Arquivo

Cerimônia do adeus

TEXTO José Cláudio

01 de Setembro de 2013

'Homenagem ao Guercino'. Nanquim sobre papel, 29 x 39 cm, Roma, 1958

'Homenagem ao Guercino'. Nanquim sobre papel, 29 x 39 cm, Roma, 1958

Imagem Reprodução

Divagar por Roma. Ver: Roma e suoi dintorni (Roma e seus arredores), livrinho que comprei lá em 1957. Via Ventuno Aprile, Rua Vinte e Um de Abril, dia da fundação da cidade, segundo Baccaro. O mesmo do nascimento de meu filho Cláudio Manuel da Silva, ou Mané Tatu como assina nos quadros, além de feriado de Tiradentes. Minha filha, Maria Júlia, nasceu dois anos, um mês e um dia depois, 22/maio/l963. Casei 16/jan./60. Mané é de 61.

Voltando a Roma. Vi no filme Concorrência desleal, de Luchino Visconti, que foi o rei Vítor-Emanuel que decretou o confisco dos bens dos judeus e todos os horrores que vieram a seguir, envio para campo de concentração, a família inteira inclusive crianças como a do filme, junto com Mussolini para agradar a Hitler, e me espanta que exista na Itália tanta rua, praça, ponte, com esse nome que devia era ser submetido àquela lei romana de que fala Umberto Eco, a damnatio memoriae, de ter o nome apagado de todos os registros, de um infame desse passar a nunca ter existido. E os italianos não-judeus também eram chamados de “arianos”, não podendo um “ariano” ser empregado de um judeu. Por aí você vê que qualquer povo pode ser influenciado por uma imbecilidade dessa. Até ponho minhas barbas de molho. É bom que se enalteça a raça brasileira, tão menosprezada até há pouco tempo pelos próprios brasileiros, quando se dizia que a mistura de raças levava à degenerescência da espécie. Mas cuidado para não passar de um extremo ao outro, considerando brasileiro raça superior.

Quando alguém diz que gosta de Roma eu lhe fico grato. Em Roma, só fiz olhar para quadro. Não se pense que tive privilégios além desse, o que não foi pouco. Quanto a mulher, eu pensava: não vim aqui atrás de mulher, que no Brasil tem de sobra (apesar do Pois é de Ataulfo Alves: “Mulher a gente encontra em toda parte/Só não encontra é a mulher que a gente tem no coração”). E eu tinha vinte e cinco anos. Foi lá que comecei a tomar vinho. Fazia frio e água me repugnava. Comecei a tomar Olevano (olévano), tinto, a uva é a cesanese, me diz o amigo Mario, romano, marido da nossa grande fotógrafa Roberta Guimarães, “bom vinho”, disse ele, e que nunca vi engarrafado, tomava de copinho nas tascas, e Frascati (frascáti), branco, idem, que é comum hoje encontrar nos supermercados aqui.

Divagar. Eu gosto é de divagar, até na pintura. Tem um livro ótimo, Amor a Roma, um palíndromo, de Afonso Arinos. O escritor americano Gore Vidal: “Muitos acham que a melhor cidade do mundo é Paris. Alguns sabem que é Roma”. Tem um filme de Fellini, Ginger e Fred, com Marcello Mastroianni e Giulietta Masina, em que os dois, no começo da velhice, relembram os tempos da mocidade, quando se apresentavam nas periferias imitando Fred Astaire e Ginger Rogers. A certa altura Marcello diz, sem amarguras, risonho até, que tudo bem com ele mas às vezes vê as coisas lhe dando adeus. Isso me tocou mais ainda porque quando ele acena me senti não como simples espectador. No ano que passei em Roma eu encontrava com ele na rua quase todo dia, acredite se quiser, capa de gabardine bege aberta, as tiras do cinto penduradas, de costas para a parede, uma perna encolhida e o pé no reboco, cigarro na mão, do outro lado da rua defronte de um café na Via del Babbuino (babuíno, macaco) já chegando na Piazza del Popolo (Praça do Povo). A calçada ali é estreita e precisavam se encolher para eu passar e muitas vezes eu ouvia a voz grave saída da boca dele no papo com os amigos, dois, no máximo três, ou se encostavam também na parede. Essa parede devia ser o oitão de uma das duas igrejas que formam o Tridente: ruas Babbuino, Corso e Ripetta, justamente onde ficava a Accademia (acadêmia, academia) di Belle Arti, que eu frequentava diariamente, na Piazza Ferro di Cavallo, na Ripetta, chegando às oito horas da manhã. Tem coisa que parece até espiritismo. Uma vez, agora, dois mil e dez para cá, vi uma entrevista de Mastroianni, no interior do prédio onde morava, uma sala, ou quarto, e tive a exata impressão de que se ele botasse a cabeça na janela poderia ver o entorno da Igreja de Trinità dei Monti (Trindade dos Montes), a escadaria onde íamos depois das aulas prendere il sole (tomar sol), inclusive Isaac Gondim, daqui do Recife, que estudava teatro na mesma Accademia. Foi só o que deu. Quando acabei de pensar, ele bota a cabeça na janela explicando porque gostava de morar ali, a câmera o segue e mostra exatamente o que imaginei. Acredite se quiser.

Atualmente, sem premeditar, me dei conta de que tenho tirado para ver no DVD na maioria filmes italianos. A princípio me atraía a língua, a única que posso dizer que falei um dia fora português, começando a voltar a entender, me lembrando de frases, expressões, até gíria de minha época lá, o som das ruas, tipos de gente, fardas, as batinas vermelhas dos seminaristas alemães, uma certa distinção nas ruas, isso em 1957-58. Quando voltei com Leonice minha mulher, alguma coisa tinha mudado, vinte anos depois. Os ônibus não eram mais tão novos. A população, menos senhoril. Mas muita coisa era igual. No primeiro barzinho que entrei, pedi un bicchierino di Olevano com alguma apreensão. O rapaz botou o copinho no balcão e serviu o mesmíssimo vinho: vi que seus olhos riam com a minha felicidade. Minha garganta teve vontade de gritar “Vivaviva!” como gritávamos na claque da torrinha do teatro com que pagávamos o ingresso: foi assim que vi ópera.

Tem uma rua em Roma que se chamava Via Felice. Aliás também ouvi Vicolo (vícolo, beco) di Via Felice. Em português não tem a mesma musicalidade, Beco de Rua Feliz. Vicolo di Via Felice! Não me surpreende Betânia Caneca quando diz: “Só sabe o que é felicidade quem morou em Roma”. 

JOSÉ CLÁUDIO, artista plástico.

veja também

Construção social da segregação

Antonio Callado: “Um doce radical”

Susana e o judeu errante