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Kusama: Entre a alucinação e a realidade

Precursora da arte pop e de linguagens artísticas experimentais, em Nova York, artista japonesa tem primeira mostra retrospectiva na América Latina

TEXTO MARIANA CAMAROTI, DE BUENOS AIRES

01 de Agosto de 2013

'Obliteration Room'. O espectador pode intervir colando adesivos circulares coloridos nas paredes e móveis brancos

'Obliteration Room'. O espectador pode intervir colando adesivos circulares coloridos nas paredes e móveis brancos

Foto Divulgação/Malba

Uma infância marcada por experiências alucinatórias, vinculadas à infelicidade, à repressão, à privação e ao maltrato infantil são a principal matéria-prima da arte de Yayoi Kusama. Considerada a maior artista japonesa viva, Kusama soube redirecionar seus medos e complexos, usando-os como temática de suas pinturas, esculturas, ambientações, slides, instalações, happenings, performances e manifestos. Passou do estúdio à rua, do âmbito privado à figura conhecida, reinventando-se e autopromovendo-se ao redor da sua figura pública. Mas sem abandonar a sua técnica fundamental: a repetição de suas obsessões e inseguranças para exorcizar e apagar traumas.

Uma artista de vanguarda na Nova York dos anos 1960, primeiro com suas abstrações e collages, depois com performances e happenings, orgias e intervenções. Uma das criadoras da arte pop na Big Apple e precursora de instalações, Kusama possui métodos radicais de fazer com que o espectador participe, introduzindo a criatividade coletiva no significado final da obra.

Suas mais destacadas criações chegarão ao Brasil em outubro, na exposição Yayoi Kusama – obsessão infinita, uma retrospectiva com mais de 100 obras produzidas entre 1950 e 2013. Primeiro no Rio de Janeiro (Centro Cultural Banco do Brasil), depois em Brasília (Centro Cultural Banco do Brasil) e, por último, em São Paulo (Instituto Tomie Ohtake).

Atualmente, está no Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires (Malba) e recebeu mais de 5 mil pessoas só na noite de inauguração. O museu lotou, fechou as portas de madrugada e a fila para entrar dava volta no quarteirão, tamanho o frenesi. Depois do Brasil, a mostra seguirá para o México.

Com curadoria de Philip Larratt-Smith, vice-curador chefe do Malba, e de Frances Morris, chefe de coleções internacionais do Tate Modern de Londres e curadora da retrospectiva de Kusama nessa instituição, esta é a primeira individual da artista na América Latina. Assim como aconteceu em Buenos Aires e em outras cidades do mundo, haverá intervenções que extrapolam suas obras e chamam a atenção do público. Em Brasília, círculos que caracterizam as criações dessa japonesa cobrirão a fachada do local da exposição e haverá balões no interior do prédio com os mesmos desenhos.

PONTOS NO UNIVERSO
Os círculos ou pontos coloridos que Kusama usa em suas telas, fotos, happenings, vídeos, são um reflexo das suas alucinações e uma forma filosófica de representação de como ela vê o mundo. Para essa artista, cada um de nós é um ponto no universo e este não existe sozinho. Juntos, eles têm a possibilidade de criar um movimento, uma rede, livrando-a do seu medo de isolamento e conectando todos numa trama de amor.

“É preciso conhecer Kusama para entender o significado dos seus pontos e o quanto ela precisa tocar e ser tocada através deles. Ela conhece você e lhe toca, uma maneira muito primitiva de se expressar. A repetição de pontos e padrões é sua maneira de se sentir segura”, definiu Morris, em entrevista à Continente.


Na obra I'm here, but nothing, que compõe a mostra, pontos
luminosos florescentes coloridos são reproduzidos no interior
de uma casa. Foto: Divulgação/Malba

Ao cobrir sua obra com os chamados polkadots, faz o que ela chama de apagamento do que existia ali inicialmente, desintegrando e padronizando a imagem. Críticos, historiadores da arte e a própria artista tentaram definir o sentido complexo do ponto, que ela usa até alcançar o apagamento total.

“Sem dúvida, no final dos anos 1960, o ponto havia se transformado numa marca própria, como as latas de sopa Campbell de (Andy) Warhol”, afirma Morris no ensaio Yayoi Kusama: minha vida, um ponto, que integra o catálogo da exposição.

Nas palavras da própria artista, “os círculos são um caminho para o infinito. Quando apagamos a natureza e nossos corpos com círculos, nos integramos à unidade do nosso entorno. Nos tornamos parte da eternidade e nos apagamos no amor”, disse, ao apresentar o filme de 24 minutos Kusama’s self-obliteration: an audiovisual-light-performance (Auto-apagamento: uma performance audiovisual luminosa).

Apresentada em 1967 e 1968, em cinemas e festivais dos Estados Unidos e Europa, em que ganhou diversos prêmios, essa sequência hipnótica de imagens mostra Kusama pintando animais, pessoas e até o espelho d’água com círculos, em plena floresta, como se curasse o mundo. O filme, com estética hippie e tom místico, poderá ser visto na retrospectiva.

Também estarão em exibição algumas de suas mais importantes obras recentes: I’m here, but nothing (Estou aqui, mas nada, 2000-2013), em que pontos luminosos florescentes coloridos são reproduzidos no interior de uma casa; Obliteration room (Sala do apagamento, 2010), paredes e móveis brancos no qual o espectador intervém livremente com adesivos em forma de círculos; e Infinity mirror room – filled with the rillance of life (Sala de espelhos do infinito – Plena do brilho da vida, 2011), iluminação mutante em uma sala espelhada com água em algumas partes do chão.

FIGURAÇÃO GESTUAL
Nascida em 1928, na cidade rural de Matsumoto, a 200 km a oeste de Tóquio, Kusama frequentou aulas de artes e iniciou sua carreira com uma série de obras semiabstratas em papel, na década de 1940. Os primeiros anos evidenciaram não apenas a evolução de uma linguagem estética, que se tornaria uma marca registrada, mas também o modo como ela encararia sua figura pública.

Ambição excepcional, vocação para o risco, desejo de abraçar o desconhecido e dar um passo além. O seu progresso em uma década – da abstração à figuração gestual – representa uma viagem que alguns artistas só conseguem em uma carreira completa.


Em 1977, a artista se internou voluntariamente numa clínica
psiquiátrica onde vive até hoje. Foto: Divulgação/Malba

Após participar de exposições na capital do seu país, sua aspiração artística e atração pelo novo mundo norte-americano do pós-guerra a levaram a Nova York. Instalada no bairro de Chelsea, em 1958, o epicentro da vanguarda artística de Manhattan, a artista deu início a pinturas abstratas e monocromáticas.

Nos anos 1970, essas telas ficariam conhecidas como Infinity nets (Redes infinitas) e seriam definidas por ela como redes brancas de partículas, desprovidas de tonalidades, pouco interessantes, uma forma de resistência. Alguns críticos interpretaram sua criação como um posicionamento feminista que rejeita o excesso do expressionismo abstrato, entendido como um exibicionismo masculino.

Kusama vivia então uma transformação artística, renovando-se em diferentes direções. Uma espécie de evolução das suas redes foi a colocação de adesivos brancos sobre superfícies brancas, criando padrões mais ou menos uniformes – uma forma mais mecânica de criar.

Continuou experimentando outras formas de collage: vários selos de correios em Airmail – accumulation (Correio aéreo – acumulação) ou de notas falsas de dólar ladeados, usando símbolos da vida cotidiana para conectar a arte e a vida através de resultados visuais. Kusama se antecipava, assim, às estratégias de Andy Warhol. Em seguida, ao aplicar uma caixa de ovo a uma pintura, produziu, pela primeira vez em sua carreira, uma obra de três dimensões.

A agenda da artista era frenética, assim como sua produção e experimentos. Junto com Warhol, Claes Oldenburg e James Rosenquist, participou, em 1962, de uma mostra na Green Gallery de Nova York, considerada a pedra fundamental da arte pop. Além de espalhar pontos sobre sua pintura, passou a cobrir objetos cotidianos como cadeiras e sapatos com falos – uma obsessão sexual – e com macarrões – sua obsessão pela comida (na verdade, a crítica ao excesso dela).

A repetição de falos, o que ela chama de “acumulações”, remete ao seu medo de ser penetrada. Ao reproduzi-los ao longo de sua carreira, posando para fotos entre eles, ela procura exorcizar esse temor. “A simples ideia de que uma coisa longa e feia como um falo me penetre me aterroriza e é por isso que aparecem tantos falos na minha obra. Faço (os falos), faço e continuo fazendo até que submerjo totalmente no processo. Chamo-o de apagamento”, revelaria Kusama.

“Com as acumulações – suas esculturas em cadeiras e outros objetos cotidianos cobertos por falos de tecido – aconteceu certa radicalização em sua carreira até que, com o vídeo Self-obliteration fez um resumo, espécie de manifesto, de toda a obra que tinha conduzido a esse ponto de autoapagamento total”, explica Philip Larrett-Smith à Continente.


Os falos são recorrentes nos seus trabalhos, como na obra One thousand boats show.
Foto: Divulgação/Malba

Segundo Frances Morris, o contexto artístico que levou Kusama da pintura à escultura, e daí à obra ambiental e ao happening, é evidente, se consideramos a comunidade artística que a rodeava no Bairro de Chelsea. A artista expandiu os limites de sua obra, forçando o espectador a se sentir imerso no espaço. Sua primeira ambientação foi One thousand boats show (Espetáculo de mil botes, 1963), uma sala com um bote no centro, coberto de falos e a imagem dele repetida colada à parede.

“Respondia à mesma estratégia serial das suas redes, mas agora fortemente carregada de erotismo”, compara Morris. Dois anos mais tarde, a Infinity mirror room – phalli’s field (Sala de espelhos do infinito – campo de falos), que integra a mostra, reunia novamente erotismo e envolvimento do público.

Cada vez mais comprometida com políticas alternativas e estratégias artísticas mais audazes, incentivada pelo ostracismo em relação à mainstream da arte local, Kusama radicalizou. Excluída do movimento pop, devido ao seu gênero e à sua etnia, colocou-se no centro da sua obra, como na série de 12 slides de 1966, em que se mostra triste e abatida na paisagem de Manhattan.

Na Bienal de Veneza do mesmo ano, apresentaria sua obra mais controvertida, até então: Narcissus garden (Jardim de Narciso), na qual ela se deitava sobre 1.500 esferas prateadas colocadas sobre a grama. Além disso, distribuía folhetos como uma crítica positiva a seu respeito e vendia as esferas com o cartaz Seu narcisismo à venda. Foi expulsa do evento.

A partir daí, adota uma posição de provocadora cultural na cena artística alternativa de Nova York. No contexto dos protestos contra a Guerra do Vietnã, a favor dos direitos civis e das políticas de gênero, ganha grande visibilidade com happenings, como os feitos na Ponte do Brooklyn e na Estátua da Liberdade, com orgias e nudismo.

Após tanta exposição, Kusama retorna ao Japão em 1973. Quatro anos depois, ela se mudaria voluntariamente para uma clínica psiquiátrica, onde mora atualmente e na qual continua produzindo todos os dias, imersa em seu mundo de redes e padrões repetitivos.

Para Larratt-Smith, é difícil categorizar a obra de Kusama devido à sua unicidade. “Existe um lado que eu descreveria como abstração excêntrica, e outro como psycho-pop”. Porém, diz ele, não há dúvidas de que ela possui elementos que a definem como uma grande artista: “Um leque de invenção formal, sendo pioneira em muitas técnicas, especialmente na história das instalações na arte; a relação com as grandes tendências dos anos 1960; a criação de um idioma simbólico altamente original; e a especificidade patológica que caracteriza os maiores artistas”. 

MARIANA CAMAROTI, jornalista, residente em Buenos Aires.

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