Os círculos ou pontos coloridos que Kusama usa em suas telas, fotos, happenings, vídeos, são um reflexo das suas alucinações e uma forma filosófica de representação de como ela vê o mundo. Para essa artista, cada um de nós é um ponto no universo e este não existe sozinho. Juntos, eles têm a possibilidade de criar um movimento, uma rede, livrando-a do seu medo de isolamento e conectando todos numa trama de amor.
“É preciso conhecer Kusama para entender o significado dos seus pontos e o quanto ela precisa tocar e ser tocada através deles. Ela conhece você e lhe toca, uma maneira muito primitiva de se expressar. A repetição de pontos e padrões é sua maneira de se sentir segura”, definiu Morris, em entrevista à Continente.
Na obra I'm here, but nothing, que compõe a mostra, pontos
luminosos florescentes coloridos são reproduzidos no interior
de uma casa. Foto: Divulgação/Malba
Ao cobrir sua obra com os chamados polkadots, faz o que ela chama de apagamento do que existia ali inicialmente, desintegrando e padronizando a imagem. Críticos, historiadores da arte e a própria artista tentaram definir o sentido complexo do ponto, que ela usa até alcançar o apagamento total.
“Sem dúvida, no final dos anos 1960, o ponto havia se transformado numa marca própria, como as latas de sopa Campbell de (Andy) Warhol”, afirma Morris no ensaio Yayoi Kusama: minha vida, um ponto, que integra o catálogo da exposição.
Nas palavras da própria artista, “os círculos são um caminho para o infinito. Quando apagamos a natureza e nossos corpos com círculos, nos integramos à unidade do nosso entorno. Nos tornamos parte da eternidade e nos apagamos no amor”, disse, ao apresentar o filme de 24 minutos Kusama’s self-obliteration: an audiovisual-light-performance (Auto-apagamento: uma performance audiovisual luminosa).
Apresentada em 1967 e 1968, em cinemas e festivais dos Estados Unidos e Europa, em que ganhou diversos prêmios, essa sequência hipnótica de imagens mostra Kusama pintando animais, pessoas e até o espelho d’água com círculos, em plena floresta, como se curasse o mundo. O filme, com estética hippie e tom místico, poderá ser visto na retrospectiva.
Também estarão em exibição algumas de suas mais importantes obras recentes: I’m here, but nothing (Estou aqui, mas nada, 2000-2013), em que pontos luminosos florescentes coloridos são reproduzidos no interior de uma casa; Obliteration room (Sala do apagamento, 2010), paredes e móveis brancos no qual o espectador intervém livremente com adesivos em forma de círculos; e Infinity mirror room – filled with the rillance of life (Sala de espelhos do infinito – Plena do brilho da vida, 2011), iluminação mutante em uma sala espelhada com água em algumas partes do chão.
FIGURAÇÃO GESTUAL
Nascida em 1928, na cidade rural de Matsumoto, a 200 km a oeste de Tóquio, Kusama frequentou aulas de artes e iniciou sua carreira com uma série de obras semiabstratas em papel, na década de 1940. Os primeiros anos evidenciaram não apenas a evolução de uma linguagem estética, que se tornaria uma marca registrada, mas também o modo como ela encararia sua figura pública.
Ambição excepcional, vocação para o risco, desejo de abraçar o desconhecido e dar um passo além. O seu progresso em uma década – da abstração à figuração gestual – representa uma viagem que alguns artistas só conseguem em uma carreira completa.
Em 1977, a artista se internou voluntariamente numa clínica
psiquiátrica onde vive até hoje. Foto: Divulgação/Malba
Após participar de exposições na capital do seu país, sua aspiração artística e atração pelo novo mundo norte-americano do pós-guerra a levaram a Nova York. Instalada no bairro de Chelsea, em 1958, o epicentro da vanguarda artística de Manhattan, a artista deu início a pinturas abstratas e monocromáticas.
Nos anos 1970, essas telas ficariam conhecidas como Infinity nets (Redes infinitas) e seriam definidas por ela como redes brancas de partículas, desprovidas de tonalidades, pouco interessantes, uma forma de resistência. Alguns críticos interpretaram sua criação como um posicionamento feminista que rejeita o excesso do expressionismo abstrato, entendido como um exibicionismo masculino.
Kusama vivia então uma transformação artística, renovando-se em diferentes direções. Uma espécie de evolução das suas redes foi a colocação de adesivos brancos sobre superfícies brancas, criando padrões mais ou menos uniformes – uma forma mais mecânica de criar.
Continuou experimentando outras formas de collage: vários selos de correios em Airmail – accumulation (Correio aéreo – acumulação) ou de notas falsas de dólar ladeados, usando símbolos da vida cotidiana para conectar a arte e a vida através de resultados visuais. Kusama se antecipava, assim, às estratégias de Andy Warhol. Em seguida, ao aplicar uma caixa de ovo a uma pintura, produziu, pela primeira vez em sua carreira, uma obra de três dimensões.
A agenda da artista era frenética, assim como sua produção e experimentos. Junto com Warhol, Claes Oldenburg e James Rosenquist, participou, em 1962, de uma mostra na Green Gallery de Nova York, considerada a pedra fundamental da arte pop. Além de espalhar pontos sobre sua pintura, passou a cobrir objetos cotidianos como cadeiras e sapatos com falos – uma obsessão sexual – e com macarrões – sua obsessão pela comida (na verdade, a crítica ao excesso dela).
A repetição de falos, o que ela chama de “acumulações”, remete ao seu medo de ser penetrada. Ao reproduzi-los ao longo de sua carreira, posando para fotos entre eles, ela procura exorcizar esse temor. “A simples ideia de que uma coisa longa e feia como um falo me penetre me aterroriza e é por isso que aparecem tantos falos na minha obra. Faço (os falos), faço e continuo fazendo até que submerjo totalmente no processo. Chamo-o de apagamento”, revelaria Kusama.
“Com as acumulações – suas esculturas em cadeiras e outros objetos cotidianos cobertos por falos de tecido – aconteceu certa radicalização em sua carreira até que, com o vídeo Self-obliteration fez um resumo, espécie de manifesto, de toda a obra que tinha conduzido a esse ponto de autoapagamento total”, explica Philip Larrett-Smith à Continente.
Os falos são recorrentes nos seus trabalhos, como na obra One thousand boats show.
Foto: Divulgação/Malba
Segundo Frances Morris, o contexto artístico que levou Kusama da pintura à escultura, e daí à obra ambiental e ao happening, é evidente, se consideramos a comunidade artística que a rodeava no Bairro de Chelsea. A artista expandiu os limites de sua obra, forçando o espectador a se sentir imerso no espaço. Sua primeira ambientação foi One thousand boats show (Espetáculo de mil botes, 1963), uma sala com um bote no centro, coberto de falos e a imagem dele repetida colada à parede.
“Respondia à mesma estratégia serial das suas redes, mas agora fortemente carregada de erotismo”, compara Morris. Dois anos mais tarde, a Infinity mirror room – phalli’s field (Sala de espelhos do infinito – campo de falos), que integra a mostra, reunia novamente erotismo e envolvimento do público.
Cada vez mais comprometida com políticas alternativas e estratégias artísticas mais audazes, incentivada pelo ostracismo em relação à mainstream da arte local, Kusama radicalizou. Excluída do movimento pop, devido ao seu gênero e à sua etnia, colocou-se no centro da sua obra, como na série de 12 slides de 1966, em que se mostra triste e abatida na paisagem de Manhattan.
Na Bienal de Veneza do mesmo ano, apresentaria sua obra mais controvertida, até então: Narcissus garden (Jardim de Narciso), na qual ela se deitava sobre 1.500 esferas prateadas colocadas sobre a grama. Além disso, distribuía folhetos como uma crítica positiva a seu respeito e vendia as esferas com o cartaz Seu narcisismo à venda. Foi expulsa do evento.
A partir daí, adota uma posição de provocadora cultural na cena artística alternativa de Nova York. No contexto dos protestos contra a Guerra do Vietnã, a favor dos direitos civis e das políticas de gênero, ganha grande visibilidade com happenings, como os feitos na Ponte do Brooklyn e na Estátua da Liberdade, com orgias e nudismo.
Após tanta exposição, Kusama retorna ao Japão em 1973. Quatro anos depois, ela se mudaria voluntariamente para uma clínica psiquiátrica, onde mora atualmente e na qual continua produzindo todos os dias, imersa em seu mundo de redes e padrões repetitivos.
Para Larratt-Smith, é difícil categorizar a obra de Kusama devido à sua unicidade. “Existe um lado que eu descreveria como abstração excêntrica, e outro como psycho-pop”. Porém, diz ele, não há dúvidas de que ela possui elementos que a definem como uma grande artista: “Um leque de invenção formal, sendo pioneira em muitas técnicas, especialmente na história das instalações na arte; a relação com as grandes tendências dos anos 1960; a criação de um idioma simbólico altamente original; e a especificidade patológica que caracteriza os maiores artistas”.
MARIANA CAMAROTI, jornalista, residente em Buenos Aires.