FOTOS RAFAEL MEDEIROS
01 de Agosto de 2013
Foto Rafael Medeiros
Cancelamento da última edição do SPA das Artes. Orçamentos reduzidos em todos os museus e equipamentos públicos do estado e da prefeitura. Atraso do Salão de Artes Plásticas de Pernambuco. Migração para outros estados de artistas, críticos e curadores. Adiamento do Olinda Arte em Toda Parte. Galerias fechadas ou vazias. Quem observa o campo das artes visuais do Recife, em 2013, encontra uma terra desolada. O observador de hoje pouco consegue encontrar a euforia que se vivia na primeira metade da década passada, quando a cidade parecia pegar o bonde nacional de um mercado tão promissor como complexo.
Esse mercado é complicado porque agencia um conjunto de variáveis interdependentes. Nele, exigem-se harmonia entre a produção artística, o fortalecimento dos espaços de exposição e ambientes de formação de todos os profissionais da cadeia e do público, o despontar de um pensamento crítico e a possibilidade de que a produção encontre compradores, seja no mercado primário (com obras adquiridas diretamente dos artistas ou através de galerias), seja no mercado secundário (em que obras adquiridas por pessoas físicas ou jurídicas são revendidas para pessoas físicas ou jurídicas, principalmente através de leilões).
O próprio estado, com a aquisição de acervo para os museus, colecionadores, grandes empresas ou pessoas que vejam mais significado na aquisição de uma obra de arte que de uma cortina automática representam esse vértice consumidor que, no Recife, é quase nulo, segundo constatou esta reportagem, e insignificante, se comparado ao restante do país.
A dificuldade nas vendas reflete a fragilidade dos outros pontos do sistema. Problemas como poucos museus, ausência de importantes coleções em exposição permanente, carência de catálogos que documentem a produção de artistas consagrados e jovens e facilitem o entendimento crítico dos seus trabalhos, e a última posição para as artes visuais na captação de recursos da principal Lei de Incentivo, a Rouanet, fazem com que espaços de venda flutuem em uma órbita sem sentido.
Moacir dos Anjos, pesquisador e curador vinculado à Fundação Joaquim Nabuco, figura angular para a compreensão crítica da produção de arte contemporânea no país e responsável pela consolidação do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães no cenário nacional, responsabiliza o poder público pelo cenário atual. “A impressão que dá é a de que o campo das artes visuais, de dois anos para cá, não tem a menor importância dentro das políticas públicas. Os equipamentos não têm verba, alguns deles são dirigidos por senhoras da sociedade e, na melhor das hipóteses, por pessoas ligadas à cultura popular. O engraçado é que temos um discurso no campo econômico desenvolvimentista, mas, no campo simbólico, algo profundamente conservador. O que temos hoje é uma polarização entre a riqueza econômica e a pobreza nas artes”, afirma.
Bruna Pedrosa, ex-diretora do Museu Murillo La Greca e, hoje, coordenadora de Artes Visuais da Fundação Joaquim Nabuco, afirma que as leis orçamentárias anuais não foram cumpridas. “O La Greca saiu de uma verba anual pequena, de R$ 120 mil, para uma menor, de R$ 40 mil; depois, para uma irrisória de R$ 18 mil, até não ter nenhum recurso disponível, tendo sobrevivido praticamente pela doação da sociedade de amigos que se formou em torno dele.”
No período de apuração desta reportagem, estavam sem gestores o Murillo La Greca, o Centro de Formação em Artes Visuais, Cefav, e o Museu de Arte Popular.
GALERIAS
Segundo Lúcia Costa Santos, marchande da Galeria Amparo 60 (Pina, Recife), o esvaziamento das políticas públicas reverberam diretamente na atividade da galeria, que acaba com a frequência de público reduzida. Filha, irmã, esposa e mãe de arquitetos e artistas, Lúcia manteve, de 1992 a 1996, uma loja de móveis na Rua do Amparo, em Olinda, na qual expunha e vendia decoração e arte. Sem a formalidade de uma galeria, exibia obras de José Cláudio e Roberto Lúcio, entre outros artistas. O carro-chefe, entretanto, eram os móveis de ferro desenhados por Janete Costa, sua mãe. Em 1998, Lúcia mudou-se para o Pina, inaugurando a Amparo 60, galeria de arte contemporânea.
Galerista Nadja Duamresq critica a ausência de informação sobre
arte por parte da clientela
Nos 15 anos de atividade no Recife, Lúcia diz que percebeu uma sensível diminuição do público frequentador das exposições. Acredita que parte dessa queda é decorrente da maior seletividade do projeto curatorial da Amparo 60. A galeria já teve em torno de 40 nomes. Hoje, representa 27. Participam do casting artistas de gerações diferentes, a exemplo de Rodrigo Braga, José Paulo, Rodolfo Mesquita e Paulo Bruscky.
Um dos diferenciais da Amparo 60 tem sido o registro das exposições em catálogos, editados com recursos do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura) e da Lei de Incentivo à Cultura do Ministério da Cultura, a Rouanet. Os recursos também possibilitaram a vinda de curadores, realização de conversas com artistas e ações de arte-educação. “Em muitos momentos, as pessoas confundiram a galeria com uma instituição. Perguntavam se as obras estavam realmente à venda.”
Profissionais que são referências no setor em que ela atua são Marcantônio Vilaça e Nara Roesler, o primeiro, falecido, a segunda, radicada em São Paulo. No Recife, Roesler criou e comandou a Galeria Artespaço, entre 1971 e 1986. Outra galerista de referência foi Tereza Dourado, marchande da galeria Futuro 25, falecida em 2009. Tereza expôs artistas como Guita Charifker, Francisco Brennand, Reynaldo Fonseca, Gilvan Samico e Gil Vicente. Lúcia lembra também Augusto Rodrigues, há mais de 40 anos à frente da Rodrigues Galeria de Artes, no Torreão, e de Carlos Ranulpho, há mais de 45 no comando do espaço com seu nome, no Bairro do Recife. “É um mercado muito pequeno, temos que valorizar cada gesto e, particularmente, não tenho necessidade de exclusividade. Nós ajudamos uns aos outros.”
É nesse sentido, de um mercado pequeno, em que as ações de formação de público somam-se umas às outras, que a marchande lamenta o fechamento da galeria Mariana Moura, no Recife, acontecido no ano passado, depois de oito anos de atuação. Mariana Moura aportou em São Paulo, em 2011, realizando parceria com a galeria Laura Marsiaj, do Rio. A galeria Moura-Marsiaj, no entanto, também fecharia depois de um ano e 10 meses de operação no mercado paulistano.
Foi em 2005 que Fernando Neves inaugurou a Galeria Arte Plural (Bairro do Recife), espaço eminentemente voltado para a exposição de trabalhos em fotografia. De lá para cá, realizou 52 mostras. “A fotografia teve um crescimento grande como meio de expressão da arte contemporânea, trazendo junto a valorização da arte fotográfica como um fim”, afirma Fernando, sobre a carreira bem-sucedida.
Na Arte Plural, foram expostas fotografias, entre outras, de Tomas Farkas, Edu Simões, Evandro Texeira, Walter Firmo, Clicio Barroso, Francesco Zizola. No espaço anexo ao primeiro andar da galeria, funciona um pequeno e sofisticado ateliê de impressão.
O modelo adotado pela Arte Plural não possui contratos de exclusividade nem a pretensão de constituir um casting. “Exclusividade, a gente tem que pedir da obra, não do artista”, defende Fernando. A Arte Plural tem uma boa frequentação, de acordo com o galerista. “É um lugar em que as pessoas entram sem qualquer cerimônia.” No catálogo da reserva técnica, exposta na galeria, estão obras que vão de R$ 700 a R$ 30 mil.
Na experiência do marchand, o mercado não vai tão mal, mas ainda não seria a hora de partir para as grandes feiras do Sudeste. “Só gostamos de dar um passo do tamanho das nossas pernas. Se, algum dia, a gente for, terei que passar por algumas transfusões de sangue para me transformar num animal do mercado de arte. Não tenho esse perfil.”
Proprietária da Amparo 60, Lúcia Santos observa retração do público
Nadja Dumaresq, da Galeria Dumaresq (Setúbal, Recife), oferece um diagnóstico negativo do mercado de arte, mais próximo ao de Lúcia Santos. Há 10 anos, seu espaço exibe e comercializa apenas arte contemporânea, tendo passado por um período voltado ao antiquariato.
“Alguns clientes chegam aqui e não sabem nem articular aquilo que desejam comprar. O olhar é muito conservador e a tela ainda muito valorizada. O objeto da arte conceitual não é aceito. Além de tudo, falta vontade de ver o mundo de hoje, seja ele representado pela arte primitiva, moderna, ou a dita contemporânea. Nem sempre o público está interessado nesse mundo em que elas vivem, ou sequer desconfiam que arte também pode se apropriar dele”, define a galerista, em poucas palavras, o gosto médio da clientela.
ARTISTAS
“A galeria legitima, promove, divulga, apoia, amplia questões. Promove o artista não só no mercado, mas o oferece enquanto proposta”, argumenta Carlos Mélo. Hoje, com 40 anos, ele foi o primeiro a realizar uma individual na Mariana Moura. Sua primeira experiência com galeria.
De acordo com Carlos, existem dois tipos de artistas numa galeria. “Aquele que vende no sentido formal e o que vende conceito. O que vende no sentido formal, muitas vezes banca aquele que só vende conceito. Mas chega um momento em que fica muito difícil para a galeria manter um artista desse segundo tipo. Daí, começa a forçar a barra para que fique mais diluído, mais acessível, objetual, fetichizado.”
Para Carlos, o fechamento de Mariana Moura foi apenas um sintoma de que as coisas não iam bem nas outras esferas. Crítico, propõe uma mirada na atual configuração do mercado, a partir da sua estruturação originária.
“Precisamos ir lá atrás, como a psicanálise faz, para tentar entender o que foi que aconteceu. Somos de uma geração de arte contemporânea tensa, conservadora, tradicional e política. Digo não politizada, mas política. Aqui, as oligarquias culturais se estruturaram e, durante muito tempo, estiveram no poder ditando regras estéticas do que seria arte. O mercado é um reflexo de uma circunstância cultural. O Recife tem apenas 15 anos de Museu de Arte Moderna, o Mamam. Pouquíssimo tempo para se criar um repertório”, analisa.
Em 1998, lembra ele, houve um mapeamento nacional chamado Antártica Artes com a Folha, com a curadora Lisette Lagnado. A ideia era que cada estado brasileiro fosse representado por um artista, tal como opera o programa Rumos Itaú Cultural hoje. Pernambuco foi o único estado que não teve nenhum artista como representante.
Pesquisador e curador vinculado à Fundaj, Moacir dos Anjos responsabiliza o poder público pela retração. Foto: Flora Pimentel/Divulgação
“Aquilo foi um escândalo. Como um estado, com tanta tradição, com a maior tradição de produção de arte no Nordeste, não conseguiu colocar nenhum nome nesse programa? Daí surgiram alguns movimentos. O Instituto de Arte Contemporânea, o IAC, começou a criar rodas de discussão. O grupo Camelo, com Marcelo Coutinho, Paulo Meira, Oriana Duarte, Ismael Portela começou a se articular”, pontua.
A primeira individual de Carlos Mélo aconteceria no IAC. Assim como o primeiro texto de Moacir dos Anjos para um artista foi escrito sobre o seu trabalho. Um começo para ambos. Carlos ressalta ainda a importância de Marcos Lontra que, em 1997, contratado pela prefeitura recifense, concebeu, batizou e inaugurou o Mamam – construído no espaço da antiga Galeria de Arte Metropolitana.
“Hoje, ele é um tanto esquecido pelos artistas. Injustamente. Foi Marcos quem começou a projetar os artistas locais através do Salão Nacional e do Salão da Bahia e que começou a trazer para o Recife curadores, críticos de arte, como Tadeu Chiarelli e Fernando Cocchiarale”, afirma.
Para Carlos, depois de Lontra, Moacir do Anjos foi decisivo no fortalecimento de um museu de arte moderna na cidade, que integrasse a arte local e trouxesse de fora novas alternativas. “Ele fez uma política cultural muito eficiente. Deu uma cara ao museu.”
Carlos Mélo considera que houve um amadurecimento no campo da arte em Pernambuco. “Não estou sendo otimista. Só estou dizendo que o Recife nunca teve, na verdade, uma cena contemporânea. Pode ter tido a anunciação dessa cena, a pretensão, a sensação. Tanto que as galerias locais continuam do mesmo jeito que antes. Com dificuldade de venda, de inserção. O mercado não avançou em absolutamente nada. As galerias não passaram a vender mais. Os artistas continuam com o mesmo nível de insatisfação. O rei ficou efetivamente nu. Será que não é o momento de se pensar a relação de políticas públicas com o mercado de arte?”, questiona.
“O que existe, de fato, aqui, são excelentes artistas”, acrescenta. “Artistas corajosos, dispostos, talentosos, que continuam trabalhando a duras penas. Artistas no Recife são resistentes. Pode não ter arte, porque há artistas que nem produzir conseguem. Pode não ter mercado, não ter crítica. Mas artistas muito sérios, muito bons, comprometidos, heróis, isso temos.”
Representado pela Amparo 60 e pela Galeria 3+1, de Lisboa, Carlos ainda comenta que o mercado brasileiro não conheceu uma mudança substancial e nem se aproxima do volume praticado nos mercados norte-americano, inglês e do continente europeu. A chegada da White Cube, em São Paulo, e da Gagosian, no Rio de Janeiro, seria mais resultado das dificuldades do mercado na Europa e nos Estados Unidos em tempos de recessão. O Brasil representa apenas 1% do que é comercializado, mas ainda assim é interessante para um mercado que diminuiu suas exportações em 15%.
Para o artista Calos Mélo, o fechamento da galeria que o representava no Recife
é apenas um sintoma de que outras esferas estão mal. Foto: Divulgação
“A SP-Arte comercializa o que sempre se vendeu: pintura. Outra coisa que vende muito são aqueles objetos bonitos, interessantes, inteligentes, coloridos, que se movem, que acendem uma luz. É como se fosse uma loja de decoração ‘cabeça’. A feira não é parâmetro nenhum para dizer que o Brasil está vivendo um boom em arte contemporânea”, conclui. A 9ª edição da SP-Arte, promovida em abril passado, apresentou as cinco maiores galerias do mundo: Gagosian, White Cube, Pace, David Zwirner e Hauser & Wirth. A vinda de grandes nomes também foi incentivada pela isenção de impostos que antes chegavam a quase 50% do valor de cada obra.
CONCENTRAÇÃO
Em levantamento realizado em oito capitais brasileiras, os pesquisadores Fá Sá Earp e George Kornis (leia artigo de autoria dele nas páginas 34-35) chegaram a números que traduzem a concentração de mercado na região Sudeste, percebida por artistas e galeristas do Recife.
De acordo com a investigação, publicada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, São Paulo e Rio concentram 3/4 do mercado, sendo 60% em São Paulo e 15% no Rio. O restante é representado com alguma relevância apenas por Belo Horizonte, Porto Alegre e Brasília. O mercado nordestino é irrelevante, em termos de movimentação de capital.
A pesquisa também revela uma transformação do modelo de comissionamento, agora constituído sob forma mais complexa, em que o galerista financia a produção, deduz o financiamento do valor da obra segundo a tabela do artista, e o valor deduzido vira base de negociação da divisão dos lucros da venda. A pesquisa alerta, ainda, que a participação brasileira no mercado internacional vem do dinheiro nacional depositado em paraísos fiscais.
Ainda que tenha um mercado retraído, o Recife está na mira da ArtRio. “Estamos prevendo um evento da ArtRio no Recife, com o intuito de estimular o interesse pela arte e de nos aproximarmos mais de galerias e colecionadores”, afirmou Brenda Valansi, uma das promotoras do evento, em entrevista à Continente.
“Agora, em qualquer esquina tem uma feira”, diz o artista Bruno Faria. “Muitos artistas já condicionam sua produção com vistas à exibição e venda nesses lugares. Isso gera um problema, que é a anulação do impulso subversivo, importantíssimo para a arte. Mas qual o sentido disso hoje? Grande parte dos meus projetos não resultam em objetos vendáveis e é muito difícil deslocar esses projetos para outros lugares, porque foram feitos para os locais em que estão instalados”, constata. Nascido em 1981, Bruno é um dos artistas mais premiados de sua geração e já trabalhou com uma galeria, a Casa Triângulo.
Segundo o artista Rodrigo Braga, graduado em Artes Plásticas pela UFPE e atualmente radicado no Rio de Janeiro, quem movimenta o mercado consolidado em Pernambuco são os mesmos nomes do passado. “Isto é: os grandes mestres da pintura. O que se estendeu para alguns dos ‘filhos’ desses grandes mestres. É algo da tradição. Não se trata de o mercado não ter dinheiro circulando, nem o fato de não termos cultura para adquirir.”
Afirma ainda Rodrigo: “É esquizofrênico que o artista contemporâneo, e falo de minha geração (ele nasceu em 1976), tente lidar com um trabalho de construção de novos sentidos, linguagens, pensamentos sobre a arte, que estejamos conectados com o mundo, enfim, que operemos dessa maneira sem que haja um retorno de mercado em nossa própria terra”. Rodrigo é representado pela Amparo 60 há mais de 10 anos, está há dois anos na Galeria Vermelho (SP) e já teve galeria representando seu trabalho, por seis anos, em Luxemburgo.
Nos últimos quatro anos, diz ele, a Amparo 60 começou a conseguir vender obras suas. “Essas vendas vêm aumentando. Acho que isso é resultado, sim, do trabalho da galeria, mas também, em grande parte, do esforço pessoal do artista. A inserção nas instituições, sobretudo. Quer dizer, quanto mais o artista se consolida com grandes mostras importantes, nacionalmente e internacionalmente, rebate no maior conhecimento dele pelo público, chegando a mais vendas.” Durante a última SP-Arte, em abril, Rodrigo Braga foi anunciado como ganhador de uma bolsa de residência artística em Nova York, concedida pelo Instituto de Cultura Contemporânea, sediado em São Paulo. Além desse, em julho, o artista foi um dos contemplados com o Prêmio Masp de Artes Visuais.
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