O livro, antes de tudo, reflete um projeto literário ambicioso, tanto no conteúdo quanto na forma. A história da amizade entre dois jovens, Leopoldo e Frederico Sarmento, é transmitida por meio de estratégias narrativas diversas, como o relato em terceira pessoa através de um narrador onisciente, o diálogo direto, o fluxo de consciência, a transcrição epistolar e o relato onírico. À maneira da tradição do Bildungsroman (romance de formação), a narrativa, ambientada na cidade do Recife da década de 1930, tem como preocupação central relatar o processo de formação intelectual, moral e emocional do jovem Leopoldo, filho de uma humilde viúva dona de um pensionato para estudantes localizado no centro da cidade.
Numa de suas raras fotografias no Recife, em reunião ocorrida no início dos anos 1960, na casa de Orlando da Costa Ferreira, Gastão está sentado à direita. Foto: Reprodução
A primeira riqueza do livro é justamente a minuciosa representação do Recife daqueles tempos, não somente através da descrição das ruas, das festas, dos costumes, enfim, da “cor local”, mas principalmente por meio da existência concreta e palpável de personagens convincentes que vivem a cidade e nos transmitem uma sensação de memória autêntica de uma época.
Literariamente, o ponto forte da obra está justamente na construção de seus personagens centrais. A “provinciana história”, como diz o narrador, de Leopoldo e Frederico – personagens eminentemente contemplativos –, tem algo de romance existencialista. Tal influência fica patente em trechos como o seguinte, que reproduz a fala de Leopoldo: “Eu, por minha vez, forço a minha liberdade. Todo homem força a sua liberdade. Estranho paradoxo. Não teremos, futuramente, outra saída senão pelo absurdo” (pág. 24).
As preocupações e reflexões filosóficas do autor são expressas principalmente por esse personagem, que vive numa interminável angústia existencial, devida aos excessivos cuidados de sua mãe (“A infância dele fora banhada pelas lágrimas de uma viúva, como um vasto campo pelas chuvas de maio”), à ausência paterna e ao conturbado relacionamento amoroso com a judia Bertha, personagem que também merece destaque por sua complexidade e caráter ambíguo.
Assim, apesar de desprovidos de qualidades excepcionais e de não terem vidas exteriormente interessantes, os personagens de Os escorpiões nos persuadem de suas existências – algo essencial para o êxito ficcional – exatamente na medida em que seus conflitos íntimos nos revelam preocupações humanas que transcendem as circunstâncias de época e lugar, e que, portanto, podemos ver refletidas, por vezes, em nós mesmos.
Além de Os escorpiões, Gastão de Holanda escreveu ainda os romances Macaco branco (1955), O burro de ouro (1960) e A breve jornada de D. Cristóbal (1985); o livro de contos Zona de silêncio (1951); e as obras poéticas Eu te previno (1969), Capiberibe, o iceberg no ar (1977), O atlas do quarto (1978), Corpurificação (1979), O jornal (1981) e O dragão encurralado (1983).
EDUARDO CESAR MAIA, jornalista, crítico literário, professor universitário, mestre e doutor em Teoria Literária.