel/Divulgação
O envolvimento com o teatro aconteceu na capital do Agreste. Paralelamente ao trabalho como fiador de aviamentos, foi chamado para atuar na peça Solte o boi na rua, de Vital Santos, com o Grupo de Teatro Ivan Brandão, dirigido por Nildo Garbo, em 1979. Numa ida ao Festival Nacional de Teatro Amador, em Ponta Grossa, ouviu de um jurado: “Sua expressão é muito boa. Onde aprendeu?”. “Assistindo à televisão!”, foi a resposta. Em 1980, entrou como ator substituto n’Auto das sete luas de barro. “Estreei como um dos filhos de Vitalino no Feira, já circulando pelo país”, e não largou mais o grupo.
Em 1981, no elenco de A noite dos tambores silenciosos, contou sua história de vida aos companheiros de cena. A experiência tragicômica em terras cariocas deu mote para Vital criar o espetáculo Olha pro céu, meu amor. Seba interpretava Bom Cabelo, um poeta popular que larga Caruaru e vai conhecer Roberto Carlos no Rio, com o sonho de se tornar famoso, mas só consegue ser funcionário das obras do metrô. Ao final, morre atropelado. A peça, com versões em 1983 e 2005, virou um grande sucesso.
Graças a uma cena de A noite dos tambores silenciosos, com tenda de bonecos, apaixonou-se pelo mamulengo. O resultado foi a criação do Mamusebá, em 1985, um dos filhos do Grupo Feira. “Teatro feito ao sabor das circunstâncias. Tudo resumido no pobre, no rico e na autoridade”, revela. Nas apresentações para crianças ou adultos, muitas em aniversários ou eventos, o improviso é certeiro, reunindo personagens divertidos como Benedito, Tenente Zeca Galo ou Filomena.
O Mamusebá conquistou tanto o coração de Seba, que ele transformou a própria casa no Teatro Garagem Mamusebá (Rua Maria José de Souza, 200, Cidade Alta de Caruaru). Todo último domingo do mês faz sessão gratuita para crianças, sem ajuda alguma do poder público. “Somente quem pode leva alimento para doação à comunidade. O terrível é que, infelizmente, não existe política séria no país para manter seus artistas”, critica. Mesmo assim, criou também o núcleo Pernas Prá Circular, com encenações em pernas de pau.
Nos últimos tempos, Seba diminuiu bastante sua participação em espetáculos do Grupo Feira por conta da luta contra um câncer. “Emagreci muito, fiz 28 sessões de radioterapia, diversas cirurgias, mas venci. E não vou parar”, diz, lembrando que apresenta o programa diário A casa do Benedito, na Caruaru FM, onde toca “forró sem maquiagem”. Como sempre, valorizando os autênticos artistas populares, seus pares!
LEIDSON FERRAZ, jornalista e pesquisador de Artes Cênicas.