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Os jornais precisam de fotógrafos?

TEXTO José Afonso Jr.

01 de Agosto de 2013

Na parede de uma taberna de Chicago, imagens da equipe de fotografia do jornal Chicago Sun- Times, hoje extinta

Na parede de uma taberna de Chicago, imagens da equipe de fotografia do jornal Chicago Sun- Times, hoje extinta

Foto Alex Garcia/Chicago Tribune/Divulgação

O noticiário especializado em jornalismo e fotografia foi pego de surpresa, no dia 1º de junho de 2013, com uma notícia inusitada: o jornal americano Chicago Sun-Times demitiu toda sua equipe de fotógrafos e atribuiu aos repórteres de texto a responsabilidade de fotografar e filmar suas reportagens. De um modo direto, a medida colocou 28 profissionais de fotografia, alguns veteranos, com mais de 20 anos de profissão, na rua e, indiretamente, atingiu mais 40 jornais de bairro afiliados ao grupo.

Surpresa? Ou coragem de assumir de modo tão duro o cenário de polivalência que habita a convergência tecnológica? Em tempos de aparelhos capazes de fotografar, redigir, acessar a internet, ativar redes sociais e até telefonar, surge o raciocínio distorcido de que, se o dispositivo é multimídia, o usuário que o opera também o é. Isso se agrava ainda mais quando temos um pensamento tecnologicamente determinista que dita as mudanças a partir do cenário tecnológico, e não do conjunto de saberes específicos que orientam uma determinada profissão.

O óbvio parece, nesse caso, não ter sido percebido, ou foi deliberadamente ignorado. Uma equipe de fotógrafos, mais que operadores de sistemas e rotinas para a produção de imagens sobre o cotidiano, possui a habilidade de contar histórias com imagens, desenvolvendo para isso, um conjunto de saberes específicos vinculados à compreensão visual da notícia e seu impacto na sociedade. Saber se mover, entender o que está em jogo em determinada situação, cultivar fontes, enfim, um fotorrepórter, antes de ser um fotógrafo, é um jornalista que opera a câmera e a cadeia de produção de imagens.

Antes que esse texto possa parecer defesa de reserva de mercado, a ressalva a ser feita é inverter a situação: imaginemos se o fardo de assumir uma função a mais (algo que os repórteres de texto no caso receberam “de presente”, diga-se de passagem) fosse dos fotógrafos e, de uma dia para outro, eles tivessem que assumir a função de redigir as notícias? Como reagiria a comunidade de repórteres e redatores?

A justificativa para uma opção de travestir repórteres em fotógrafos está baseada numa ordem financeira, em que os departamentos de fotografia dos jornais sempre foram estruturas caras e onerosas, e pelo fato de, contemporaneamente, muitas das imagens mais vistas ou acessadas pertencerem a circuitos de vigilância, câmeras de celulares ou amadoras, produzidas pelos leitores e cidadãos comuns. Em um mundo de hipervigilância e hipervisibilidade, é óbvio que o fluxo de imagens produzidas por câmeras onipresentes vai compor o horizonte visual da construção da realidade em forma de notícia.

Em um mundo onde são produzidas milhões de imagens por dia, a fotografia numa visão estreita e míope, é apenas mais um conteúdo digital que é embalado ao redor do texto. Raciocínio direto: o que acontece com toda mercadoria que passa a existir em excesso?

Mas, ao falarmos de fotografia do dia a dia, feita de modo vernacular, estamos tratando de algo muito diferente da fotografia de imprensa e de notícia. Querer transportar o que acontece no geral para o específico de uma profissão é uma nítida falsificação, que só pode ser compreendida pelo viés econômico, pelo total descompromisso com qualidade editorial, e por largas parcelas de falta de respeito.

A crise precipitada no Chicago Sun-Times ocorre no choque entre o excesso de fontes produzindo imagens, levando a uma brutal queda do poder de negociação dos fotógrafos dentro das dinâmicas dos jornais, por espaço de trabalho e também remuneração. Assim, os canais de operação outrora estáveis hoje se afunilam e se deslocam de lugar, física e simbolicamente, de produção, saindo de temas mais densos e que exigem maiores aportes de cobertura.

É sintomático deste quadro também a produção do conjunto de imagens que se destinam mais ao acompanhamento de celebridades, do entretenimento e do sensacionalismo. Ou seja, assuntos que demandam uma formação de repertório, custo e problematização de baixo nível. Ao seu modo, há profissionais que também engoliram o caramelo envenenado do “óbvio eficiente”, conceito forjado pelo fotógrafo Hélio Campos Melo. Nele, a imagem não perdeu sua competência, perdeu a sua eficiência, porque só se faz o “óbvio eficiente”, ou seja, uma imagem mais pobre, sabendo que ela vai alcançar o maior número de pessoas, num universo dado. O difícil é fazer uma foto que leve a pensar um pouco mais, que reflita sobre o que está feito.

A questão pontual é que, se temos o excesso de imagens digitais, há a contrapartida da possibilidade de termos um fotojornalista em 200, 250 ocasiões de cobertura por ano, cobrindo pautas de modo sistemático, regular e capaz de gerar boas imagens. Na contraparte, um repórter-cidadão faz uma ou duas fotos, com sorte, sob o ponto de vista de noticiabilidade, jornalisticamente boas. Portanto, fora dos aspectos puramente econômicos e de gestão, não há competição. São posturas e conhecimentos diferentes diante dos fatos. Se houver dúvida quanto a isso, faço o desafio a qualquer editor de jornal: proponha aos seus leitores ficar de plantão, à noite, debaixo de chuva, sem hora para voltar pra casa, para obter uma imagem relevante e veja se ele topa sair do conforto de casa para encarar esse tipo de empreitada.

Lembrando um editor amigo que sempre falava que “todo dia tem jornal”, a questão posta à mesa parece clara: há um cenário que pede um reposicionamento de práticas, que agregue e filtre a enxurrada de imagens em que estamos imersos. Mas confundir esse estado de coisas com a necessária desarticulação de equipes de fotojornalistas é um equívoco que cobrará caro à sua adoção.

Porém, o caso do Chicago Sun-Times é um alerta. Não o primeiro. Quem capitaneou essa demissão em massa foi Tim Knight, que já havia feito exatamente a mesma coisa antes, no Newsday (eliminar o departamento de fotografia). Não há surpresa. Sob um ponto de vista cruel, frio e mesquinho, freelancers custam menos que staff. Com o sinal vermelho aceso, cabe a quem é repórter fotográfico: 1) perceber que os valores editoriais não irão melhorar por si sós; 2) que a fotografia não irá se tornar, nos jornais e de uma hora para outra, algo valorizado. Para essas duas apostas vingarem, é preciso investir em conteúdos, práticas, repertório e criatividade capazes de reoxigenar a cadeia produtiva da fotografia de imprensa. Assim, talvez se encontre a rota de fuga do que surge da triangulação entre a falta de recursos, a falta de modelo de gestão e a falta de respeito. Hora de pensar e agir como o jogo será, e não como era. 

JOSÉ AFONSO DA SILVA JUNIOR, fotógrafo, professor e pesquisador da pós-graduação em Comunicação da UFPE.

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