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Uma dança que queria ser criança

Grupos de dança contemporânea começam a mostrar interesse em produções voltadas para esse público

TEXTO Christianne Galdino

01 de Setembro de 2013

Em 'Guia improvável para corpos mutantes', o Grupo Experimental de Porto Alegre discute as mutações do corpo

Em 'Guia improvável para corpos mutantes', o Grupo Experimental de Porto Alegre discute as mutações do corpo

Foto Paulo César Lima/Divulgação

Era uma vez uma dança que, no caminho da reflexão, ficou adulta demais e acabou ganhando uma cara tão séria que desaprendeu a brincadeira... É difícil alguém explicar o que exatamente levou as produções coreográficas contemporâneas a adotarem uma postura tão sisuda, na maioria das vezes imprópria para menores. Parece que há uma regra implícita, em vigor no meio artístico, de que dança contemporânea não foi feita para crianças, já que elas não seriam capazes de alcançar as complexas configurações estéticas, intenções de tais obras.

Discordando desse pensamento, a paulista Georgia Lengos convidou amigos que tinham concluído com ela a graduação em Dança, na Unicamp (SP), a criar a Balangandança, primeira companhia brasileira com um trabalho específico de dança contemporânea para crianças, fundada oficialmente em 1997. “Comecei a observar muitas conexões entre o trabalho que realizava na companhia Nova Dança (e, depois, no Grupo Oito Nova Dança) e os movimentos das crianças a quem eu dava aulas. Percebi que a arte contemporânea e a criança têm tudo a ver, e decidi mergulhar nesse universo, direcionando minhas pesquisas criativas para esse público”, lembra a bailarina, que continua dirigindo a companhia, mas, desde que foi mãe há três anos, decidiu deixar os palcos.

Quando resolveu encarar essa missão, Georgia trouxe as técnicas de improvisação e educação somática que vivenciava na dança contemporânea, e aprofundou os estudos no desenvolvimento motor infantil, para oferecer às crianças “outra visão de corpo e de mundo por meio de uma comunicação menos comercial e apelativa”. A espontaneidade e a destreza dos movimentos característicos das crianças são matéria-prima e ferramenta metodológica para as criações da Balangandança, que tem nas brincadeiras e jogos da infância sua principal inspiração.

Ao contrário do senso comum, fazer arte para crianças é um processo complexo, que requer preparo e cuidado redobrado para não cair na armadilha de uma representação infantilizada e postiça, ou usar uma linguagem que “soe falsa”. Alguns grupos de dança optam por atrelar suas montagens para crianças a textos teatrais, mas Georgia e sua trupe fizeram outras escolhas: “A palavra só aparece como parte do movimento, como é habitual nas crianças. Ou, quando um dos intérpretes relata memórias pessoais, ou conta um fato ocorrido durante o processo criativo. Não usamos grandes cenários nem roteiros dramatúrgicos adaptados da literatura, nos guiamos mais pelas sensações, emoções e as relações existentes no universo infantil”.


No espetáculo Ninhos, o Balangandança utilizou kempo indiano, uma arte de luta inspirada nos animais e na natureza. Foto: Paulo César Lima/Divulgação

Interatividade é palavra-chave em todos os trabalhos da companhia, desde Brincos & folias (1997), passando pelo recente Álbum das figurinhas (2012), até Ninhos – performance na qual a falta de espaço urbano para crianças é discutida em cena, através de analogias com os ninhos dos pássaros. “Eles são lugares de aconchego e segurança, mais que necessários para os filhotes aprenderem a voar. Queremos chamar a atenção para a carência de afeto, e de espaços de brincadeira que sejam como os ninhos, e possam estimular relações carinhosas, na confusão caótica das grandes cidades”, explica Georgia. Para esse trabalho, a diretora, incluiu na preparação do elenco aulas de kempo indiano, uma arte de luta que desenvolve a agilidade, a força e a atenção, com movimentos inspirados nos animais e nos ritmos da natureza

Com estreia prevista para o início de 2014, Ninhos foi uma das pesquisas contempladas no edital Rumos Dança do Itaú Cultural, primeiro programa a criar uma categoria específica de dança contemporânea para crianças. O que é um fato revelador da expansão dessa área ou, pelo menos, da preocupação crescente dos artistas e produtores com esse público.

Apesar do aumento do número de espetáculos neste segmento nos últimos anos, ainda há indefinição pairando sobre a relação dança-criança. Os temas “delicados” – como sexualidade, morte, miséria e certos conceitos mais abstratos – continuam a ser escanteados e evitados.

TEMAS-TABU
Entre os que têm desenvolvido projetos que enfrentam esses temas-tabu, destaca-se um grupo de jovens gaúchos, coordenado por Airton Tomazzoni. Eles participavam do Grupo Experimental de Dança de Porto Alegre e, em 2011, criaram paralelamente um núcleo de pesquisas voltadas ao público infanto-juvenil. O projeto inaugural, que inclui a realização do 1º Fórum Nacional de Dança, Infância e Juventude (em abril de 2014), e a montagem do espetáculo Guia improvável para corpos mutantes, foi contemplado no Rumos Dança e no Prêmio Klauss Vianna 2012, da Funarte.


Espetáculo Ninho, com o grupo Balangandança. Foto: Paulo César Lima/Divulgação

São 21 cenas que propõem reflexões sobre as mutações naturais e artificiais do corpo em formação psico-físico-social, e nos levam imediatamente a um debate sobre a identidade cultural. “Partimos da habilidade própria das crianças em reinventar o corpo, nas suas representações (desenhos e esculturas de massas de modelar) e brincadeiras, e criamos artifícios para assumir outros rostos e reconfigurar o corpo, dando origem a movimentações diferentes. Os tão populares tablets, por exemplo, são usados como máscaras, dando a possibilidade de cada intérprete assumir muitas identidades”, diz Airton. A montagem estreia neste setembro dentro da programação do 4º Dança Rima com Criança, realizado pelo Sesc São Carlos (SP), um dos poucos eventos brasileiros destinados exclusivamente para esse público.

EFEITO PEDAGÓGICO
Alguns grandes festivais de dança contemporânea do país inserem mostras específicas para os pequeninos. No entanto, considerados apêndices ou ações de formação, os espetáculos dessa vertente são os primeiros a serem cortados, quando o orçamento precisa ser reduzido. O que mostra que a dança contemporânea para crianças ainda é considerada supérflua, na maioria dos casos, ou utilizada somente como contrapartida pedagógica dos projetos.

“Eles pensam os espetáculos infantis como atividades formativas, como se fossem iguais a uma aula ou oficina. Só porque são voltados para crianças não podem estar na programação artística do evento?”, questiona Georgia Lengos.

Não que o aspecto educativo esteja fora dessa conversa, mas tal característica não deve se sobrepor à qualidade artística das obras. Essa é a queixa daqueles que resolveram levar a brincadeira a sério, estudá-la a fundo e traduzi-la em movimento.

A maioria das produções pernambucanas de dança contemporânea que chega às crianças traz uma temática próxima do universo infantil. “Sempre vejo todos reclamando da falta de público para a dança contemporânea, mas, ao mesmo tempo, continuam destinando às crianças exclusivamente peças e aulas de balé clássico. Como querem, então, que, quando crescerem, elas assistam e gostem de dança contemporânea?”, provoca o coreógrafo Airton Tomazzoni. 

CHRISTIANNE GALDINO, jornalista, professora e mestre em Comunicação Rural pela UFRPE.

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