Observando o disco como um conjunto, notamos a identidade do autor em todas as faixas. Suas experiências pessoais também estão nas letras, codificadas. Podemos encontrar músicas que falam do Recife no final dos anos 1980, “com guris jogando videogame de 8 bits, indo para as primeiras festinhas discotecas”, diz o músico, referindo-se à canção Estroboscópica. “Tem também a sensação robotizada de estar num emprego e em papéis sociais alienantes, como em Autossabotagem”. A voz de DMingus, incompreensível em vários momentos, contribui ainda mais para a atmosfera introspectiva do disco, que também explora temas como experiências psicodélicas, inadaptação social, busca espiritual e hedonismo. Segundo ele, o fato de “disfarçar” a voz natural por trás de sintetizadores foi proposital.
“Eu sempre gostei de encarar a voz como mais um instrumento, da letra ser um elemento a ser descoberto e, antes disso, funcionar como um aspecto sonoro, de comunicação mais sensorial do que linguística. Acho que, quando uso efeitos na voz, me sinto menos inseguro, porque deixo claro com isso que não estou querendo ser um cantor no sentido convencional. Penso que cantar é sempre um processo de autodescoberta. Estou nele, buscando as melhores ferramentas que encontro.”
Com baterias eletrônicas programadas no computador, essenciais aos timbres e sonoridades de cada música, Fricção teve as guitarras, baixos e teclados todos gravados por DMingus. “Sei que tem muita gente que pensa que música eletrônica é só apertar um botão, que o computador vai fazer tudo e, por isso, considera submúsica. Claro que tem uns caras acomodados e canastrões na área. Mas acho que não músicos podem fazer música relevante, sim, e existem ferramentas que tornam isso cada vez mais possível.”
O que acontece é que o músico incorpora todas as possibilidades de produção e gravação no esquema que ele denomina one man band, ou seja, ele assume, sozinho, todas as etapas de feitura do disco, da pré-produção à masterização, criando alternativas diante das limitações materiais e de estrutura, chegando a ser considerado, por isso, o “gênio do estúdio”.
Ainda assim, durante os dois meses em que gravou Fricção, contou com a “brodagem” de três camaradas: Marditu, Graxa e Daniel Liberalino. O primeiro, seu parceiro na Monodecks, banda de post rock criada em 2003, tocou percussão na faixa Frágil penugem nos ares gelados, além de ter sido coautor da letra de Eno, uma homenagem ao cantor e produtor inglês Brian Eno. Mas sua maior contribuição, segundo DMingus, foi na “escuta crítica” das faixas. “Na medida em que eu enviava, ele sugeria caminhos e detectava influências.”
Angelo Souza, conhecido como Graxa, começou a tocar com DMingus em 2012, no projeto do músico com a Fantástica Kazoo Orquestra. “Música eletrônica não é muito a vibe dele, mas como estava gravando o próprio disco aqui em casa, aproveitei para ele cantar uma parte de Eno, que tem um tom mais grave, e ficou bem legal.”
Já Daniel Liberalino é conhecido de DMingus através de textos e ilustrações que viu em blogs e do projeto musical Varzea Sleep. “É um personagem enigmático, porque eu não o conheço pessoalmente, ele mora no Rio Grande do Norte. Mas, ao mesmo tempo, foi um cara que mostrou uma familiaridade imensa com minha linguagem artística e acrescentou-a bastante, tanto sonoramente, participando de três faixas, quanto plasticamente. A arte gráfica do disco também é dele. Sem falar na contribuição de suas epifanias existenciais durante o processo de confecção do álbum.”
Apesar de ser um disco denso, que sugere mil simbolismos e imagens ocultas, Fricção é suave, refletindo, com sensibilidade, os resgates pessoais que formam a personalidade de quem o produziu.“Sempre existirá um nível de expressividade humana até mesmo na música mais robótica que exista, a partir do momento em que alguém organizou sons de alguma forma.”
MARINA SUASSUNA, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.