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'Liga da justiça'

TEXTO Kleber Mendonça Filho

01 de Setembro de 2013

Cena do clássico '12 homens e uma sentença', de Sidney Lumet, 1957

Cena do clássico '12 homens e uma sentença', de Sidney Lumet, 1957

Foto Reprodução

No início de julho, participei de uma comissão de seleção para o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, que acontece neste setembro. O trabalho previa a escolha de seis longa-metragens de ficção, os novos exemplares da atual safra brasileira. Seis filmes inéditos de um universo de aproximadamente 50 inscritos que acabam de sair da linha de montagem. Se você faz parte da cadeia do cinema, esse tipo de convite chega como uma colaboração que sugere idealismo mixado com pragmatismo.

Comissões de seleção fazem parte dos que trabalham com cinema. É uma missão profissional. Há comissões de seleção em editais de fomento, concursos, festivais. Por tratar-se de arte, fica a esperança de que cada filme torne-se um organismo vivo, que inspire nas pessoas o que nós achamos que eles talvez tenham nos trazido.

O cenário para esse trabalho foi um hotel no Setor Hoteleiro Norte de Brasília, com vista para a Esplanada dos Ministérios, o Congresso, a Catedral e os peculiares autoramas da capital, onde veículos entram e saem de trevos. Era esse o nosso espaço para tomar pequenas decisões de cinema, numa área geográfica do país onde tantas decisões são tomadas.

Os instrumentos de trabalho: um monitor LCD de 40 polegadas, um tocador de DVD e outro de Blu-Ray, ligados ao monitor com cabos HDMI. Controles remotos, kits de seleção com a lista de filmes a serem vistos e uma caixa com discos digitais. A organização do festival trazia, via serviço de quarto, salgadinhos, café, água e sucos. Nenhuma bebida alcoólica.

É uma missão de corte tragicômico. A simples noção de uma comissão de seleção, uma possível “Liga da Justiça” ali reunida, que irá tomar decisões sobre as obras de outras pessoas, a princípio, não me agrada.

De qualquer forma, e indo direto ao ponto, isso faz parte da vida, num mundo onde naturalmente as coisas adquirem valores o tempo todo, uma verdade que precisa ser sobreposta a um mundo no qual as coisas cada vez mais adquirem valores artificiais, gerados por interesses comerciais.

No cinema, a composição de cada comissão é uma aposta. A ideia de perfeição não existe, a química, o cavalheirismo e o respeito que, em tese, fazem parte desse trabalho, só se confirmam ao longo do processo, e a melhor coisa a fazer é esperar que dê tudo certo. Algumas experiências podem ser desagradáveis, desastrosas. Esta experiência, especificamente, não foi.

As visualizações, reações, discussões e argumentações naquele quarto de hotel de número 1210 são intransferíveis, e só poderiam ser fruto daquelas cinco pessoas ali reunidas. Os colegas dessa comissão eram três realizadores e um crítico. Contando comigo, foram quatro realizadores e um crítico.

Para os cinco, o quarto tinha três cadeiras e um sofá com dois lugares. Revezávamos nossas posições nas cadeiras, que deixavam as colunas retilíneas, e no sofá, que sugeria que nos esparramássemos. A probabilidade de cochilar nas cadeiras era menor por serem menos confortáveis.

Nossos dias começavam por volta das 8h30 da manhã, e muitas vezes o trabalho ia até às 21h30 ou 22h, com pausas para almoçar por volta das 13h e jantar às 20h. Seis, sete ou oito longas-metragens num dia, e é espantosa a capacidade que um filme tem de se impor, mesmo sendo o 8º do dia, ou o 1º de uma manhã ainda sonolenta.

Como se comportar num grupo em que cada um tem uma experiência pessoal e estética distinta em relação ao cinema? Como decodificar as reações físicas dos seus colegas de equipe durante a sessão de um filme? Ver alguém espreguiçando-se significa tédio ou cansaço? Se o outro faz um “ai, ai, ai...”, imagina-se que o filme não está agradando, especialmente se uma explosão de gargalhadas em grupo ecoa pelo quarto, talvez para liberar um sentimento coletivo. Logo, o grupo se impõe pelo seu gosto, algo que só é possível no 3º dia.

VEREDICTO
Ao longo da semana, as discussões pareciam simples, os candidatos mais fortes destacavam-se, os mais fracos eram descartados com certa facilidade. Dias depois, alguns filmes voltaram e outros mais fortes pareciam perder energia.

Com o afunilamento do processo e a realidade de ter que escolher apenas seis filmes, as discussões tornam-se mais difíceis, nesse caso, nunca no sentido de ver os relacionamentos entre os membros do grupo deteriorar, mas pela simples matemática das escolhas e dos argumentos.

Não se trata de tentar encaixar 15 filmes em seis buracos, mas a coisa fica realmente difícil quando há oito filmes importantes para seis espaços. Para cada argumentação, há uma contra-argumentação, e logo o grupo tem a clara sensação de que tenta trocar seis por meia-dúzia. A tarde inteira.

Como as decisões irão impactar os realizadores e seus filmes? Como ficam os membros da comissão que têm algum tipo de relação pessoal ou social com produtores e realizadores? Como os filmes serão valorizados no atual momento histórico do cinema brasileiro? Como os filmes rejeitados serão prejudicados? Será que, na contagem geral, eles serão realmente prejudicados? Provavelmente, sim.

Uma das verdades mais doloridas do cinema é a de que não importa a qualidade final de um filme, seu sucesso ou fracasso, o cinema dá uma quantidade sobrenatural de trabalho aos que fazem cinema. Esse trabalho é notável em cada bela cena que se desdobra, e em cada sequência medíocre ali vista. Se uma cena é “bela” ou “medíocre”, abre-se o debate e, muitas vezes, não há respostas certas ou erradas.

Curiosamente, a cada noite, de volta ao quarto, eu via na CNN o desenrolar do julgamento de um segurança americano, George Zimmerman, que matou com um tiro, numa vizinhança da Flórida, o adolescente Trayvon Martin. Esse julgamento abalou a sociedade americana. O segurança suspeitou que Trayvon era um ladrão, aparentemente pelo fato de o rapaz ser negro e usar um moleton com capuz cobrindo sua cabeça. Os seis jurados terminaram chegando a um veredicto que chacoalhou a ideia de raça na América: Zimmerman foi declarado inocente. 

KLEBER MENDONÇA FILHO, crítico e cineasta.

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