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Trens

TEXTO Kleber Mendonça Filho

01 de Agosto de 2013

Assim como em 'Pacto sinistro' (1951), de Hitchcock, muitos filmes utilizam trens como “cenário e metáfora”

Assim como em 'Pacto sinistro' (1951), de Hitchcock, muitos filmes utilizam trens como “cenário e metáfora”

Foto Reprodução

Em julho de 1991, fui ao MoMA, o Museu de Arte Moderna em Nova York, que estava com uma temporada dedicada à presença do trem no cinema: Junction and journey: train and cinema. Três meses de filmes sobre o tema e uma exposição que nunca esqueci. Me fez pensar que, em grande parte, o trem não faz parte da vida brasileira. Só consegui lembrar uma única viagem de trem feita em Pernambuco, em 1979, da Estação Central, no Recife, até o Cabo, com meu irmão Múcio e Kleber pai. Durante a viagem, levei um tapa feio de um galho de árvore. Eu estava com a cabeça na janela do vagão, olhando a paisagem passar feito um cachorro com a língua de fora.

No último mês de junho, lembrei outra vez aquela exposição no MoMA e do passeio até o Cabo. Na ocasião, fui ver Itália x Japão na nova Arena Pernambuco, durante a Copa das Confederações. O Japão jogou lindo e perdeu para uma Itália assustada. Fui de trem.

Trens são estruturas fascinantes e extremamente fotogênicas. São personagens cinematográficos, veículos de mistério e romantismo, uma máquina que chega e sai de estações elaboradas, templos do passado, como a Estação Central armada com ferro inglês, no Recife, na segunda metade do século 19.

Hitchcock imprimiu muito cinema em trens. Pacto sinistro (Strangers on a train, 1951) existe a partir de uma conversa prosaica num trem. Cary Grant e Eva Marie Saint, num vagão-leito rumo a Nova York, em Intriga internacional (North by Northwest, 1959), caem na cama beijando-se e o safado do Hitch corta para o trem entrando num túnel. Erótico.

A ação de expectativas de Trens estritamente vigiados (Ostre sledované vlaky, 1966), do tcheco Jiri Menzel, o trem como instrumento de conquista do Oeste no cinema americano de incontáveis westerns (Matar ou morrer, para citar um), o trem como alegoria para a morte via nazismo na Europa da 2ª Guerra, o trem da intriga e da ação em Missão impossível (1996), de Brian de Palma.

Esses filmes retratam o cerimonial das vias férreas, com uma identidade sonora muito específica de ferro com ferro, de portas que abrem e batem, de horário marcado e relógios bem-posicionados na plataforma, instrumentos de tensão no cinema e na vida real.

Tomando aquele trem recifense em junho, pensei que, de fato, a relação do brasileiro com o trem existe em subúrbios de grandes cidades. É a nossa nota de rodapé social para esse transporte. Nossos metrôs de superfície terminam refletindo nos seus vagões um racha social e racial dramático.

Pelo jeito, isso é moldado por uma cultura que vê no carro um indicador de ascensão social e saúde econômica do estado, o que talvez leve a uma falta de investimento no transporte público, como o trem.

No metrô de superfície pernambucano também há uma extraordinária divisão de classe, ditada pela pobreza dos bairros por onde as composições passam. As rotas tomadas por empresas de ônibus movidos a diesel e pneu (servindo diretamente bairros de classe média como Boa Viagem, Casa Forte ou Graças) contrastam com as rotas tomadas pelo trem suburbano (bairros e comunidades como Afogados, Estância e Jaboatão).

Também não há no Brasil o trem como ligação interestadual ou inter-regional, uma não alternativa ao avião e ao ônibus. Pegar o trem noturno Recife-Salvador, ou Belo Horizonte-Rio de Janeiro, não é uma opção hoje. Não há a possibilidade de um romance de trem no Brasil, um thriller férreo no nosso cinema.

No cinema brasileiro recente, Central do Brasil (1998), de Walter Salles, utilizou a estação carioca como encruzilhada humana proletária de todo um país, mantendo ao mínimo a ação cinematográfica a bordo de vagões. Ao tomar a estrada, a única opção é diesel e pneu de borracha.

No pernambucano Amigos de risco (2008), de Daniel Bandeira, temos o metrô recifense como última oportunidade de redenção na madrugada para personagens da classe mais baixa.

De repente, me vi naquele mesmo trem de subúrbio visto em Amigos de risco. Ficou a sensação de que os preparativos para a Copa de 2014 obrigam o Brasil a falar uma língua que o país ainda não aprendeu: a língua do trem.

Da noite para o dia, no Recife, o trem é valorizado por ordens da Fifa, do governo estadual, governo federal, prefeituras etc., por causa de uma arena europeia que parece ter aterrissado temporariamente em São Lourenço da Mata para a Copa do Mundo.

O texto de apresentação de Junction and journey: train and cinema, no MoMA, dizia, “trens são cenário e metáfora”. A viagem de 35 minutos no último mês de junho, entre a Estação Central e São Lourenço da Mata (Estação Cosme e Damião) foi tanto um cenário quanto uma viagem metafórica.

O vagão lotado havia ficado embranquecido socialmente naquela tarde, com olhares curiosos dos usuários comuns. Eles pareciam dizer “bem-vindos ao metrô”. Os novos usuários tinham óculos Ray Ban, iPhones e Galaxy Notes.

Parecia estar acontecendo uma experiência social pontual e ausente da rotina da cidade. É como se etapas de desenvolvimento social tivessem sido puladas para chegar até ali. A viagem revelava camadas de comportamento só expostas por causa de um evento internacional que obriga a adoção de costumes estrangeiros transplantados para o Recife precário da realidade.

Isso ficou muito claro quando o vagão cruzou a Favela do Coque e depois as entranhas de Afogados e da Estância. Ficou muito claro nos arredores e dentro do estádio padrão Fifa.

No trem, sentado ao lado da janela, passava um Recife que um certo Recife não enxerga nunca, um pouco como tomar um barco no Rio Capibaribe e ver a cidade de dentro para fora, como no filme de Kátia Mesel, feito em 1997.

O Rio Capibaribe é apenas um rio que a cidade não quer ver de dentro, e isso gera um desconhecimento de outros Recifes. A descoberta da cidade de dentro do trem parece ter sido um aprendizado para alguns, e uma vergonha para outros.

Foi aí que ouvi uma sugestão espetacular de direção de arte aplicada à cidade, um pouco teatro, mas talvez mais ainda cinema, e com o olhar estrangeiro em mente:

“Vão colocar tapumes para os gringos não verem essas favelas?”. O autor da proposta era um homem com esposa e dois filhos. Eles podem ter gasto mais de R$ 500 para ver um jogo de futebol e tomar um trem suburbano pernambucano. 

KLEBER MENDONÇA FILHO, crítico e cineasta.

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