O fado entrou na vida do lisboeta Ricardo Ribeiro muito cedo. A mãe fazia a limpeza da casa cantando, e algumas cantigas ficaram na memória do músico. Em seguida, uma tia, apaixonada pelo ritmo lusitano, levou-o a uma festa do bairro para que ele cantasse. Tinha 12 anos. Começou a se “apresentar” para os amigos em pequenos festejos, na casa de conhecidos, e, aos 15 anos, já cantava profissionalmente. “Eu comecei cedo porque o destino quis assim. O fado, desde quando eu era muito pequeno, me chamava atenção, mexia comigo”, comenta Ribeiro, entre uma baforada e outra de cigarro.
Ribeiro é uma figura imponente. Alto, largo e gordo, bastante gordo. “É um fadista incontornável, eu costumo dizer. É impossível dar a volta nele”, se diverte Castro. É dono de um vozeirão que faz chorar os azulejos, e, quando fala, aparenta ter bem mais do que seus 32 anos. Possui uma sabedoria nada acadêmica, de alguém que aprendeu com a vida. Os amigos falam de altos e baixos, de uma vida de desassossego, circunstâncias que ele prefere não comentar. Outro fator que contribuiu para criar essa personalidade “envelhecida” foi o de sempre andar com pessoas mais maduras.
Quando começou, o fado não vivia o boom atual e praticamente não havia jovens no meio. O público e os músicos eram muito mais velhos do que Ribeiro. “Eu me lembro do Ricardo Ribeiro muito menino, andando com o Fernando Maurício, e me recordo do carinho que o Maurício tinha para com ele”, conta Sara Pereira, 40 anos, diretora do Museu do Fado. Fernando Maurício foi um grande fadista da segunda metade do século passado. Quando Ribeiro começou a cantar, Maurício, que se apresentava na mesma casa que ele, o apadrinhou. “O Fernando Maurício foi um homem que sempre fez o que quis, sempre seguiu seu coração. Admirava muito isso”, explica Ribeiro.
Ricardo Ribeiro possui uma grande presença e sua maneira de cantar fados se aproxima do tom de um pregador. Foto: Isabel Pinto/Divulgação
Dentro dessa concepção de fazer o que o coração manda está o canto dos fados de que gosta, do jeito que gosta. “Eu procuro criar um estilo, criar minha própria personalidade dentro do fado”, explica. Essa busca por uma identidade própria significa pesquisa. “O Ricardo Ribeiro é um dos poucos fadistas que vêm aqui ao Museu do Fado. Ele me telefona e pergunta se temos tal fado, que queria escutar. Vem pesquisar a biografia dos fadistas antigos, ouvi-los cantar”, comenta Sara Pereira.
Dentro de algumas décadas, é provável que jovens fadistas procurem no museu os rastros de Ricardo Ribeiro, para “estudar” seu modo de interpretar as canções. Hoje, o fadista já tem seu lugar no local, ao lado de figuras como Amália Rodrigues, Alfredo Marceneiro e Dulce Pontes. Numa das televisões espalhadas pelo casarão na beira do Tejo, vê-se a imagem de Ribeiro em uma entrevista. Nela, ele diz que o fado é alma. E, quase cochichando, arremata: “De que me vale a mais linda melodia se não lhe dou alma, se não lhe dou vida?”.
Pronunciar as palavras corretamente, colocar a ênfase na sílaba exata para que soe perfeita, controlar a respiração, entender as letras das canções para logo interpretá-las à sua maneira. São essas as preocupações de Ribeiro. “O fado é como um idioma, é fruto da mentalidade dos portugueses. Pode ser estranho o que eu vou dizer, mas eu canto para mim. É aquela coisa da arte pela arte. Claro que preciso comer, me vestir, que tenho uma filha e tenho que sustentá-la, mas eu não faço isso buscando o dinheiro”, diz.
A religião quase mudou seu destino. A ida a um colégio interno e o contato com o padre Manuel Alves fizeram Ribeiro pensar em seguir a vocação religiosa. Depois, acabou por cuidar de rebanhos no Alentejo. Chegou a pensar em ser veterinário. Durante todos esses anos, cantava fado aos finais de semana. E, sem planejar muito, um dia tornou-se fadista profissional.
O fado é lúcido e sério, gosta de repetir Ribeiro, que também é lúcido e sério, embora dono de uma gargalhada potente. Quando sorri, desmonta a imagem de pessoa envelhecida e faz recordar que não há tanto tempo foi uma criança. “Fado é um desabafo. Quando estou feliz, não quero cantar fado, quero estar com os amigos”, diz. E o fado é triste? “Meu amigo, o fado canta a vida”, me diz em tom professoral. Ribeiro responde a algumas perguntas cantarolando fados. “O fado é tudo que acontece quando se ri ou se chora, quando se lembra ou se esquece, quando se odeia ou se adora.” O traje escuro e a maneira de recitar os fados faz Ribeiro parecer, às vezes, um pregador. “Ele é uma espécie de líder, porque é alguém que leva muito a sério isso de estudar, de ir atrás das raízes”, conta o guitarrista Marco Oliveira, 25, um dos novos talentos do fado que, como Ribeiro, se preocupa em renovar o ritmo, sem deixar que ele perca sua identidade.
O veterano jornalista espanhol Miguel Mora foi correspondente do jornal espanhol El País, em Lisboa, por quatro anos. Em 2007, numa crônica em que contava suas andanças pelo mundo do fado, escreveu que Ricardo Ribeiro, que então tinha 26 anos, era um cantor de “muito peso e pouca idade”. Mora comentava sobre o momento que vivia o fado naquela época; falava do surgimento de uma nova idade de ouro, e apontava Ribeiro como um desses novos prodígios. Naquele mesmo ano, Carlos Saura gravou um filme chamado Fados, parte de sua trilogia sobre música. Ricardo Ribeiro é um dos músicos que aparecem na película. Em 2011, o fado foi declarado patrimônio imaterial da humanidade pela Unesco, o que gerou ainda mais interesse por ele no exterior.
Atualmente, Ribeiro está gravando seu terceiro álbum. Em maio passado, apresentou-se na Bienal de Veneza. Em junho, cantou com a orquestra sinfônica da Venezuela, em Caracas. Para Pedro Castro, as escolhas de Ribeiro serão entendidas e trarão frutos. “Se ele vivesse em outro país ou em outra época, já teria sido aclamado. Não tenho dúvida de que dentro de 50 anos vamos dizer: eu fui contemporâneo do Ricardo Ribeiro.”
RICARDO VIEL, jornalista, atualmente residente na Europa, onde cursa mestrado e colabora com diversas publicações brasileiras, entre as quais o Valor Econômico, O Globo, a Piauí e a Bravo!.